"O intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei."
Mário de Andrade
Olhar a relação Partido Comunista e intelectuais no Brasil é ter como ponto de partida uma constatação impressionante. Algo que poderia sinteticamente ser formulado nos seguintes termos: em determinados momentos da história brasileira, para ser intelectual progressista era quase necessário estar próximo ou passar pelo Partido Comunista.
Esta percepção histórica não se impõe somente aos brasileiros. James Amado, irmão do escritor e ex-militante comunista, também ele ex-membro do partido, em entrevista declarou que o Partido Comunista da União Soviética via o PC no Brasil como um partido cheio de intelectuais e publicações.
Hoje sem qualquer dúvida a situação é radicalmente distinta. Partidos comunistas e intelectuais estão bastante distantes no Brasil, como aliás acontece na maioria dos países onde ainda existem estes partidos.
Apesar do significado passado desta relação, os estudiosos da esquerda e/ou da cultura no Brasil ainda não buscaram investigar com profundidade as ligações entre PC e a intelectualidade. Em tese de doutorado realizada sobre Partido Comunista, Cultura e Política Cultural constatou-se tal lacuna bibliográfica (2).
Não só a lacuna, mas também o significado desta relação PC e intelectuais sugerem a realização de uma reflexão sobre o tema. Neste estudo, tanto o passado quanto o presente estão em jogo. O passado, porque é preciso compreender o papel que esta relação desempenhou na formação da cultura/pensamento e intelectualidade brasileiras. E mais na história do próprio Partido Comunista. O presente, porque a complexa questão das relações entre intelectuais/ política/ partidos/ transformação social é algo sempre problemático e atual: um dilema em busca de respostas.
Não se pretende neste momento analisar em profundidade ou esgotar as relações historicamente dadas entre marxistas e intelectuais, mas tão somente assinalar alguns pontos problemáticos e visões numa primeira e assistemática aproximação.
[fim da página 79]
Para início de conversa ,a preocupação "marxista" com os intelectuais aparece com o intelectual Karl Marx. São por demais conhecidos seus trechos que apontam a origem do trabalho intelectual na divisão social do trabalho historicamente desenvolvido pelas sociedades humanas. Igualmente são difundidos os textos de Marx que indicam os intelectuais como representantes e ideólogos de determinadas classe sociais. Indo além, já no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx e Engels buscam entender também o rompimento desta relação intelectuais - classes sociais. Ao se referirem aos descolamentos de parcelas das classes que acontecem em momentos de intensificação da luta de classes, Marx e Engels afirmam que tal ocorre principalmente com o "... setor dos ideológicos burgueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto" (Marx & Engels, 1977: 93). Deste modo, Marx e Engels em verdade buscam uma auto-explicação para sua própria situação de intelectuais rompidos com sua classe social de origem e em seqüência ligados ideologicamente a outra classe social.
A importância dada aos ideólogos/intelectuais aparece portanto em inúmeros textos de Marx, inclusive porque é através de um processo de assimilação e crítica de outros autores que o próprio Marx constrói seu pensamento. Aliás como costuma acontecer com os grandes intelectuais.
Vale ressaltar ainda que na época de Marx as relações entre intelectuais e movimento dos trabalhadores já apareciam como tensas e eivadas de problemas. Em certas ocasiões Marx se posicionou claramente contra a discriminação de militantes - inclusive dele mesmo - por sua condição de intelectuais. Exemplo disto são suas ações e reflexões em episódios vividos na Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional) (3). Mas as tensões - oriundas inclusive da complexidade do objeto real - estão presentes também nas formulações de Marx e Engels. Este último em determinados momentos atacou ferozmente os senhores "cultos" provenientes de outras classes sociais que tentavam se aproximar do movimento dos trabalhadores (4).
