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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 239-241
A RAZÃO NA PÓS-MODERNIDADE
Ariosvaldo da Silva Diniz (1)
“Talvez seja quando o sentimento de urgência se faz mais premente que convém pôr em jogo uma estratégia da lentidão. Assim, confrontados que estamos, todos, ao fim das grandes certezas ideológicas; conscientes, também, do cansaço que invade os grandes valores culturais que moldaram a modernidade; por fim, constatando que esta última já não tem grande confiança em si mesma, é indispensável recuar um pouco para circunscrever, com a maior lucidez possível, a socialidade que emerge sob nossos olhos.”
Com estas palavras, Michel Maffesoli, em seu livro Elogio da Razão Sensível, não só indica os principais elementos que atestam a crise da modernidade mas também abre uma instigante reflexão sobre o que, na ausência de uma melhor denominação, se convencionou chamar de “pós-modernidade”.
É verdade que Maffesoli, neste livro, não entra no animado debate que se verificou nos últimos anos sobre o caráter das transformações sócio-culturais que resultaram na expressão “pós-moderno”. No entanto, ele toma como pressuposto para sua análise a existência de uma série de indícios, internos às sociedades industriais avançadas, que parecem implicar um corte, ou pelo menos introduzem numerosas descontinuidades dentro do modelo de desenvolvimento unilinear e progressivo, que estava na base da sociedade industrial. Antes de mais nada, os rápidos progressos da tecnologia aparecem sob o signo da ambigüidade. Se, de um lado, concorrem para a melhora das condições de vida, de outro, ameaçam a própria existência da vida sobre o planeta.
No plano da organização política, o aparelho estatal, outro grande vetor da modernização, parece mergulhado numa crise interminável justamente na sua pretensão de assegurar racionalidade e universalidade. O seu projeto universalista de assistência e participação social está premido entre a tesoura da crise fiscal, que impõe limites intransponíveis de despesa, e as sempre crescentes expectativas dos cidadãos. A falta de satisfação das demandas se traduz em deslegitimação do próprio Welfare State, na perda de consenso social e na queda da participação política.
Reflexões semelhantes poderiam ser elaboradas para mostrar também os outros processos estruturais de modernização - da urbanização à industrialização, do sistema de comunicação e transportes à diferenciação social, da participação política à expansão do sistema educativo, da redução das diferenças sociais ao aumento de estratos médios - conduzem, como efeitos do seu próprio dinamismo intrínseco, a resultados que contradizem a pretensão de racionalidade instrumental e de universalidade entendida como neutralização dos valores, implícita na ideologia da modernidade. Constata-se, enfim, uma profunda crise dos mitos fundadores da modernidade: a sociedade do trabalho, a representação política e o saber científico.
Começa a desenhar-se, assim, entre os cientistas sociais uma crescente consciência de que as mutações em ato na sociedade não se interpretam facilmente dentro da ótica tradicional do procedimento [fim da página 239] indefinido da modernização, entendida como difusão do princípio de racionalidade em todas as esferas da vida social.
O ponto de partida do livro de Michel Maffesoli, Elogio da Razão sensível, parece resultar também do entendimento de que começamos a viver uma mutação radical na própria autocompreensão da sociedade contemporânea, que por muitos vem denominada com o prefixo “pós”: “pós-industrial”, “pós-secular” e “pós-moderna”. Para descrever o mesmo fenômeno, há ainda outras expressões usadas - sociedades industriais avançadas, capitalismo maduro, etc., o que revela o grau de incertezas sobre a matéria. A denominação “pós-moderno”, entretanto, tem sido muito difundida ultimamente através da reflexão sobre a crise da modernidade aberta por diversos intelectuais e manifestada em nível reflexo como filosofia do “pensamento débil”. Assim, a condição “pós-moderna” representa, para alguns autores, uma fase posterior à do processo de secularização, na qual a própria experiência da secularização já estaria esgotada. Neste sentido, o “pós-moderno” se apresentaria pela ausência daquelas contraposições fortes, das quais a tese da secularização tomava vigor. Desprovido, portanto, de fundamentos absolutos e com a transformação da própria idéia de verdade, o “pós-moderno” não seria nem a superação da modernidade, nem a oposição a ela, mas sim a sua derivação e a sua dissolução. Dito de outra maneira, a sociedade “pós-moderna” seria uma sociedade “pós-secular” na qual a ênfase no trend secularizante, finalmente deixada de lado, permite perceber numerosos fenômenos de desecularização.
