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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 115-122


A MARCA AMBÍGUA DA INDIVIDUALIDADE:
A FOTOGRAFIA E O SENTIMENTO AMOROSO

Mauro Guilherme Pinheiro Koury (1)

 


O interesse deste ensaio é a discussão do papel da fotografia na qualificação e na compreensão do sentimento amoroso. Busca estudar o amor na contemporaneidade tendo como pano de fundo o entendimento do processo de formação do indivíduo na sociedade ocidental, enquanto individualidade e enquanto individuação.

Interessa a relação ambígua entre a submissão e a posse que o amor na contemporaneidade parece provocar na pessoa que por ele é tocada. O estudo da ambigüidade da dor e do desespero de não ter limites, do tudo possível como argumento (i)lógico do buscar o outro que nunca está no lugar procurado, e ao mesmo tempo do aparente enriquecimento com ausências e pequenas presenças que parecem ser sempre, sempre finais.

É o estudo da transgressão e de sua contenção através da amorificação e sua personificação pela fotografia. A fotografia parece revelar ao amante o seu entusiasmo ou a sua anestesia, como um ato solitário da presença eternizada no retrato ou no retratar do ser amado. Como uma espécie de perda ou de morte sintonizada, objetivada, clara em sua presença de morte e dos limites possíveis onde a dor pode-se segurar como processo de luto, como introjeção e transformação do outro perdido em vago sentimento de uma presença querida e amena.

Uma espécie de escudo para não se encarar o vazio de perto. Mesmo que sempre possa existir um luto mais transgressor, patológico, a virar melancolia em sua irrealização. Que parece virar o rasgar o véu social e transgredir, no sentido da ausência se transformar em presença perdida e sem volta.

Mas, como explorar os pontos limites das fronteiras? Na extrema dor do amante, quando o indivíduo não consegue ir mais além do que externá-la para si, precisa de calor, de toque, de ser protegido, e não o sabe ser. Medo do ridículo, de mendigar, pavor da piedade. Como perseguir a curiosidade de saber até que ponto a solidão da pessoa cria espaços de liberdade, e até que ponto pode-se compreender a liberdade como o saltar fora e como impulso que faz ir? Como esse impulso, se existe, pode ser nominado.

A busca de compreensão da dor da individualidade, da individuação contemporânea, faz esse ensaio procurar perseguir a relação tênue entre o amor, enquanto emoção que movimenta indivíduos, e a fotografia, enquanto aparente presença eterna e enquanto personificação e posse de um eu sobre um outro e sobre si mesmo. Apesar de histórias sempre específicas, será que não possuem um fundo comum?

Tristeza clara, evidente, física, e a presença massacrante de algo que [fim da página 115] fascina, que emociona, que aguça os sentidos e a curiosidade, mas que não se sabe nominar por inteiro. Apenas a sensação de tocar, apenas o sentir que tem que ir mais além para a compreensão tornar-se realidade. Mas, o que é ir além senão o ousar o próprio fim?

Como a razão objetiva tensiona a curiosidade de um ser individualizado e amorificante à viver a busca de compreensão da própria dor? Na impulsividade que a dor intensa permite, a razão às vezes se obnubila e parece surgir a linguagem do corpo, enquanto realidade sensível, pulsional.

Se o retrato falasse

Este ensaio acompanha, para pontuar a análise, os versos de Chico Buarque em uma letra clássica de sua extensa musicografia, intitulada Retrato em Branco e Preto. Nesta letra, como em tantas outras, Chico nos fala da dor do amor, tendo o retrato fotográfico como metáfora.

Dor solitária, passada internamente no sujeito que a sofre, como doença incurável que corrói a alma. Embora exista um outro nessa relação amorosa, esse outro é sempre inatingível, se passa como um significado intrínseco à alma que sofre e se tortura nesse embate interior do mim para comigo: “o que eu faço /contra o encanto/ desse amor que eu nego tanto,/ evito tanto /e que no entanto/ volta sempre a enfeitiçar”.

