A característica sociológica das combinações entre segredo e revelação na vida do indivíduo é o conhecimento de outrem: aquilo que é intencional ou não-intencionalmente ocultado é intencional ou não-intencionalmente respeitado. A intencionalidade da ocultação no entanto assume intensidade muito maior no embate com a revelação. Esta situação dá lugar à ocultação e ao mascaramento muitas vezes agressivo e defensivo, por assim dizer, contra uma pessoa, o que em si é designado como segredo.
No sentido da ocultação de realidades por meios positivos ou negativos, o segredo é uma das maiores realizações humanas. Se comparado ao estágio infantil em que cada concepção se expressa imediatamente e as coisas que se faz são imediatamente acessíveis aos olhos de todos, o segredo conduz a uma grande ampliação da vida, cujos numerosos conteúdos não podem ser levados à publicidade completa. O segredo assim oferece, digamos, a possibilidade de um segundo mundo junto com o mundo manifesto, sendo este decisivamente influenciado por aquele.
A existência de um segredo entre dois indivíduos ou dois grupos e a sua medida, são questões que caracterizam as relações entre eles. Pois enquanto uma das partes não se dá conta da existência de um segredo, o comportamento daquele que o oculta e assim toda a relação, são permeados por tal fato.
O desenvolvimento histórico da sociedade caracteriza-se, em muitos aspectos, pelo fato de que algo que em algum momento tenha estado manifesto mergulhe na proteção do segredo; e que, ao contrário, aquilo que uma vez foi secreto não mais necessite de tal proteção, revelando-se. Isso é comparável àquele outro movimento intelectivo mediante o qual o que originalmente havia sido feito de maneira consciente, passa a existir no nível da rotina conscientemente mecânica, e o que em algum outro estágio houvesse estado inconsciente e instintivo se eleve à clareza da consciência. Como isso se distribui entre as várias formações da vida pública e da vida privada; como tal evolução leva a condições ainda mais propositais na medida em que no início o âmbito do segredo se estende longe demais, de maneira desajeitada e indiferenciada sendo a utilidade do segredo reconhecida somente mais tarde com respeito a outros assuntos; como o quantum de segredo se modifica pela importância ou pela irrelevância dos seus conteúdos - tudo isso, ainda que como uma mera questão, joga luz sobre a significação do segredo para a estrutura da interação humana.
Tal significação não pode ser omitida, em vista do fato do segredo ser muitas vezes eticamente visto como negativo; pois o segredo é uma forma sociológica geral em situação de neutralidade, acima do valor e das funções dos seus conteúdos. Tal é, por exemplo, o caso do indivíduo nobre cujo sutil pudor faz com que oculte o que tem de melhor para não ser objeto do culto à personalidade ou do auto-elogio; se assim não fôra, ele teria essa recompensa, mas não o valor em si. Por outro lado, apesar do segredo não estar diretamente [fim da página 221] ligado com o mal, este tem uma conexão imediata com o segredo: aquilo que é imoral se esconde por razões óbvias, mesmo quando o seu conteúdo não carrega estigma social, como é o caso de certas distorções de natureza sexual não perceptíveis ao olhar coletivo. O efeito intrinsecamente isolante da imoralidade como tal, não importando toda a repulsa social explícita e direta, é real e importante, indo além dos meandros de tipo ético e social. Entre outras coisas, o segredo é também a expressão sociológica da ruindade moral, apesar dos fatos contradizerem a frase clássica de que ninguém é tão mau que queira, além disso, deixar-se ver como mau. Pode acontecer que o despeito e o cinismo não cheguem a levar à ocultação do que é mau: na verdade, pode-se explorar a maldade de modo a destacar a personalidade aos olhos de outros, ao ponto de algum indivíduo vangloriar-se de imoralidades ou de maldades que sequer cometeu.
O uso do segredo como técnica sociológica, como uma forma de ação sem a qual certos objetivos - pois vivemos num meio social - simplesmente não poderiam ser atingidos, é bastante compreensível. Não são tão evidentes os atrativos e os valores do segredo além da sua significação como simples meio - a atração específica do comportamento formalmente secreto, não importando o seu conteúdo momentâneo. Em primeiro lugar, a exclusão tão enfatizada dos que não o detêm traz um forte sentimento de posse. Para muitos indivíduos, a propriedade não adquire significado com a mera posse, mas só com a consciência de que outros não a detêm. A base para tal, evidentemente, é a impressionabi-lidade dos nossos sentimentos através das diferenças. Além disso, estando outros excluídos da posse , deixa sugerir que o que é negado a muitos deva ter um valor especial.