Apesar da recorrência da observação sobre o tema dos intelectuais, certamente não existe no pensamento de Marx e Engels uma reflexão mais sistemática sobre a questão. Também na maioria dos mais significativos autores marxistas a temática aparece sob a forma de pequenas observações ou breves analises. É isto que ocorre, por exemplo, com os ideólogos da Revolução Russa, especialmente Lenin e em parte Trotsky, que tenta uma reflexão mais abrangente no seu livro Literatura e Revolução ao discutir uma questão correlata: a dos artistas "companheiros de viagem" da revolução. Quanto a Lenin, ressalte-se sua problemática retomada das formulações kaustkianas de consciência socialista [fim da página 80] produzida fora do proletariado e as implicações decorrentes desta tese para a temática dos intelectuais (Lenin, 1973: 39).
Debate mais sistemático sobre a questão dos intelectuais acontece por volta da primeira metade dos anos 90 do século passado no interior da social-democracia em torno da temática do revisionismo. Tal polêmica é motivada pela forte expansão numérica das chamadas classes médias, inclusive do estrato intelectual, e pelo crescente interesse despertado pelo marxismo na cultura européia (5). Como o tema dos intelectuais é colocado em discussão pela ala revisionista de Bernstein, a resposta da corrente chamada ortodoxa foi, em boa medida, identificar a questão como uma das formas de atacar a autonomia ideológica e política da classe operária. Além disto, um dos elementos constitutivos do debate, a relação entre social - democracia e intelectualidade, é encarada através de um viés fortemente economista, própria daquela interpretação do marxismo. Isto é cristalino no artigo "A inteligência e a social-democracia", escrito por um dos expoentes desta corrente, Karl Kaustky. Nesse texto, Kaustky, depois de reconhecer a importância do problema da "conquista da inteligência", analisa as características da intelectualidade, suas ligações com o proletariado e conclui que, com relação à "aristocracia da inteligência", só é possível conquistar elementos isolados, devido entre outros aspectos aos diversos conflitos de interesse que separam proletariado e intelectuais. Distinta, ainda que não fácil, é a conquista do "proletariado da inteligência". A proletarização de setores intelectuais neste caso permitiria uma mais ampla aproximação entre eles e a social democracia (Kaustky, 1980: 255-281) (6).
Diferente da Alemanha, a social-democracia na Áustria, no final do século passado e início deste, teve forte penetração no meio intelectual. Certamente isto e o tipo específico de elaboração teórica desenvolvida neste partido, que se convencionou chamar de "austro-marxismo", são elementos determinantes para uma outra visão do tema dos intelectuais. Um dos textos mais significativos nesta perspectiva chama-se "O socialismo e os intelectuais", escrito pelo militante/filósofo Max Adler e publicado pela primeira vez em 1910.
Max Adler descarta de imediato qualquer explicação pura ou predominantemente econômica para entender a relação dos intelectuais com o socialismo. Como considera o socialismo, antes de tudo, um movimento cultural - só num plano subordinado ele seria um movimento político - Adler propõe esta relação como eminentemente cultural, inclusive porque, segundo o autor, os interesses culturais são parte necessariamente integrante das condições de vida dos intelectuais. Em meio a sua interessante análise, Max Adler afirma que o socialismo, compreendido como movimento cultural, se relacionaria com os intelectuais através de quatro aspectos significativos. Em primeiro lugar, aparecendo como sociedade em transformação destinada a fazer possível pela primeira vez uma real comunidade de vida. Em segundo, como uma teoria da prática humana. Em terceiro lugar, manifestando-se como movimento que [fim da página 81] objetiva a realização da cultura, através da luta dos trabalhadores e, finalmente, como superação da frustração do trabalho intelectual imposta aos criadores pela sociedade capitalista. Entre os mecanismos causadores desta frustração, Adler aponta, por exemplo, a subordinação da produção cultural à lógica do capital que não só degrada o trabalho intelectual, forçando rotinas, especializações rígidas etc., com a conseqüente proletarização dos segmentos ligados a estes setores de atividade cultural, como também impõe interesses e orientações estranhas à produção simbólica, dificultando a realização do intelectual e de seu trabalho (7).
A recolocação do tema dos intelectuais numa perspectiva cultural e não privilegiadamente econômica guarda em Max Adler intima correlação com a sua concepção do marxismo como pensamento que se constitui e se desenvolve necessariamente através da confrontação com outras correntes de pensamento contemporâneos e não pelo isolamento e retração a um gueto de vida intelectual.