Preocupado também com os desafios suscitados pela pós-modernidade, cujo traço mais marcante parece ser a fragmentação do campo social, onde os vínculos econômicos, culturais e profissionais não funcionam mais como fatores de unidade durável, Maffesoli se pergunta o que isso representa em termos de mudanças nas formas tradicionais de compreensão do mundo. Com efeito, diante das profundas transformações em curso não estariam claramente evidenciadas as insuficiências das grades tradicionais de compreensão, pois além de descreverem um mundo que não existe mais, ainda obscurecem nossa leitura dos fenômenos tais como se desenrolam diante de nossos olhos?
A tese do autor é a de que as razões da razão racionalizante, vigente durante estes dois mil e quinhentos anos no pensamento Ocidental teria esgotado a sua capacidade de compreensão do mundo atual. Daí ele sugerir uma nova proposta teórica que, por oposição às razões da razão racionalizante, se instituiria sobre as intuições e as fulgurâncias da razão sensível.
O que viria a ser essa razão sensível e qual a sua eficácia epistemológica? Segundo o autor, a razão sensível procura compatibilizar pares até então dicotômicos: objetivo/ subjetivo, intelecto/ intuição, razão/ emoção, etc. A sua eficácia epistemológica residiria na maneira de abordar o real em sua complexidade fluida, levantando a topografia do imprevisível e do incerto, seguindo as linhas de fusão e efervescência do social e apreendendo o rumor abafado das redistribuições da vida coletiva.
Essa nova proposta epistemológica, denominada por [fim da página 240] Maffesoli de deontologia, seria uma nova sensibilidade surgida da própria desconfiança com a modernidade, com o fim das certezas ideológicas, o cansaço dos grandes valores culturais, etc. Segundo o autor, a crise dos valores ideológicos, institucionais, políticos nos leva a apostar numa sabedoria relativista: “(...) Quando o objetivo distante esmaeceu-se, podemos conceder às situações presentes, às oportunidades pontuais, um valor específico” (p. 12).
Maffesoli nos adverte, entretanto, que o relativismo proposto não constitui uma renúncia ao intelecto, pois a deontologia é precisamente um esforço intelectual para pensar o mundo a partir de uma ética das situações. Nas palavras do autor, essa deontologia é um “saber erótico que ama o mundo que descreve” (p. 14), uma sociologia “da carícia, sem mais nada a ver com o arranhão conceptual” (p. 19).
Essa nova postura epistemológica implicaria, conforme o autor, numa operação intelectual de substituição da “representação” pela “apresentação”. No seu entendimento, a “representação” foi uma palavra mágica em todos os domínios da modernidade, pois pretendeu dar conta do mundo em sua verdade essencial, universal e incontornável, reduzindo-o e aperfeiçoando-o sob o comando do conceito. A crítica à investigação calcada na “representação”, desenvolvida pelos “novos filósofos” e retomada aqui por Maffesoli, tem enfatizado a sua ilusão mimética ou especular que repousa sobre os efeitos prolongados do “estado de espelho” e da identificação, quando toma a imagem pelo real, por identificação intempestiva do objeto. Segundo essa postura teórica, o sistema de “representação” nada mais é do que sintomas paranóicos, isto é, um raciocínio que substitui pela identificação o ato arbitrário ou convencional de designação, sobrepondo o signo ao referente.
A “apresentação”, por sua vez, consiste numa postura epistemológica que parte do princípio de que não se pode jamais esvaziar totalmente um fenômeno, pois é preciso reconhecer em cada situação a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas; o corpo e o espírito interpenetrando-se. Assim, o autor nos propõe uma “metanóia” (que pensa ao lado), por oposição à “paranóia” (que pensa de modo impositivo).
A prática deontológica proposta por Maffesoli é, portanto, uma clara recusa do racionalismo puro e duro, mas é também, como faz questão de frisar, um não ao irracionalismo. Neste sentido, sua proposta teórica difere de muitas reflexões sobre a sociedade “pós-moderna”, pois, mesmo criticando a razão abstrata, não abdica do uso de outras razões, como a razão interna ou sensível.