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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 213-235


BOURDIEU E A SOCIOLOGIA DA ESTÉTICA(1)

Jonathan Loesberg (2)




O projeto teórico de Pierre Bourdieu se inicia - não de maneira precisamente cronológica, mas com uma lógica intrínseca - como uma tentativa de formulação de um método de análise sociológica e antropológica que se divide entre a simples reprodução das percepções sobre a cultura estudada e uma codificação científica dessas percepções dando-lhes forma objetiva, mas não uma forma que corresponde a qualquer coisa nos funcionamentos daquela cultura (3). Levado pelas exigências deste projeto, Bourdieu acabou definindo uma série de conceitos e discussões que recentemente têm revivificado, entre os teóricos e críticos literários, um interesse maior pela sociologia da literatura. Em particular, mais especificamente em La distinction: critique sociale du jugement(4), ele ofereceu uma explicação poderosa do “gosto” em todos seus significados, indo desde as escolhas na arte até as escolhas no vestuário, mobília, e do mesmo modo, o gosto pela comida, ambos como um assunto subjetivo unificado e como um método para produzir e reproduzir as diferenças de poder entre classes sociais. Em Ce que parler veut dire, desenvolveu a mesma análise no tema da linguagem, afirmando que o significado, tanto lingüístico quanto literário, depende das mesmas atividades de poder e diferenciação social(5). [fim da página 213] Também numa série de artigos sobre Flaubert em particular e estética em geral - que Bourdieu promete como um próximo livro - discutiu novamente a estética e o esteticismo na França do século XIX, nos termos da mesma análise sociológica.

Todos estes trabalhos explicitamente contestam as teorias formais de cultura, de idioma, de estética, de literatura, com uma análise que discute a força principal destes discursos como criadora e mantenedora das hierarquias de poder e dominação. O próprio Bourdieu considera esta análise fundamentalmente transgressora ao comentar no prefácio à edição em inglês de La distinction que, “embora o livro transgrida um dos tabus fundamentais do mundo intelectual, ao relacionar os produtos intelectuais e seus produtores a suas condições sociais de existência - e também, sem dúvida, porque assim o faz - não se pode ignorar completamente ou mesmo desafiar as leis do decoro acadêmico ou intelectual que condenam como bárbaro qualquer tentativa para tratar a cultura, aquela encarnação presente do sagrado, como um objeto de ciência” (1984: xiii). Esta afirmação de transgressão é bastante absurda. O projeto de Bourdieu é, certamente, um dos principais enfoques no que diz respeito aos estudos literários. Mas o que chama nossa atenção sobre suas análises não é a novidade de pensar que literatura, formação canônica, cultura e linguagem têm alguma conexão com a manifestação do poder social, o que nos interessa é o método que ele desenvolveu para articular esta conexão mais claramente. Em outras palavras Bourdieu definiu, com detalhe teórico e precisão, algo que os críticos literários têm procurado já há algum tempo.

Ao trabalhar as conexões entre os vários aspectos das teorias de Bourdieu neste artigo não quero, realmente, disputar esta afirmação sociológica central a serviço de algum formalismo reformulado. Desse modo, o que pretendo é abordar outro aspecto insinuado no título deste texto, e não apenas a análise sociológica da estética, mas o tipo de análise sociológica que a estética produz. Sem tentar mostrar que Bourdieu reproduz a estética que ostensivamente contesta, discutirei esse tema em momentos cruciais, nos momentos em que pontualmente suas idéias se movem do campo antropológico para o campo literário e nos quais Bourdieu conduz claramente aos usos que os críticos literários fazem de sua teoria, desdobrando as estéticas ao mesmo tempo em que as analisa. Esta dependência não mostra nenhum problema de reflexão formalista infinita, mas basta para a análise que os críticos de política fazem da visão de cultura de Bourdieu, que só pode ser esboçada completamente por uma análise da sociologia que determina a volta para tal discurso, uma análise que considere Bourdieu, simultaneamente, estético e sociológico.

