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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 243-245


A MITOLOGIA DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
E A CULTURA POPULAR

Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia (1)



FERRETTI, Mundicarmo. (2000). Desceu na Guma: o caboclo no tambor de mina. São Luís: EDUFMA, 374 p.

Durante muito tempo a literatura antropológica brasileira ignorou quase por completo os terreiros considerados sincréticos. Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Pierre [fim da página 243] Verger, Roger Bastide, Edison Carneiro, entre outros, conferiram enorme importância aos estudos dos terreiros Nagô por considerarem mais próximos à matriz africana, ou mais autênticos.

Críticos destes estudiosos como Reginaldo Prandi e Fernando Brumana afirmam que nesta procura por uma religião “pura” eles chegaram a criar um modelo de culto no papel, excluindo aspectos encontrados no cotidiano dos terreiros que pudessem vir a contrariar seu posicionamento ideológico.

O “caboclo”, entidade controversa presente nos cultos afro-brasileiros, poderia ser incluído nesses aspectos. Apesar da sua constante presença nas casas religiosas afro-brasileiras, o caboclo, como afirma no prefácio à obra a professora Monique Augras, não tinha sido alvo de um estudo maior.

Daí o interesse despertado pelo livro Desceu na Guma: o caboclo no tambor de mina, da professora da Universidade Estadual do Maranhão Mundicarmo Ferretti. O livro nasceu da sua tese de doutorado em Antropologia Social apresentada à USP em 1991 e teve a sua primeira e resumida edição (apenas 250 exemplares impressos) em 1995. Agora em 2000, na sua 2a edição revista e atualizada impressa pela EDUFMA, finalmente a obra chega ao conhecimento de estudantes, professores e público em geral.

A autora esforça-se no processo de definição do papel do caboclo no Tambor de Mina do Maranhão, culto dividido, tal como o Candomblé da Bahia e o Xangô de Pernambuco, em modelos referentes a “nações” (jeje, fanti-ashanti, nagô) e ainda em “linhas” (água salgada, água doce, mata e astral). A Casa Fanti-Ashanti, continuadora, nas palavras da autora, “de uma tradição religiosa africana quase extinta e desconhecida em outras regiões do Brasil” foi o campo de maior concentração dos seus estudos.

A definição a que chega é dos caboclos como entidades intermediárias, situando-se assim entre os vivos e os mortos, os escravos e os trabalhadores livres, os voduns e orixás (entidades no topo da hierarquia mítica) e os índios e eguns (localizadas na base). Estariam de fato relacionados direta ou indiretamente a todos estes, e devido a isso, conseguiriam transitar nos diversos cultos, participando dos seus ritos, sejam louvores às divindades africanas ou festas dedicadas aos índios.

Seriam essencialmente entidades brasileiras, ainda que com descendência européia ou africana, com casos apontados inclusive de “dupla nacionalidade”, mas que se tornam espíritos cultuados e incorporados apenas no Brasil. Algo que os aproxima de outras entidades, tais como os preto-velhos e os boiadeiros e os afasta dos voduns e orixás. A autora ressalta, no entanto, uma característica primordial do caboclo: ser livre.

A liberdade, mais ligada aos arquétipos indígenas, deu margem à confusão criada por alguns estudiosos entre o caboclo e o índio. Estes porém são considerados brutos, selvagens, proibidos de freqüentar os toques das divindades africanas.

Para entendermos a sua posição em relação às demais entidades tem-se, portanto, que se deter à sua origem, enquanto indivíduo vivo e como estava inserido no contexto histórico-social da época, como também, e principalmente, à sua história post- [fim da página 244] mortem, sua posição no terreiro e na cabeça dos filhos-de-santo.

Os caboclos estão ligados originalmente às famílias dos “gentis”, nobres europeus associados aos orixás e santos católicos (como por exemplo D. João, tido como Xangô ou São João). Apresentam, no entanto, comportamento vulgar e libidinoso, como o gosto pela bebida, festas e danças sensuais. De tal forma são considerados de fora do “palácio” e relacionados a “aldeias”.

As narrativas míticas, porém, não encerram o processo definidor da posição hierárquica do caboclo no terreiro. Sua vida, agora como “encantado”, continua em elaboração com a adição à sua história dos fatos relacionados às suas incorporações nos toques. A sua relação com as entidades responsáveis pelas casas e com as donas das cabeças dos chefes dos terreiros também influem no seu desdobramento espiritual.

O aspecto “vivo” dos caboclos como encantados foi encontrado diversas vezes nos cantos entoados no terreiro, as “doutrinas”, sempre ressaltando que eles são, não foram, moram na “Encantaria”, um lugar distante, invisível, abaixo do céu e ligado a Terra por passagens estreitas e que reproduz alguns aspectos deste mundo, como palácios, currais ou jardins.

Segundo a conclusão de Ferretti, é por esse caráter de “múltiplas personalidades”, enfatizado no seu aspecto dinâmico e de fácil adaptação a diversos espaços (sagrados ou não), que permite ao caboclo sobreviver às transformações ritualísticas do Tambor de Mina.

O processo de reafricanização por que passa o culto (em grande parte auxiliado pelo trabalho de antropólogos) ao invés de excluir o caboclo, o fez desenvolver um novo perfil. Como entidade intermediária, procura manter uma convivência pacífica ao lado dos voduns e orixás valorizando sua descendência nobre o que possibilita a sua entrada nos toques. Ao mesmo tempo em que continuam próximos às livres entidades indígenas, o que lhe garante a popularidade entre os filhos-de-santo.

Ao encarar o objetivo e o contexto em que são produzidas as narrativas, a autora procura encontrar a essência da dinâmica social. Para tanto, ela se baseia nas “doutrinas”, nos depoimentos, nas entrevistas e, principalmente, na interpretação dos “mineiros”, os agentes religiosos, da mitologia e dos acontecimentos que os envolvem.

A autora utiliza tais lendas e mitos na compreensão não apenas do Tambor de Mina e das religiões afro-brasileiras mas também da cultura popular brasileira como um todo. O caráter fantástico das histórias dos caboclos, longe de se tornarem empecilhos à pesquisa são o material próprio da sua interpretação.

Nota

1) Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).




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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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