A compreensão da relevância da cultura, da hegemonia e direção intelectual e moral são os elementos que levam outro importante marxista, o italiano Antônio Gramsci, a se voltar atentamente para o tema dos intelectuais. Como suas elaborações do partido como intelectual coletivo, sobre os intelectuais orgânicos e tradicionais, sobre a cultura nacional - popular são amplamente conhecidas, cabe apenas assimilar a distinção hierárquica - rica de conseqüência analíticas - operada por Gramsci entre os intelectuais criadores - grandes intelectuais nos diversos ramos culturais que elaboram as concepções do mundo - e os intelectuais organizadores e educadores, aos quais cabe administrar ou divulgar estas idéias produzidas (8).
Finalmente, para concluir esta cena que já se torna longa - ainda que inúmeros outros atores talvez devessem estar aqui presentes - vale lembrar dois outros pensadores marxistas. O primeiro deles, um sociólogo voltado aos problemas culturais, o francês Lucien Goldmann, traz inúmeras contribuições ao estudo da temática dos intelectuais. Entre estes destacam-se, sem duvida, a sua concepção do sujeito da criação cultural como trans-individual e as implicações de tal noção para a analise dos intelectuais (9). O segundo, Michael Lowy, realizou, pelo menos, dois importante estudos sobre intelectuais marxistas: um sobre Marx e outro centrado em Lukács. Este último trabalho, em especial, dada a sua preocupação mais abrangente com a intelectualidade radicalizada, engloba diversas contribuições para uma análise da relação entre os intelectuais e a atividade revolucionária (Lowy, 1972; 1979) (10).
[fim da página 82]
O relacionamento entre partidos de orientação marxista e os intelectuais tem sido complexo e variável, histórica e geograficamente. Para compor esta cena um rápido panorama geral pode ser traçado. Nas décadas finais do século XIX, enquanto o partido social-democrata alemão, marcadamente constituído de operários, tinha influência marginal na intelectualidade, como acontecia com outros partidos social-democratas europeus menores, dois partidos de orientação ideológica semelhante, em particular, se caracterizavam por uma forte relação com os intelectuais, especialmente jovens.
O partido russo era predominantemente composto de intelectuais. Aliás, dois elementos destacam-se na vida do país naqueles anos: a quase identidade entre os termos "intelectuais" e "intelectuais de esquerda", ao menos no que se refere aos jovens e a crescente influência do marxismo, utilizado inclusive pelos ideólogos de desenvolvimento capitalista na Rússia, para justificá-lo, os chamados "marxistas legais".
Fenômeno semelhante acontece na Áustria-Hungria. Neste país, a social-democracia - no plano cultural, o marxismo - torna-se momento quase inevitável da experiência dos jovens intelectuais. Como já foi visto, o partido social-democrata austríaco e o "austro-marxismo", corrente marxista com características nacionais marcantes e com abertura para os interesses culturais, tiveram influência significativa na cultura e na intelectualidade, chegando a reunir relevantes intelectuais marxistas, como Otto Bauer, Max Adler, Rudolf Hilferding, Karl Renner, Gustav Echstein e mesmo Karl Kaustky, fundador da "ortodoxia" marxista (Hobsbawn, 1982 a: 75-124).
A vitória de revolução soviética de 1917 abre outro momento de aproximação entre os partidos marxistas e parcelas de intelectualidade. Mesmo na Rússia, onde parte dos intelectuais havia se afastado com a derrota da revolução de 1905, isso acontece. Este segundo momento - marcado também por acontecimentos como a Primeira Guerra Mundial, a Crise de 1929, as intensas lutas de classe dos anos vinte e trinta e por fim a Segunda Guerra Mundial - carateriza-se, no Ocidente, por novas aproximações e afluxo de intelectuais aos partidos comunistas, via pensamento leninista e, depois, por paradoxal que pareça, através de Stalin. França, Itália e Alemanha parecem exemplos razoáveis disto (Hobsbawn, 1982 b: 36-41).