Ambos os argumentos de Bourdieu sobre como a cultura funciona e o modo de análise que aplica à cultura e à estética para fazer este argumento tem suas raízes na teoria de prática que ele opõe ao estruturalismo antropológico. Para entender a base das preocupações culturais de Bourdieu, então, nós temos que entender primeiro a meta de sua teoria. Ele começa por propor três modos de conhecimento do mundo social, cada um existindo num relacionamento dialético com cada um dos outros. A primeira forma, que ele tanto chama de primária ou fenomenológica, “explicita a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é, a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do mundo social [fim da página 214] como mundo natural e evidente, sobre o qual, por definição, não se pensa e que exclui a questão de suas próprias condições de possibilidade” (1983: 46). Este modo de saber é a experiência que os participantes de um mundo social particular têm dele. Não está disponível a um observador, desde que ele não o conheça como um participante, nem é descritível por um participante sem que ele deixe de experimentá-lo como um participante: “A pessoa realmente não pode viver a convicção associada com condições profundamente diferentes de existência, quer dizer, com outros jogos e outras posições, menos ainda dando a outros os meios de reviver isto pelo empinado poder do discurso” (1990: 68). Efetivamente, este conhecimento primário cria o objeto para pesquisa e discurso, mas não tem nenhuma outra relação com o conhecimento teórico ou antropológico, seja como meta ou como método.

O estruturalismo não é visto por Bourdieu - que o critica na maior parte de sua teoria - senão como um começo necessário para o conhecimento antropológico: é um “momento necessário de toda pesquisa” por ser um “instrumento de ruptura com a experiência primeira e da construção das relações objetivas” (1983 c: 60). O estruturalismo, a que Bourdieu também chama objetivismo, realiza esta ruptura abandonando a tarefa impossível de reproduzir a experiência primária por uma descrição das conexões e relações entre as práticas que observa sem experimentar:

“Os lustros filosóficos que, durante certo tempo, rondaram e negligenciaram o estruturalismo, escondendo o que realmente constituiu sua novidade essencial - a introdução nas ciências sociais do método estrutural ou, mais simplesmente, do modo relacional de pensamento que, quebrando com o modo substancialista de pensamento, conduz a que se caracterize cada elemento pelas relações que o unem com todos os outros em um sistema.” (1990: 4)

E Bourdieu nunca abandona a tarefa de descrever relações. Seu descontentamento com o estruturalismo pertence ao status das relações e estruturas que posiciona.

Essencialmente, para Bourdieu, o estruturalismo hesita porque produz as estruturas que usa para explicar experiências e práticas com uma atenção para relação lógica que não tem nenhuma conexão com as regras que de fato produzem a prática. O estruturalismo de relações propõe explicações vindas de fora de prática:

“O ‘agrupamento de material factual’ executado pelo diagrama é, em si mesmo, um ato de construção, realmente um ato de interpretação... a dificuldade se tornou maior pelo fato de que a interpretação não pode demonstrar qualquer outra prova de sua verdade senão sua capacidade para responder pela totalidade dos fatos de um modo completamente coerente.” (1990: 10-11)

De fato, diagramas e estruturas lógicas provêem coerência para uma massa de experiências primárias, mas nada consegue mostrar que a coerência determina como as práticas acontecem. Elas são superposições externas, projetados para compreender, mas com nada que mostre a compreensão como [fim da página 215] algo além de um constructo interpretativo.

Mas Bourdieu discute a arbitrariedade do objetivismo além de suas meras estruturas externas. As estruturas e diagramas propostos derivam de uma lógica que, a princípio, não tem nenhuma conexão com as práticas que as estruturam:

“Em contraste com a lógica, um modo de pensar que funciona tornando explícito o trabalho do pensamento, a prática exclui todas as preocupações formais. Uma atenção reflexiva para a ação, quando acontece (quase invariavelmente só quando os automatismos são rompidos), permanece subordinada à perseguição do resultado e para a procura (não necessariamente percebida deste modo) pela máxima efetividade do esforço gasto. Assim, não tem nada em comum com o ato de explicar como o resultado foi alcançado, ainda menos de buscar entender (para a causa de compreensão) a lógica de prática que desconsidera lógica a lógica.” (1990: 91)

Porque um agente que se ocupa de uma prática não tem nenhum interesse em uma explicação formal daquela prática, mas somente na “máxima efetividade do esforço gasto”, qualquer explicação formal simplesmente não pode corresponder a qualquer coisa dentro da prática que produz isto ou determina sua forma. Até mesmo um desígnio subconsciente ou motivação, ainda não pôde corresponder aos tipos de diagramas que o estruturalismo formal propõe, porque as regras que governam a prática simplesmente não seguem uma lógica formal, uma “lógica lógica” (6). Parece que alcançamos um impasse familiar para o qual os críticos do relativismo do conhecimento objetivo mostraram carinho considerável. Por um lado, uma pessoa não pode descrever experiência primária e ainda carregar o sentimento que a faz ser primária. Por outro, nas descrições que a pessoa pode oferecer falta justamente a precisão porque, faltando o sentimento de primariedade, elas não correspondem à experiência primária(7).