A propriedade interior dos mais variados tipos, assim alcança um acento de valor característico mediante a forma de segredo, em que a significação do que é ocultado se acresce diante do simples fato de que outros nada sabem sobre aquilo. Entre crianças, o orgulho e a bazófia costumam basear-se numa poder dizer à outra "eu sei de uma coisa que tu não sabes" e em tal grau, que a frase é dita como meio formal de jactância e de subordinação de outros, mesmo quando é inventada e nada há de realmente secreto. Esse ciúme do conhecimento dos fatos que se oculta a outros é demonstrado em todos os contextos, do maior ao menor. As discussões do Parlamento inglês foram secretas durante muito tempo, e até o reinado de George III comunicá-las seria considerado ofensa criminal como violação de privilégios parlamentares. O segredo situa a pessoa numa posição de exceção; opera como uma atração pura e socialmente determinada. É basicamente independente do conteúdo que guarda, mas naturalmente torna-se cada vez mais efetivo na medida em que a sua posse exclusiva ganha em amplitude e em significado.
Para tal, o oposto análogo ao mencionado acima, também é em parte responsável. Para o homem comum, todas as pessoas e as realizações superiores e diferenciadas têm algo de misterioso. É como se o ser e o fazer humanos fluíssem de forças enigmáticas. No entanto, entre indivíduos da mesma qualidade e do mesmo nível, tal não se constitui num problema aos olhos [fim da página 222] do outro, particularmente porque a igualdade produz um certo entendimento direto, não mediado pelo intelecto. O entendimento indireto essencial, ao contrário, não leva a tal resultante e qualquer diferença particular faz com que o caráter geral se deixe ver de imediato. (Isso seria semelhante a alguém que, vivendo sempre no mesmo lugar, sequer suspeita da influência do cenário - que nos impressiona no entanto tão logo mudamos de ambiente, advindo então um sentimento diferente quanto ao papel causativo da paisagem e do meio ambiente). A partir do segredo que sombreia tudo o que há de significativo e profundo, se origina a falácia de que tudo o que for misterioso será importante e essencial. Diante do desconhecido, o impulso natural do homem em idealizar e o seu temor natural cooperam para com o mesmo objetivo: intensificar o desconhecido através da imaginação e dar-lhe uma ênfase que nem sempre corresponde à realidade patente.
De modo bastante peculiar, os encantos do segredo estão relacionados com os do seu oposto lógico, a traição - que evidentemente não são menos sociológicos. O segredo contem uma tensão que se dissolve no momento da revelação. Este momento constitui o apogeu no desenvolvimento do segredo: todos os seus encantos se reúnem uma vez mais e alcançam o clímax assim como o momento da dissipação nos permite gozar em sua inteireza o valor do objeto que se compra: a sensação de poder que acompanha a posse do dinheiro se concentra para o comprador, da maneira mais sensual e mais completa, no próprio instante em que o dinheiro lhe sai das mãos. Também o segredo contém a consciência de que pode ser rompido: de que alguém detém o poder das surpresas, das mudanças de destino, da alegria, da destruição - e até da autodestruição. Por tal razão, o segredo está sempre envolvido na possibilidade e na tentação da traição; e o perigo externo de ser descoberto se entretece com o perigo interno, que é como o fascínio de um abismo, a vertigem de a ele nos entregarmos. O segredo cria barreiras entre os homens, mas ao mesmo tempo traz à baila o desafio tentador de rompê-lo por boataria ou por confissão - e esse desafio o acompanha todo o tempo. A significação sociológica do segredo então, tem sua medida prática, seu modo de realização só na capacidade, na inclinação individual de mantê-lo, assim como na sua resistência ou fragilidade em face da tentação da traição, da revelação. Do contraponto entre esses dois interesses, o da ocultação e o da revelação, surgem nuanças e tonalidades de interação humana que o permeiam em sua inteireza. À luz do que foi dito anteriormente, toda relação humana é caracterizada, entre outras coisas, pela quantidade de segredo que nela se encontra e que a envolve. Sobre isto então, o encaminhamento de qualquer relação é determinado pela média das energias constituintes e mantenedoras envolvidas na relação. As primeiras repousam sobre o interesse prático no segredo e na sua atração formal. As segundas se baseiam na impossibilidade de suportar a tensão encompassada pela manutenção do segredo e num certo sentimento de superioridade. Apesar dessa superioridade estar em forma latente no próprio segredo, ela só se atualiza inteiramente no momento da revelação ou ainda na luxúria da confissão, que pode conter essa sensação de poder na forma pervertida de auto-humilhação e [fim da página 223] de contrição.