A paixão amorosa é essa espécie de encantamento, de feitiço a que alguém é submetido e a ela sucumbe. Stendhal em Do Amor (1993), escrito no limiar do século XVIII, informa sobre o amor paixão ou do tipo Werther(2), o que “enlouquece pelo excesso de sensibilidade” (Stendhal, 1993: 181), como uma “(d)as fases da doença da alma chamada amor (Stendhal, 1993: XLVIII). Dissocia-o de um outro tipo, que chamará de amor de vaidade ou Don Juan, aquele que “reduz o amor a ser apenas um assunto comum” (1993: 183) ou que o circunscreve aos limites do tédio (1993: 188).

Informa que o caráter Don Juanesco do amor requer um número maior de virtudes estimadas na sociedade, - como intrepidez, agilidade de espírito, vivacidade, sangue frio, entre outras, - onde a publicidade do ato é um requisito necessário ao triunfo. Diferente do amor à la Werther, onde o segredo, o desespero e a morte são elementos fundantes, e considerados depreciativos pelo social.

Nos dois tipos ou caráteres de amor, porém, existe um elemento comum que os liga e os fazem contemporâneos de um mesmo olhar. Este elemento se qualifica na supremacia do indivíduo em relação à sociedade. Os códigos amorosos passariam a representar tipos de caráter individual no enfrentamento ou embate do amor. Um mais conforme a um tipo de sociedade que se ajustava aos padrões mercantis que começavam a virgir e que afloraria em toda a sua potência e se consolidaria nos séculos seguintes. Outro, qualificado como depreciativo pelo social, mas que faz emergir uma individuação no sujeito amorificado, que se põe contra o social ou em contraste a ele, como um ser que guarda em si um segredo, uma incompletude distinta da sociedade a que faz parte, e que o faz uma totalidade diferente, enquanto subjetividade.

Ambos os tipos de amor trazem consigo um tipo de ação transgressiva [fim da página 116] entrelaçada de uma espécie de fragmentação e privação. Algo como um percurso nunca preenchido entre o sujeito que deseja e o objeto desejado. Uma espécie de melancolia, enfim, que, segundo Olgária Matos citando Mario Galzigna, em seu L’enigma della malincoria. Materialli per una storia, se encontra sempre presente como uma espécie emblemática de uma proximidade perdida, como sinal de uma recusa enigmática à exterioridade do tempo histórico, em qualquer genealogia do indivíduo moderno (Matos, 1999: 19).

Nos dois tipos de amor também pode-se achar, como conseqüência dessa individualidade resgatada como tragicidade e laceração, outra característica comum à época e a mentalidade que vinha se formando. Esta característica é denominada por Susan Sontag (1993) como o espírito de colecionador. Em ambos os caráteres a coleção ou o ato de colecionar é fundamental para o constructo amoroso. Uma espécie de economia moral do ato amoroso parece assim passar por uma eclipse ou por uma exacerbação do amor, retirando-o do social para o íntimo ou reduzindo-o a objetos descartáveis ou de coleção, como forma de deter os efeitos da individuação de quem sofre os perigos ou a privação que tal processo representa para o social (Koury, 1996: 34).

A mentalidade mercantil em processo formativo na modernidade se consubstanciaria por essa dualidade aparentemente contraditória de, por um lado, elementos abstratos que não guardariam em si nada mais do que o sentido de equivalência com qualquer outro elemento em uma relação qualquer de troca. O que ganharia assim o valor equivalente ou de equivalência de uma mesma e qualquer relação, e só existindo nela e através dela como objetos descartáveis e sem outro valor que não o estabelecido na e pela troca.

Por outro lado e ao mesmo tempo como elementos de coleção, cujo valor estaria estabelecido não através do objeto em si mas, e principalmente, pelo valor demonstrativo da apropriação e quantificação do produto, quer em número quer em espécie. A posse do objeto ou o efeito de já o ter possuído associado à quantidade numérica ou de espécimes de produtos promoveria à coleção o estatuto de valor.