Recusando-se a abandonar o estruturalismo como ponto de relação e conexão, Bourdieu teve que definir um modo de descrever estas relações e regras que nem são impostas pelo exterior nem a partir da prática diária e de do formalismo imposto por sua própria lógica. Ele procurou um conceito que tanto aceitasse a peculiaridade da experiência primária quanto que provesse explicações objetivas, mas explicações que explicassem as regras que governam uma prática, como ela é praticada de fato. Bourdieu discute sem seguir nenhuma regra formal de lógica, desconsiderando a “lógica lógica”, mas admitindo certos [fim da página 216] tipos de regularidades sistêmicas que os sujeitos seguem, até mesmo se inconscientemente. Bourdieu descreve, em Le Sens Pratique, como tais regularidades aparecem, como a pessoa as gera e como elas diferem das regras de estruturalismo. Pode-se adquirir uma idéia da diferença entre as regularidades do estruturalismo e a lógica prática que sua teoria tenta articular em um momento em que Bourdieu resume as diferenças entre as teorias estruturalistas de parentesco e matrimônio e suas próprias idéias:

“Isto nos leva longe da pureza - infinitamente empobrecida - das ‘leis de matrimônio’ e das ‘estruturas elementares de parentesco’. Tendo definido o sistema de princípios através dos quais os agentes podem produzir (e compreender) regras e práticas matrimoniais costumeiras, poderíamos usar uma análise estatística das informações pertinentes para estabelecer o peso das variáveis estruturais ou individuais correspondentes. De fato, o importante é que a prática dos sujeitos fica inteligível assim que se torne possível construir o sistema de princípios que puseram em prática quando identificam os indivíduos sociologicamente participantes de um determinado mercado matrimonial; ou, mais precisamente, quando por exemplo, para um homem particular, se designam as poucas mulheres dentre aquelas da prática do parentesco que são permitidas, de certo modo, a sua escolha, e aquelas com quem ele pode efetivamente, se casar.” (1990: 199)

Em outras palavras, quando se sabe como um indivíduo sabe com quem poderia se casar e como poderia fazer suas escolhas, se torna possível descrever o sistema de princípios que esse indivíduo usa inadvertidamente e que, de fato, guia sua prática. Isto soa mais diferente do estruturalismo do que talvez seja na verdade. Os princípios que Bourdieu propõe envolvem as homologias, simetrias e transferências familiares para o leitor de diagramas estruturais, antropólogo ou crítico literário. Bourdieu certamente descreve seus objetos com maior especificidade e se refere mais a situações particulares. A externalidade do estruturalismo, entretanto, não é o resultado de sua sumarização, mas de seu formalismo. E a especificidade de referência não reduz seu formalismo de princípios.

A real diferença existente entre a lógica de Bourdieu e os equívocos do estruturalismo nos conceitos e métodos que o próprio Bourdieu desenvolve é que lhe permite produzir as regularidades que sua teoria define. Não foi somente isto que fez com que estas idéias e práticas influenciassem os críticos literários, mas também, como acreditamos, o fato de Bourdieu ter penetrado por modos estéticos de interpretação e avaliação. Sob esta luz, os conceitos de Bourdieu sobre matrimônio e estrutura de parentesco, aplicados aos tópicos de cultura e estética se tornam compreensíveis não somente como uma contingência no seu desenvolvimento intelectual mas também como um desenvolvimento absolutamente lógico de sua prática. Se é possível produzir uma sociologia da estética, se é possível compreender a estética dentro de uma explicação sociológica, então a estética está contida nos conceitos antropológicos chave e permeia as idéias de Bourdieu dentro dessa sociologia de uma “prática maior”. Detalharemos os elementos estéticos nos conceitos bourdieunianos de habitus e [fim da página 217] de capital simbólico, e em cada caso, se discutirá os obstáculos potenciais para a tarefa de analisar a sociologia da estética na dependência destes mesmos conceitos. Mostraremos, então, como o projeto de analisar a cultura e a estética dentro de uma abordagem sociológica mais ampla, em ambos os casos, recupera a estéticas da prática de Bourdieu mas, também finalmente, vem desembocar num processo que ordena análise sociológica e estética simultaneamente. Finalmente, como pensamos, uma análise do projeto de Bourdieu mostra que só se pode ver a política da estética aceitando a qualidade estética deste projeto.