Enquanto na União Soviética o autoritarismo se consolida através de uma política cultural que impõe o "marxismo-leninismo", versão stalinista do marxismo; o realismo socialista nas artes; a censura de toda produção intelectual; a perseguição, o medo, a tortura e a morte aos intelectuais não stalinistas: enquanto tudo isto acontece na URSS, boa parte da intelectualidade, particularmente dos países ocidentais, aproxima-se e adere aos partidos e ao "guia genial dos povos". Parecem ser elementos explicativos desta aproximação, entre outros: a polarização ideológica acontecida naqueles anos em decorrência das intensas lutas de classe, aí incluída a crescente opção da burguesia pelo [fim da página 83] fascismo como forma de dominação político-ideológica; o crescimento econômico da URSS; certa imagem de desenvolvimento social e político do "país dos sovietes" - aquela altura já completamente destruidos - difundida eficazmente nos outros países, inclusive pelos partidos comunistas devidamente atrelados à política externa soviética; a visão da URSS - em certos casos correta e em outros totalmente falsa - como pátria da revolução mundial em andamento, também ela construída pelas organizações internacionais comunistas subordinadas totalmente aos interesses da União Soviética e por fim a vitória do povo soviético contra o invasor nazista. Exemplo trágico desta adesão é a fidelidade cega, a fé e a louvação bajulatória que inúmeros intelectuais consagrados internacio-nalmente dedicaram a Stálin. Feridas profundas e certamente objeto obrigatório de reflexão para aqueles que pretendem buscar criticamente verdades. Outro exemplo dramático, ainda que não trágico, é a participação bastante ativa de numerosos intelectuais de todo o mundo nos movimentos pela paz mundial, efetuados nas décadas de 40 e 50 principalmente. A denúncia dos crimes de Stálin e do totalitarismo "soviético"; a quebra do monopólio da URSS sobre o movimento comunista internacional e sobre o marxismo; bem como as intervenções "soviéticas" em países socialistas e os seus conflitos, entre outros episódios, sem dúvida, levaram a um afastamento crescente, na maioria dos países, entre intelectuais e partidos comunistas. Este é o quadro atual desta relação: um quadro de quase total ruptura.
Antes de chegar ao Brasil e tentar acompanhar a trajetória do relacionamento entre Partido Comunista e intelectualidade no país, cabe fazer algumas considerações como fecho deste panorâmico cenário inicial. No campo das práticas predominam indiscutivelmente as tensões, na maioria das vezes mal resolvidas, entre partidos e intelectuais. Hobsbawn, no segundo artigo citado, anotou:
"As relações entre intelectuais e partidos comunistas têm sido tempestuosas, embora talvez menos do que se escreveu em torno delas, já que os intelectuais destacados, sobre os quais mais se escreveu, não são necessariamente uma amostragem representativa da média." (1982 b: 37)
Logo abaixo, no entanto, volta a observar: "... não pode haver dúvida sobre o caminho atribulado daqueles que efetivamente aderiram aos partidos comunistas" (Hobsbawn, 1982 b: 37). A este clima de tensão, de relacionamentos não bem delimitados, acrescenta-se a complexidade de características específicas desta relação, as razões de aproximação e de afastamento, não trabalhadas na história prática dos partidos.
No campo teórico, uma avaliação preliminar das formulações dos partidos - e mesmo dos marxistas em geral - sobre o tema dos intelectuais é bastante deficiente. A trágica "evolução" do marxismo, primeiro com forte viés economicista (II Internacional) e depois como "marxismo-leninismo-stalinismo" - que no plano teórico tem viva influência até hoje em inúmeros países e partidos, por pequenos que sejam - deixou seqüelas profundas e um grande atraso tanto [fim da página 84] para um desenvolvimento realmente teórico do marxismo, quanto para a análise da modernidade, das configurações do capitalismo e do chamado "socialismo real" e da contemporaneidade. Este grave empobrecimento do marxismo se manifesta de forma contundente no estudo específico dos problemas culturais: nas alterações profundas ocorridas no imaginário da sociedade contemporânea; nas mudanças drásticas ocasionadas na produção e na circulação de bens simbólicos, nos meios de produção de cultura e comunicação, pelo seu processo de subsunção à lógica do capital e pelo surgimento de novas sócio-tecnologias; nas modificações acontecidas, enfim, no trabalho intelectual e na própria intelectualidade contemporânea. Assim, igualmente no campo teórico, a situação aparece como bastante grave.