Todos estes elementos que determinam o papel social do segredo são de natureza individual; mas a medida em que as disposições e as complexidades das personalidades constituem segredos dependerá, ao mesmo tempo, da estru-tura social em que as suas vidas estejam inseridas. O ponto decisivo a esse respeito é que o segredo é um elemento de primeira linha na individualização. Trata-se de um duplo papel: condições sociais de forte diferenciação pessoal permitem e requerem um alto grau de segredo: e de maneira inversa, o segredo incorpora e intensifica essa diferenciação. Num círculo pequeno e estreito, a formação e a preservação dos segredos se mostra difícil inclusive em bases técnicas: todos estão muito próximos de todos e suas circunstâncias, de modo que a freqüência e a proximidade dos contatos implicam em maiores tentações e possibilidades de revelação. Além disso, o segredo nem é tão necessário, pois esse tipo de formação social costuma nivelar seus membros e as peculiaridades da existência, das atividades e das coisas que se possui e cuja conservação tornaria necessária a forma do segredo, militam contra essa mesma forma social.
Com a ampliação do grupo evidentemente as coisas se invertem. Aqui, como em outros casos, os traços específicos do grupo ampliado são mais visíveis no contexto da economia monetária. Quando a determinação e o tráfego dos valores econômicos passam a ser feitos unicamente por meio do dinheiro, tornam-se possíveis níveis de segredo que de outra maneira seriam inatingíveis. São três as características da forma monetária de valor relevantes neste ponto da análise: sua compressibilidade, que permite tornar-se rico a alguém fazendo chegar-lhe um cheque às mãos sem o conhecimento dos demais: a sua abstração e ausência de qualidade pelas quais transações, aquisições e trocas na posse do dinheiro seriam invisíveis ou irreconhecíveis onde os valores fossem considerados propriedade só sob a forma de objetos tangíveis; e finalmente o efeito à distância do dinheiro, que permite o seu investimento em valores remotos sendo este passível de ocultação aos olhares do meio imediato. Tais possibilidades de dissimulação se desenvolvem na medida em que a economia monetária se expande e seus perigos se tornam mais evidentes na ação econômica envolvendo moeda estrangeira. Isso levou ao desenvolvimento de uma medida protetora que é o caráter público das transações financeiras por companhias, cartéis e governos.
Isso sugere que se refraseie com maior exatidão a fórmula evolucionária segundo a qual, permitimo-nos relembrar, o segredo é uma forma que está sempre recebendo e liberando conteúdos: o que originalmente havia sido manifesto pode tornar-se secreto, e o que havia sido mantido oculto rompe essa ocultação. Poder-se-ia então, quem sabe, alimentar a idéia paradoxal de que, em circunstâncias idênticas em outras quadraturas, a vida humana coletiva requer uma certa medida de segredo que unicamente muda de tópicos: enquanto abre mão de alguns ou de um deles, o social apodera-se de outros e em toda essa alternância, preserva-se uma quantidade determinada de segredo.