A definição de Bourdieu do habitus praticamente designa o conceito para o uso de críticos literários e culturais. Como a formação do discurso de Foucault ou a inconsciência política estruturalmente articulável de Jameson, o habitus de Bourdieu propõe estruturas que determinam ação individual e permitem a análise política da linguagem, de obras de arte e de instituições culturais, sem haver uma referência necessária às convicções ou consciências de individuais específicos presentes nessas estruturas maiores. Entretanto Bourdieu, ao opor sua lógica da prática à lógica do estruturalismo, insiste no específico, elemento informal do habitus:

“As condições associadas numa classe particular de condições de existência produzem o habitus, um sistema de disposições duráveis e transferíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, como princípios que geram e organizam práticas e representações que podem ser adaptadas objetivamente aos seus resultados sem pressupor um fim objetivo consciente ou um domínio expresso das operações necessário para o atingir. Objetivamente ‘regulador’ e ‘regulado’ sem ser de qualquer forma o produto de obediência a regras, o habitus pode ser orquestrado coletivamente sem ser o produto da ação organizatória de um condutor.” (1990: 53)

O habitus é, assim um sistema que gera a ação, mas não corresponde a qualquer regra definível. As ações que produz têm regularidade mas essa regularidade não tem nenhuma forma externa; assim a atividade tem orquestração mas nenhum condutor. Porque o habitus regula escolhas muito específicas, práticas de agentes individuais, correspondendo muito mais à especificidade das situações históricas ou sociais que se analisa, com mais proveito que conceitos sobrepostos como o de formação do discurso, sendo claramente atraente a historiadores, críticos literários ou críticos de ideologia e cultura. O habitus parece descrever justamente o tipo de detalhe concreto que freqüentemente atrai o interesse literário ou cultural. Assim, Toril Moi admira Bourdieu justamente por sua potencial especificidade de explicação:

“A originalidade de Bourdieu pode ser encontrada no desenvolvimento daquilo que poderíamos chamar de uma microteoria do poder social. Onde Gramsci nos dá uma teoria geral das imposições de hegemonia, Bourdieu mostra exatamente como se pode analisar os comentários dos docentes registrados em documentos de estudantes, as regras de exames escolares e as escolhas de estudantes por assuntos diferentes para localizar a construção específica e a implementação prática de uma ideologia de [fim da página 218] hegemonização.” (Moi, 1991:1019)

Mas os críticos literários podem estar desdobrando confortavelmente o conceito de habitus em favor da análise histórica e sociológica, tanto pelo fato de estarem completamente familiarizados com seu funcionamento quanto pela maior especificidade que este tipo de análise permite. O habitus constrói o campo no qual a prática acontece e é lido como o mais familiar dentre os objetos literários, o todo orgânico que opera de fato, propositadamente, sem propósito:

“Em outras palavras, se não reconhece-se qualquer forma de ação diferente da ação racional ou reação mecânica, é impossível entender a lógica de todas as ações que são razoáveis sem ser o produto de um desígnio debatido, ainda menos de cálculo racional; informado por um tipo de finalidade objetiva sem ser conscientemente organizado em relação a um fim explicitamente constituído; inteligível e coerente sem pular de uma intenção de coerência para o entendimento de uma decisão deliberada; ajustada ao futuro sem ser o produto de um projeto ou um plano.” (1990: 51)

“Finalidade” e “fim”, são também outros sentidos dos conceitos presentes na Crítica do julgamento de Kant, traduzidos em inglês como “intenção“ e “propósito”(8). Assim, a frase “informados por um tipo de finalidade objetiva sem ser conscientemente organizada em relação a um fim explicitamente constituído” está razoavelmente perto da definição de Kant de beleza como “a forma de intenção de um objeto, tão longe como isto é percebido nisto sem qualquer representação de um propósito. E a oração final sobre a virtualidade parafraseia a definição de Kant sobre o julgamento estético para a percepção de natureza como algo que possui uma teleologia que não é mecânica nem intencional, mas simplesmente parte de sua constituição interna(9). O habitus cria a prática como uma atividade orquestrada sem maestro e faz disto um objeto estético, legível pelos mesmos métodos de interpretação. Realmente, a lógica da prática, como a construiu o habitus, finalmente, se distingue das regras do estruturalismo em termos da arte de seus padrões:

“A coerência sem intenção aparente e a unidade sem um princípio unificador imediatamente visível de todas as realidades culturais que são informadas através de uma lógica quase natural (isto não é o que faz o ‘eterno encanto da arte grega’ a que Marx se refere?) é o produto da aplicação ancestral dos mesmos esquemas de ação e percepção que, nunca tendo sido constituídos como princípios explícitos, podem produzir somente uma não-desejada necessidade, que é necessariamente defeituosa mas também um pouco milagrosa, e muito próxima, neste aspecto, a uma obra de arte.” (1990: 13)

A dificuldade de Bourdieu está em descrever precisamente as regras para [fim da página 219] se interpretar a lógica da prática ou em aduzir um habitus, dificuldade que finalmente cai frente ao padrão estético da prática através do próprio habitus. Não se reconhece tais padrões cientificamente. Desse modo, então, os críticos literários normalmente poderiam não sentir isto como uma dificuldade.

Apesar dessa dificuldade em descrever o conceito do habitus precisamente, o conceito kantiano de desinteresse estético está contido sociologicamente na argumentação de Bourdieu sobre a maneira pela qual ele pode funcionar como distintas formas de dominação sobre as classes dominadas. E este significado faz seu próprio padrão estético, por fim, um pouco irônico. O argumento presente em La distinction contra Kant é dúbio. Primeiramente, só encontra o critério kantiano de desinteresse nas idéias estéticas da elite: “Quando o sujeito tenta reconstruir sua lógica, a estética ‘popular’ aparece como o oposto negativo da estética kantiana... o implícito do ethos popular responde a cada questão do ‘análise do belo’ com uma tese que contradiz isto” (1984: 41). Mas, por outro lado, a estética popular afirma a importância da arte para o prazer e para os interesses da moral, não se opondo simplesmente a uma elite estética. Esta elite estética usa a diferença interna que o desinteresse cria entre a arte e tudo o mais para engendrar uma distinção social: “não deveria ser pensado que a relação de distinção (que pode ou não implicar a intenção consciente de distinguir a si mesmo de pessoas comuns) é só um componente incidental na disposição estética. O puro olhar implica uma fratura com a atitude ordinária para o mundo que, como tal, é uma fratura social” (1984: 31). Em outras palavras, desconsiderando-se a intenção do indivíduo, a experiência elitista de desinteresse perceptivo, como definido pela estética kantiana, cria a experiência de distinção social. Mas uma diferença teórica entre duas estéticas (a diferença que é a afirmação da diferença pessoal, a outra, a negação disto) só poderia funcionar como uma experiência de diferença social para aqueles que acreditaram na diferença se as teorias que cada classe tomou para si não fossem teorias, mas sim práticas determinadas pelos habitus (Bourdieu usa o termo habitus tanto no singular quanto no plural).

E, realmente, o habitus presente em La distinction nos permite interpretar de modo equivocado os gostos estéticos aprendidos e adquiridos como naturais ou, então, como criadores de distinções naturais. O habitus mescla o que é aprendido com o que é natural, pois isso faz parte de sua essência, sem levar em conta estéticas particulares:

“O habitus é necessidade interiorizada e convertida em uma disposição que gera práticas significantes e percepções significadoras; é uma disposição geral de transferência que leva a cabo uma aplicação sistemática, universal - além dos limites do que foi diretamente aprendido - da necessidade inerente nas condições de aprendizagem.” (1984: 170)

Com efeito, o habitus nos permite tanto pensar que escolhemos o que nos é necessário quanto que o que aprendemos nos é, realmente, natural. Quando esta transformação determina nossos modos de agir na área geral de gosto como também na área específica de gosto estético, nos permite interpretar mal gostos adquiridos como primários, preferências experimentais:

“Até mesmo na sala de aula, a definição dominante do modo legítimo de se apropriar da cultura e da delicadeza da obras de arte para aqueles [fim da página 220] que cedo tiveram acesso a essa legitimação da cultura - em uma casa culta, fora de disciplinas escolares - até mesmo dentro deste sistema educacional se desvaloriza o conhecimento escolar e a interpretação como ‘escolástica’ ou ‘pedante’ em favor do plano da experiência direta e do simples prazer.” (1984: 2)

Assim, surge um efeito político do modo como o habitus constrói a estética: a experiência prematura com a “cultura legítima” acontece nas classes dominantes e com isto a sensação da estética é tida como um prazer natural. Por conseguinte, se pode distinguir uma classe de outra em termos de sua maior possessão deste prazer natural mais elitista.