A relação amorosa assim, também assumiria as características de valor de uma sociedade mercantil. Características essas que se realizariam seja como troca, a partir de um equivalente geral que desclassificaria a relação amorosa como objeto único, tornando-a mercadoria, seja como coleção, onde a categoria valor estaria não no sentido único da relação amorosa mas na sua raridade e na sua dificuldade, ou na sua eloqüência. Enquanto elemento objetal ou na sua eloqüência ou na sua eloqüência a ser conseguido, conquistado e domado, ou enquanto arte de persuasão, de comoção ou de encantamento do outro à simulação amorosa daquele que seduz ou se deixa seduzir.

Reduzido a tédio, o amor à la Don Juan funda-se pela coleção de conquistas e de sua publicização, é exterior, social, e representa a si mesmo como ou enquanto vaidade. A enumeração das conquistas perfaz a coleção que norteia a construção da memória através de sua quantificação e estratificação.

Condenado ao desespero solitário, o amor a la Werther é construído pela coleção de lembranças. Pergunta Stendhal (1993: 71): “como retratar a felicidade [fim da página 117] se ela não deixa lembranças?”. Alguns fios de cabelo ao vento, um olhar que comove, um gesto ao acaso, uma cor, uma flor, um odor que trazem o objeto amado à recordação firmando-o naquele presente pela substituição e, assim, presentificando-o e gratificando o amante pela ilusão da retenção do amado, e de sua compreensão. Ou, a repetição de cenas de rejeição do objeto amado, da insegurança de não se saber também amado, de uma mão que se retira, de um olhar que não se cruza, ou de aparente desdém.

De o ser amado nunca estar no local que deveria ser localizado, como diz Barthes (1990), faz parte dessa coleção. Uma coleção formada por sinais que preenchem de sentido o ser e o estar enamorado, em criações de júbilo ou temor. A felicidade amorosa assim seria essa coleção de lembranças, esse depositário ambíguo de um prazer em dor, que arrasta, que envolve, ao mesmo tempo em que se quer desligar, e no esforço de desligamento retoma o encanto: “com seus mesmos tristes/ velhos fatos/ que num álbum de retrato/ insisto em colecionar”.

O espírito de colecionador, deste modo, dá significado ao amor na contemporaneidade das sociedades ocidentais a partir dos finais do século XVII até a atualidade. A arte de amar, o sentimento amoroso, passa pelo registro das conquistas efetivadas Don Juanescamente, ou pelo registro das lembranças do processo amoroso, solitário e obcecante do repassar contínuo dos fatos ou símbolos amorificados. Das marcas do amor.

Para Proust (1994), a conquista do processo amoroso só advém a partir da morte da relação amorosa. É quando o sujeito pela perda consegue reconstruir a totalidade do ato, dissecando-o e recompondo. Estranhando-o e retendo em si apenas os liames sentimentais que o fizeram apaixonado. É o que Freud (1980) irá chamar, um pouco mais tarde, de processo de luto, onde a perda irá ser interiorizada no sujeito que a sofre, retendo em si os elementos reconstruídos e sentimentais daquele ou daquilo que se perdeu.

A tendência da nova sensibilidade emergente parece ser a de negar o ato amoroso e o apaixonamento na esfera social. Esta tendência parece vir sendo constituída através da ênfase no amor como código ameaçador das regras sociais, e da resignação social como constructo possível do ser moral na modernidade. O que amplia a esfera e o espaço de atuação do indivíduo indiferente e fragmentado no social, através da resignação do eu constrangido na intimidade.

“Trago o peito tão magoado/ de lembranças do passado/ e você sabe a razão./ Vou colecionar mais um soneto/ outro retrato em branco e preto/ a maltratar meu coração”. O repassar contínuo das marcas de amor feito coleção, que acrescenta a cada repassar mais um soneto ampliando o álbum-memória; o soneto como um retrato em branco e preto a maltratar o coração de quem vive uma paixão ou sofre uma perda amorosa.