Pode-se no entanto identificar um conteúdo mais precisamente dado de conteúdo para este esquema geral. É como se, com o crescimento da conveniência [fim da página 224] cultural, os negócios públicos em geral se tornassem ainda mais públicos e as questões individuais sempre mais secretas. Em estágios menos desenvolvidos como já tem sido observado, o indivíduo e suas condições não podem proteger-se de olhares e intromissões na mesma medida que no estilo moderno de vida, que produziu uma nova medida de reserva e de discrição, sobretudo nas grandes cidades. Antigamente, o costume revestia os funcionários públicos de uma certa autoridade mística enquanto que em condições mais atuais a sua dignidade e sua autoridade provêm da ampliação da sua esfera de dominação, da objetividade da sua técnica e da sua distância do indivíduo nas atividades públicas. O antigo segredo das coisas públicas, no entanto, demonstrava uma inconsistência interior ao mesmo tempo criando contramovimentos de traição por um lado e de espionagem por outro. Até os séculos XVII e XVIII, os governos mantinham um silencio ansioso sobre as dívidas públicas, sobre os impostos e os contingentes militares. Nessa perspectiva, os embaixadores nada mais faziam do que espionar, interceptar cartas e fazer falar os que "sabiam de algo", inclusive o pessoal doméstico. A partir do século XIX no entanto, a publicidade invadiu os negócios em tal medida que hoje em dia os governos tornam públicos fatos que até então tornariam impossíveis quaisquer regimes. A política, a administração e a jurisdição perderam assim o seu caráter secreto e a aquela inacessibilidade, na mesma medida em que o indivíduo ganhou em termos de retração e na mesma medida em que em meio às multidões metropolitanas da vida moderna desenvolveram-se técnicas de tornar e manter secretos certos assuntos, o que até então só seria possível mediante o isolamento espacial.
A resposta à questão da medida em que esse fenômeno pode ser considerado expediente depende dos axiomas do valor social. As democracias consideram a publicidade algo intrinsecamente desejável, sob a premissa fundamental de que todos deveriam estar a par dos acontecimentos e circunstância que porventura lhes dissessem respeito, sendo esta a condição sem a qual não se pode contribuir para quaisquer decisões: e todo o conhecimento compartilhado traz em si o desafio psicológico da ação compartilhada.
Esta conclusão é discutível no entanto. Se acima dos interesses individuais houver uma estrutura objetiva de governo que inclua certos aspectos desses interesses, a autonomia formal da estrutura pode muito bem ser atribuída a funções secretas, sem para tanto trair a sua "publicidade" no sentido da consideração material dos interesses de todos. Assim, não há conexão lógica que vincule a publicidade como valor maior. Por outro lado, o esquema geral da diferenciação cultural mostra-se de novo aqui: o que é público se torna ainda mais público e o que é privado se torna ainda mais privado. E este encaminhamento histórico é a expressão de uma significação mais profunda e mais objetiva: o que é essencialmente público e o que, por seu conteúdo é do interesse de todos, também se torna ainda mais público externamente, na sua forma sociológica, assim como aquilo que no seu sentido interior for autônomo - as questões centrípetas do indivíduo - ganha um caráter ainda mais privado mesmo na sua posição sociológica, numa possibilidade também mais distinta de permanecer secreto.
Mostrei anteriormente que o segredo também opera no âmbito da posse [fim da página 225] de adornos e no valor da personalidade. Este fato envolve a contradição de que aquilo que recua diante da consciência dos outros deles se ocultando, deve ser levado muito em conta na sua consciência; que uma pessoa se faz particularmente notável através daquilo que esconde. Mas esta contradição prova não só que a análise sociológica é necessária como pode recorrer a meios intrinsecamente contraditórios, mas também que aqueles contra quem tais meios são direcionados satisfazem tal necessidade assumindo o ônus da superioridade. Eles o fazem num misto de disponibilidade e de desgosto, mas na prática, não obstante, satisfazem o reconhecimento desejado. Pode-se então dizer que apesar de aparentemente poder ser caracterizado como a contrapartida sociológica do segredo, o adorno teria de fato uma significação societária cuja estrutura seria análoga à do próprio segredo. É natureza e função do adorno atrair os olhares para quem está adornado. se bem que, neste sentido, seja ele antagonista do segredo, nem mesmo o segredo existe sem alguma função na ênfase do que é pessoal. E este traço o adorno também detém, misturando a superioridade sobre outros com a dependência destes e a sua boa vontade com a sua inveja, o que ocorre de tal maneira que, como forma sociológica de interação, requer investigação especial.
NOTA
1) Traduzido pela professora Simone Carneiro Maldonado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia - Universidade Federal da Paraíba - Campus I - João Pessoa).