Conforme Astrogildo Pereira, a fundação do Partido Comunista no Brasil em 1922 não teve nenhuma repercussão imediata nos meios intelectuais (Pereira, 1979: 79) (11). Até o final da década de 20, em verdade, o partido é um pequeno agrupamento de trabalhadores e "pequenos-burgueses" com atuação privilegiada nos sindicatos. Na fase final desta década e no início dos anos 30, através de iniciativas mais amplas do próprio partido como a publicação do diário A Nação (1927) e da atividade do Bloco Operário Camponês (1927-1930) e principalmente por circunstâncias acontecidas ao nível internacional e nacional, muitas delas à revelia do Partido Comunista, a situação começa a mudar, primeiro com a aproximação de estudantes universitários, jovens intelectuais e, já na década de 30, com o engajamento de certos intelectuais que, apesar de jovens, tinham ou estavam adquirindo na época notoriedade.
O descompasso entre aproximação dos intelectuais e a política de proletarização realizada pelo partido nestes anos é patente. Enquanto os intelectuais estão se voltando para o partido, este substitui os poucos intelectuais que estão nos seus órgãos dirigentes por proletários e um intelectual propõe que só possam votar no Comitê Central os trabalhadores manuais. A proletarização abrange até o privilegiamento de comportamentos e formas de vestir. Na literatura do período, dois romances tentam retratar de pontos de vista bastante desiguais este processo, ainda que suas autoras tivessem ligação com o partido. Patrícia Galvão - Pagú - utilizando o pseudônimo de Mara Lobo - escreveu Parque Industrial, mostrando-se favorável à proletarização do partido, enquanto Raquel de Queirós retrata criticamente este processo no livro Caminho de Pedras. Quando da publicação deste romance, Raquel de Queirós havia se desligado do partido há pouco tempo, devido a tentativa de censura partidária a seu livro anterior, João Miguel.
Deste modo, ainda que alguns poucos intelectuais possam ter sido atraídos [fim da página 85] - de forma masoquista - pela proletarização, a maioria dos jovens intelectuais que se aproximava do partido certamente o fazia por determinantes internacionais - alguns deles indicados no cenário inicial - ou nacionais. Dentre as razões nacionais, sem dúvida, se destacam: a preocupação com os problemas nacionais desenvolvida com grande presença nos anos 30; a forte desilusão causada em determinados segmentos sociais pelo não cumprimento das propostas/promessas do movimento de 1930 - exemplo maior disto é a busca do Partido Comunista como solução mais radical empreendida por Caio Prado Jr. depois de sua frustração com aquele movimento - e finalmente a polarização ideológica da década de 30 no Brasil, com a criação pelo partido da frente Aliança Nacional Libertadora em 1934/35. Some-se a estes fatores de atração dos intelectuais a presença de Prestes e de inúmeros "tenentes" desiludidos com o governo de Getúlio Vargas na ANL e a criação de entidades e canais aglutinadores dos intelectuais progressistas, como são as publicações - inclusive diárias - do PC/ANL e de associações como o Clube de Cultura Moderna. Nestes anos ingressaram no partido, entre outros, intelectuais como: Caio Prado Jr., Mário Schenberg; Di Cavalcanti; Jorge Amado; Edison Carneiro; Oswald Andrade; Raquel de Queirós; Patrícia Galvão; etc. Na Bahia, numeroso grupo de estudantes vai sendo conquistado pelo partido, entre eles Armênio Guedes, Milton Cayres de Brito; Carlos Marighella; Diógenes Arruda, Fernando Santana (12).