Retrato em branco e preto

Barthes (1984) escrevendo sobre fotografia revela o lado subjetivo do olhar de quem vê. Os retratos guardados de um amor são mais do que registros do real, dizem da relação a quem nela permanece em um tempo posterior, ou que a viveu. Fala de um passado, e presentifica esse passado como um marco de sua existência, como prova de um real, e ajuda simultaneamente a encarar esse registro sentimentalmente, a dar vida às situações passadas e agora fixas no [fim da página 118] retrato.

Resignificam o olhar no ato de evocar e qualificam o olhar como posse, como argumento de memória em presentes passados conformadores de uma singularidade. Para um outro olhar qualquer o conjunto ou coleção de fotos podem não significar, ou não significam nada além do que registros corriqueiros sobre desconhecidos e enquanto tal nada representam do que o registro em si. A qualidade do afeto na coleção contida é uma qualidade eminentemente simbólica do colecionador que as elegeu como prova - ou lembranças, - dos significados de amor vivificados enquanto experiência pessoal(3).

A fotografia como registro sentimental e como registro real. Sentimento e realidade se confundem no processo imaginário do fotográfico. As lembranças agora são mais visíveis e é possível buscá-las no álbum de retratos. Como retratos em branco e preto, isto é, como um registro imaginado através da névoa que a fotografia em preto e branco permite. A realidade fica como que envolta no mistério das nuances de cinzas. Tonalidades que demarcam o contorno dos registros e ao mesmo tempo lançam possibilidades de atuação colorida das lembranças, como em um soneto.

Colecionadas, as lembranças fotográficas permanecem como uma curva de vida. Na coleção encontra os sentidos dos amores passados e presentes, como uma prova à imaginação da realidade do que foi sentido.

A marca ambígua da individualidade entre ser social e ser individual, e portanto não social por excelência, é refeita socialmente pela prova dos sentimentos como lembranças que podem ser compartilhadas e comprovadas via fotografia. Prova-se a si mesmo e aos outros os sentimentos vividos.

Como diz a amostragem das conquistas ao estilo Don Juan: as mulheres ou os homens conquistados no transcurso da vida por um ser amante.

Sempre posterior, a fotografia representa o sentimento vivido no que já passou. Freud, em uma carta endereçada a sua futura mulher, Martha Bernays, em 1882, revela o valor da fotografia enquanto recordação do que se tem e não está presente, ou do que não se tem mais:

“Teu retrato encantador. Apreciei-o pouco enquanto tinha o original diante dos olhos; mas, agora, quanto mais olho para ele, mais ele se parece com a minha amada. Fico esperando as faces pálidas se ruborizarem, ganhar o tom que tinham nossas rosas, e os braços delicados saírem do quadro para pegar minha mão; mas a querida imagem fica imóvel, apenas parece dizer: paciência! Paciência! Sou apenas um sinal, uma sombra lançada sobre o papel.” (Freud, 1966:17-20)

Revela também o outro lado da fotografia, é apenas um registro; se vale como prova do real não é o real em si, mas uma realidade que foi como “uma sombra lançada sobre o papel”, ou como um soneto: um retrato em branco e preto [fim da página 119] a maltratar o coração ou a aliviar o coração (paciência! Paciência!) do olhar que procura o consolo no retrato estampado.

Pode indicar também outros predicados de conteúdo moral. Em outra carta a sua futura mulher Freud, apaixonado, revela sua fraqueza diante de um tipo feminino que o chamou a atenção e o papel do retrato de sua amada como um balizador moral de seus sentimentos. Diz Freud:

“Fiquei desagradavelmente impressionado pelo fato de que as duas vezes em que ela esteve aqui tua foto, que geralmente não se move, caiu da minha escrivaninha. Não gosto destes sinais e, se fosse necessária uma advertência... mas não foi necessário.” (Freud, 1966: 229-230)

A fotografia, assim, coleciona os sentimentos de amor, bem como sedimenta conteúdos sociais morais sobre ações involuntárias ou voluntárias da ou na conduta amorosa. Na extensa literatura folhetinesca e romanesca, a presença do retrato revela estas duas facetas, a de suprir a presença do objeto amado, ou de situações fixas no presente passado da fotografia que remetem sentimentalmente ao fato amorificado, e a de impor um argumento moral de presença ausente do outro da relação amorosa.

Em Freud, o retrato parece insinuar o desejo aflorado e proibido. Nos folhetins e romances a fotografia do outro da relação amorosa ou reclama o olhar proibido ou é sempre coberta ou guardada nos momentos do desejo desperto por um terceiro na relação.

A ausência do original é presentificada, enquanto culpa através do registro fotográfico. O desejo proibido porque comprometido com as regras da monogamia ou do casamento resignado e feliz, instauradas pelo cristianismo na modernidade ocidental, como um contraponto às paixões.

Como um controle social ao mito das paixões exaltadas (Kristeva, 1988). A presença da fotografia amada impõe regras de conduta, e ao desviar-se dela, mesmo não intencionalmente, o retrato revela sua condenação. Daí os amantes sistemáticos, os de caráter Don Juan, que querem conservar uma relação duradoura, afastarem o olhar do retrato do seu olhar. Como se o retrato falasse, os condenando moralmente.

O retrato porem é ambíguo na sua caracterização moral. Em sua visão pública personaliza e dá status as relações nominadas socialmente e que se quer permanentes: o namorado, a namorada, o noivo, a noiva, o esposo, a esposa. Expostas são referências necessárias ao estatuto social de quem as tem, comprovam a estabilidade familiar ou sua construção. São reverenciadas como símbolos significativos da vida social, isto é, pública do sujeito.

Podem as fotografias, porém, representar a linguagem da sedução e do pecado. Como também a da solidão e do sofrimento. Guardadas à sete chaves, são atributos pessoais das conquistas ou das não realizações. Umas e outras contornando uma história pessoal que se contrapõe com a história social do sujeito e que às vezes se mesclam, vindo à tona a linguagem do desejo e das paixões sobre o discurso resignado e feliz socialmente aceito. Pequenos momentos de individuação, onde a vaidade e a tragédia se mesclam no conclamo público de um trajeto pessoal, que dependendo da circunstância, pode ser [fim da página 120] reverenciado ou condenado. A descoberta das paixões encobertas dão prestígio a Don Juans ou levam à morte aos Werthers.

Medos, situações, construções de cada pessoa aparecem assim como sempre únicos. E na sua individualidade, sem possibilidade de hierarquias. Os conceitos de mais, menos, maior, menor são assim sentidos como qualidades ou quantidades que não importam à vivência da dor do tornar-se sujeito na vivência da paixão. Nesse aspecto, a beleza da dor que uma visão de enamoramento propicia, constrói uma pessoa, uma individuação. A dor do amor é dor: ponto. Íntima, encoberta.

Sempre trágica, sempre bela, sempre cheia de possibilidades de destruição, no melhor sentido da palavra que é o de findar, de não ter nunca novos começos. Mesmo na coleção, a unicidade de cada objeto está no fim que ele próprio remete a si mesmo, enquanto objeto conquistado e de conquista.

Sempre finalização, no sentido de fins que se remetem a si mesmos, que absorvem-se em uma espécie de canibalismo amoroso, que fascina pela possibilidade do corte, do nada, ampliando a tensão entre indivíduo e sociedade, entre mundos interno e externo. O fim enquanto afirmação, enquanto exercício extremado da individuação.

Fascinante e ao mesmo tempo alucinante pela existência de códigos externos que não se podem deixar de se levar em conta: existem situações e existem pessoas que impedem o gozo extremo da dor apaixonada.