A repressão ao levante militar de 1935 e ao governo popular de Natal e o golpe do Estado Novo, em 1937, barram esta aproximação entre o partido e os intelectuais, mas, pelo menos em alguns casos, isso não é totalmente correto: intelectuais não comunistas, ex-militantes da ANL, tornada ilegal pelo governo mesmo antes do levante de 35, aderem então ao partido. Este, por exemplo, é o caso de Graciliano Ramos. Com a ditadura, a repressão, a tortura e os assassinatos do Estado Novo, o Partido Comunista é desarticulado enquanto partido nacional centralizado, restando apenas pouquíssimos comitês estaduais organizados desenvolvendo uma atividade muito limitada (13).
A campanha pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial e pela luta contra o nazi-facismo ajudam não só o partido a ir se articulando, como a se aproximar da intelectualidade progressista. Esta ação interna e principalmente o prestígio de Prestes - preso desde a repressão ao levante de 1935 -; a vitória contra o nazi-facismo e a fascinação despertada pela URSS, inclusive por seu papel durante a guerra, aparecem como elementos determinantes - dentre outros - da verdadeira invasão dos intelectuais acontecida em 1945. Filiam-se ou aproximam-se do partido, além dos já assinalados, intelectuais como: Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato, Dyonélio Machado, Dalcídio Jurandir, [fim da página 86] Alina Paim, Nelson Pereira dos Santos, Quirino Campofiorito, Aníbal Machado, Villanova Artigas, Oscar Niemeyer, Dorival Caymmi, Arnaldo Estrela, Ruy Santos, Walter da Silveira, etc.
Apesar de alguns conflitos entre o partido e certos intelectuais que vão gerar afastamentos - como foi o caso de Carlos Drummond de Andrade, que nunca se filiou ao PC - o período entre 1945-1947 é quantitativamente o mais rico da coexistência com os intelectuais. Nestes anos, o partido estrutura um conjunto relativamente articulado e bastante numeroso de entidades culturais e meios de produção simbólicos, além de influenciar outros existentes. Deste conjunto - que certamente é um fator adicional de penetração e aproximação com o meio intelectual - fazem parte: oito jornais diários e inúmeros semanários nas principais capitais e cidades brasileiras; uma agência de notícias, a InterPress; inúmeras revistas, inclusive uma voltada ao campo cultural, a revista Literatura, dirigida por Astrogildo Pereira; duas editoras; um serviço de cine-jornal, depois tentado transformar em produtora cinematográfica, a Liberdade Filmes, e vários outros meios e entidades. Junte-se a tudo isto uma atuação cultural flexível, talvez não decidida intencionalmente, mas fruto da não reflexão do partido sobre a temática cultural, o que não deixa de ser problemático nestas circunstâncias.
O desdobramento dessa atividade do partido entre os intelectuais é brecado pela imposição autoritária da ilegalidade do Partido Comunista (1947) e da cassação dos mandatos de seus parlamentares (1948). Este retrocesso democrático acontece num contexto internacional de intensificação da Guerra Fria e da polarização do mundo em dois blocos: um subordinado aos Estados Unidos e outro à União Soviética. A resposta do partido, no campo político-cultural, é o acirramento da chamada luta ideológica. O PC procura organizar, controlar e instrumentalizar associações de intelectuais, como é o caso da Associação Brasileira de Escritores -ABDE; desenvolve lutas, nas quais os intelectuais devem ser integrados, como o movimento nacional e internacional dos partidários da paz; privilegia a criação e desenvolvimento de aparelhos ideológicos, em especial a partir de 1950, sejam eles escolas de partido, com os cursos Lenin ou Stalin, ou revistas "teórico-culturais". Até os anos de 1955/56, o partido vive sua fase de maior definição de uma política cultural. Seus objetivos são a stalinização do partido; a imposição/absorção do realismo socialista nas artes - via sua versão mais sectária, o zdhanovismo - e do "marxismo-leninismo" - de acordo com a interpretação dos manuais stalinistas - nas ciências da sociedade. Também a "ciência proletária" de Lyssenko e companhia passa a ser difundida.