Transformadas em lembranças íntimas ou em desafios secretos, a coleção de fotografias, ou a fotografia especial de alguém amado revelam-se em instrumento de individualidade: através desses registros se estrutura um conjunto de significados que condicionam o olhar para o interior de si mesmo. A fotografia criando um liame entre as sensações subjetivas do vivido e a prova exterior desta mesma vivência.

Secretas ou públicas enumeram vestígios de um passado, marcam este passado, o torna objetivamente real. Melhor, um real sempre presentificado. Um álbum de retrato que insisto em colecionar, que permite retornar nos já conhecidos passos desta estrada, cujo segredo eu sei de cor. Atemporal como são as paixões, a fotografia provoca no olhar que a evoca a presença de momentos passados que são remetidos ao olhar como presentes passados corporificados na sua fixidez de registro.

No registro fotográfico evoca-se imagens passadas como presente, sem tempo e sem espaço onde o olhar é remetido a evocar e, nesse trazer para si, possuir. Um peito tão magoado de lembranças de um passado que insisto em colecionar e, no manuseio desta coleção de retalhos de amores em fotos fixados apossar-se do outro, mesmo que na proximidade distanciada presente que o olhar fotográfico permite.

Sempre íntima nas leituras de cada olhar é ao mesmo tempo prova eficaz de sua realidade, de sua sociabilidade. Através da coleção fotográfica é possível provar, em todos os sentidos do verbo. Através dela a individualidade ganha instâncias de sociabilidade na sociedade ocidental, onde o real e sua prova permite a troca baseada na mercantilização dos objetos, pela vaidade ou pelo desprendimento. Onde o secreto é sempre acrescido de valor. Como retrato em branco e preto onde a prova do acontecido é revista nas brumas do olhar em [fim da página 121] tonalidades cinzas, que remetem ao social com o sabor sempre de inadequação; mas uma espécie de inadequação sentimental, atenuada pela posse real que o registro fotográfico onipotencializa.

Referências Bibliográficas


Notas

1) Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Imagem e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociologia da Emoção (Campus I - João Pessoa).

2) Relacionando com o célebre romance de Goethe.

3) A destruição da coleção também. O ato impulsivo de rasgar, queimar ou destruir uma fotografia é uma forma amorificada do fim que o outro impõe a relação, da desilusão, do ódio de não possuir no sentimento pleno de rejeição a que o amante sempre se vitimiza. (Argumento que vale um texto novo, levantado na discussão sobre o original deste ensaio no Núcleo de Fotografia de Campinas - NUFCA).

RESUMO
A MARCA AMBÍGUA DA INDIVIDUALIDADE:
A FOTOGRAFIA E O SENTIMENTO AMOROSO


Este ensaio tem por objetivo discutir o papel da fotografia na qualificação e na compreensão do sentimento amoroso. Estuda o amor na contemporaneidade tendo como pano de fundo o entendimento do processo de formação do indivíduo na sociedade ocidental, enquanto individualidade e enquanto individuação. Interessa compreender a relação ambígua entre a submissão e a posse que na contemporaneidade o amor parece provocar na pessoa que por ele é tocada. É o estudo da transgressão e de sua contenção através da amorificação e sua personificação pela fotografia.
PALAVRAS-CHAVE: fotografia; amor; individialidade.

ABSTRACT
THE AMBIGUOUS MARK OF INDIVIDUALITY:
PHOTOGRAPHY AND THE LOVING FEELING


This essay has for objective to argue the role of the photography in the qualification and the understanding of the loving feeling. It studies the love in the contemporaneity having as deep cloth of the agreement of the process of formation of the individual in the occidental society, while individuality and while individuation. It interests to understand the ambiguous relation between the submission and the ownership that in the contemporaneity the love seems to provoke in the person who for it is touched. It is the study of the trespass and its contention through the amorosity and its personification for the photography.
KEYWORDS: photography; love; individuality.



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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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