Esta política implica igualmente no acirramento intencional da polarização existente no meio intelectual. De um lado, estão os intelectuais filiados - ainda em número significativo - e próximos que são trabalhados de modo sistemático pelo partido, através de todo um espaço cultural alternativo construído e controlado pelo PC. São revistas "teórico-culturais"; suplementos culturais de jornais; produção literária em jornais, revistas e livros; clubes de gravura; ilustrações de publicações; edição de livros; concursos, cursos, associação de intelectuais nacionais e internacionais; campanhas reivindicatórias; encontros e movimentos nacionais e internacionais envolvendo intelectuais, etc. De outro lado, os intelectuais conservadores e aqueles - mesmos progressistas - que foram levados a uma posição conservadora ou simplesmente de não concordância e [fim da página 87] aceitação acrítica das orientações político-ideológica-culturais do comunismo stalinista. A revista Paratodos, órgão "teórico-literário" do partido, editada no Rio, é o exemplo maior desta política de acirramento da polarização ideológica no seio da intelectualidade. Em quase todos os números da publicação, ao lado de críticas agressivas a determinados intelectuais, encontram-se exaltação de outros, textos de orientação estético-ideológica, divulgação de atividades culturais e difusão de produtos simbólicos da nova cultura pretendida. Institui-se um verdadeiro gueto cultural, análogo ao gueto político que se tornou o PC na época. Um gueto altamente centralizado, controlado, disciplinado e ferozmente militante.
A morte de Stálin (1952), o lento abrandamento acontecido em seguida, a manutenção da política do partido com pequenas modificações e principalmente o XX Congresso do Partido Comunista da URSS (1956), onde Kruschev denun-ciou os crimes do período stalinista, vão levar o partido a uma crise profunda nos anos 56/58. A repercussão desta crise entre a intelectualidade e, em particular, entre os intelectuais membros da organização é avassaladora. Certamente foi este o setor partidário que mais se sensibilizou com a crise. Como aconteceu em outros países, inúmeros intelectuais abandonaram ruidosamente o partido, tornando-se até, em alguns casos, raivosos anticomunistas. Outros simplesmente renunciam à militância. A crise, além do afastamento de grande número de intelectuais e da desarticulação final da rede ideológica/cultural mantida pelo PC, tem duas importantes conseqüências. Nela está o embrião do fracionamento mais contundente do movimento comunista no Brasil e da quebra do monopólio do PC sobre o marxismo no país.
Com a declaração de 1958 e as posteriores resoluções do V Congresso (1960), o partido redefine sua política, com base numa crítica limitada às orientações anteriores. A partir de então o PC busca articular uma frente nacionalista que vai desembocar nos movimentos de massa pelas Reformas de Base, acontecidos até o Golpe Militar de 1964. A redefinição política e a participação no movimento nacionalista pelas Reformas de Base, bem como a Revolução Cubana, são fatores explicativos de um novo afluxo de jovens intelectuais ao partido. Eles estão envolvidos no ideário e pela prática desenvolvida pelo Partido Comunista e buscam elaborar uma cultura "nacional-popular" que ajude a luta pelas reformas, pensadas como parte integrante da revolução brasileira. O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, hegemonizado pelos jovens comunistas, destaca-se nesse sentido.
A nova política, por outro lado, provoca conflitos no interior do partido, ocasionando o racha acontecido em 1962. A política reformista é assumida pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a manutenção matizada da orientação stalinista é assumida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sendo que este último tem pouca repercussão no seio da intelectualidade.
Apesar do Golpe de 1964 e da repressão por ele empreendida contra o movimento progressista e os partidos comunistas, a aproximação e influência do PCB com relação ao segmento intelectual continua e talvez até se amplie em parte do período 64-68, marcado por uma efervescência cultural significativa. Roberto Schwarz escreve que esta "floração tardia" - porque fruto do período relativamente democrático anterior - caracterizava-se, "apesar da ditadura da [fim da página 88] direita", por uma "relativa hegemonia cultural da esquerda". Mas, conforme o autor:
"é preciso localizar esta hegemonia e qualificá-la. O seu domínio, salvo engano, concentra-se nos grupos diretamente ligados à produção ideológica (...), mas daí não sai, nem pode sair, por razões policiais. (...). É de esquerda somente a matéria que o grupo - numeroso a ponto de formar um bom mercado - produz para consumo próprio." (Schwarcz, 1978: 61-92)
A situação do PC no meio intelectual não será tranqüila nestes anos. Devido aos impasses teórico-políticos colocados pela derrota de 1964 e pela consolidação da ditadura, que provocam incontáveis cisões no PCB com o desencadeamento da luta armada, e dada uma variada gama de acontecimentos internacionais - difusão de outras e novas interpretações do marxismo; quebra da unidade do movimento comunista internacional; invasão soviética na Tchecoslováquia; Revolução Cultural Chinesa; manifestações estudantis de 1968, etc. Enfim, levando em conta todos estes movimentos, estes anos marcam por certo o fim da hegemonia do PCB com relação à intelectualidade progressista e ao marxismo no Brasil.
Esta transformação no pensamento de esquerda pode ter como indicador as mudanças acontecidas no ideário da Revista Civilização Brasileira, publicação política e cultural progressista de maior difusão no país entre 1965 e 1968. Carlos Guilherme Mota, com base numa análise da revista, sugere "uma viragem mental" no pensamento progressista brasileiro nos anos que vão de 1964/65 a 1967/68. Deste modo, segundo este autor, a revista, "fruto de uma era populista, modificou paulatinamente sua orientação até seu fechamento, em 1968, por volta do AI-5". E continua Carlos Guilherme:
"(...) neste sentido, podem ser indicados dois momentos básicos na história da revista: um definido pelos compromissos com as linhas de pensamento (progressista) vigente no período anterior, cobrindo, grosso modo, os anos 1965 e 1966; o segundo, onde se percebe a emergência de novas linhas de diagnósticos, encaminhando-se para revisões radicais (inclusive criticando-se participantes do primeiro momento), perscrutando novas frentes de reflexão e afinando um novo instrumental de análise. Cobre esse segundo momento os anos 1967 e 1968, até o fechamento da revista." (Mota, 1977: 205-206)
Abalado pelas inúmeras cisões, o PCB vai paulatinamente perdendo sua influência no seio da intelectualidade de esquerda e na elaboração marxista brasileira. O "recrudescimento" da ditadura em 1968, com o crescimento da repressão política e cultural - censura; perseguição a intelectuais, estudantes, professores, etc.; exílio; tortura e assassinatos -, complicam ainda mais a relação PCB e intelectuais. Tal relacionamento só é retomado, de forma limitada, no interior da grande frente democrática que se forja contra a ditadura e suas seqüelas culturais.
Superada a ditadura - pela velha e recorrente via da conciliação autoritária entre as elites - o quadro hoje é de nítido distanciamento entre partidos comunistas e intelectualidade, sendo a influência destes claramente marginal e [fim da página 89] no caso específico do PCB, de fortes resquícios do passado. Aliás, parece mesmo que a tendência recente dos intelectuais progressistas tem sido se afastar dos partidos - talvez com a tênue exceção do Partido dos Trabalhadores - e até da política. E o que é, sem dúvida, mais preocupante: a influência da esquerda tem gradativamente decrescido no meio intelectual.
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RESUMO
O PARTIDO COMUNISTA E OS INTELECTUAIS
Este artigo tenta analisar a relação existente, no Brasil, entre a intelectualidade e o Partido Comunista, buscando preencher a lacuna deixada pelos estudiosos da esquerda e/ou da cultura no país. No entanto, pretendemos ir além disso, realizando uma reflexão sobre o tema, de tal modo que se compreenda o papel que esta relação desempenhou na formação da cultura/ pensamento e da intelectualidade brasileiras.
PALAVRAS-CHAVE: Partido Comunista; intelectualidade; Brasil.
ABSTRACT
THE COMMUNIST PARTY AND THE INTELLECTUALS
This article tries to analyse the existing relation, in Brazil, between the intellectuality and the Communist Party, searching to fill the gap left for the scholars of the left and/or the culture in the country. However, we intend to go moreover, carrying through a reflection on this field, in such mode that if it understands the role that this relation played in the formation of the Brazilian culture / thought and intellectuality.
KEYWORDS: Communist Party; intellectuality; Brazil.