A forma estética do habitus tem uma implicação devastadora para este argumento, se o tomarmos seriamente para consideração. Bourdieu tem discutido que a estética kantiana do desinteresse é, por um lado, simplesmente um gosto da elite e, por outro, uma ferramenta social de dominação, e que um gosto inerente em uma única classe é transformado em uma ferramenta que distingue classes, devido ao modo como o habitus modifica aquilo que é apreendido do natural. Mas se o habitus trabalha em geral de acordo com as regras da estética, tendo intenção sem propósito e a coerência e unidade das obras de arte (Kant define todo este amoldamento integral como a forma através da qual a percepção artística está separada do prazer ou do julgamento moral e, deste modo, desinteressado), então a preferência das classes dominantes para uma experiência kantiana da estética não é uma simples preferência de classe construída pelo habitus. Uma estética kantiana permite se reconhecer maiores as forças amoldantes da sociedade e, assim, estender este enfoque a questões semelhantes à da estética. Ao tomar a estética como uma força política, Bourdieu desdobra a maioria das característica dos atos distintivos de interpretação. Certo autor afirmou que as idéias bourdieunianas são um “projeto que em seu início necessitou uma negação inequívoca de todas as concepções idealistas de arte” (Cold, 1990: 151). Porém, esta negação não parece ter impedido Bourdieu de ter formulado concepções artísticas ao conceber sua teoria.

Talvez até mesmo mais importante para o desenvolvimento das teorias de Bourdieu no campo da crítica literária seja seu conceito de capital simbólico e a idéia relacionada de poder simbólico(10). Como a idéia do habitus, esta tem um claro valor para as análises sociológicas de trabalhos literários e da história. Pode-se evitar o debate acerca da possibilidade de os métodos econômicos ou históricos, em sua tentativa de compreender os trabalhos literários, obterem sucesso na compreensão de temas em que sempre haverá algo mais do que somente o econômico, o sociológico ou o histórico. Esse excesso constitui o [fim da página 221] literário, que pode ser portador de sua própria pureza estética, que encarna um capital simbólico e o distribui como poder simbólico. De acordo com a definição bourdieuniana, apesar de sua atuação, o capital simbólico não se faz distinto do habitus, mesmo que opere de um modo particularmente literário. Símbolos - lingüísticos, literários e culturais - simplesmente são trocados analogamente às trocas econômicas e dependentes dos valores econômicos ou de alguma outra manifestação de base de material para sua funcionalidade. Trabalhando com a explicação inicial de Bourdieu presente em Esquisse d’une théorie de la pratique, por exemplo, um artigo distingue deste modo o funcionamento do poder e do capital simbólicos daquilo que Bourdieu chama de “economicismo” do Marxismo:

“A tradição Marxista clássica enfatiza as funções políticas de sistemas simbólicos, e explica as conexões entre estes sistemas nos interesses da classe dominante, e o problema da alienação nas classes dominadas. Na perspectiva de Bourdieu esta aproximação tende a reduzir relações de poder a relações de comunicação. A real função política que os sistemas simbólicos tem a cumprir é a tentativa de legitimar a dominação pela imposição da ‘correta’ e ‘legítima’ definição do mundo social.” (Mahar, Harker & Wilkes, 1990: 05)

Aqui, os marxistas clássicos descrevem os sistemas simbólicos essencialmente em termos de seu valor de propaganda, enquanto Bourdieu lhes vê como uma criação do espaço social da classe dominante e através da qual são legitimados mais poderosamente os interesses desta classe. Por fim, estes sistemas funcionam para legitimar alguma estrutura de poder que se esconde sob seu simbolismo e é isto que lhe dá seu poder. Eles existem como uma relação homóloga ou análoga com o poder - ainda essencialmente econômico - que eles legitimam.

Bourdieu freqüentemente usa deste modo o conceito de sistemas simbólicos, obtendo um grande efeito em sua obra. Ao discutir como a linguagem tem um poder simbólico maior do que seu poder de comunicar, por exemplo, Bourdieu afirma que “os discursos não são apenas (a não ser excepcionalmente) signos destinados a serem compreendidos, decifrados; são também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e signos de autoridade a serem acreditados e obedecidos” (11)  (1996: 53).Mais adiante, Bourdieu freqüentemente afirma que o poder comunicativo da linguagem também depende da autoridade e riqueza daquilo que ela significa. Discutindo a dependência da felicidade na teoria do discurso performativo em instituições de poder social e hierarquia de J. L. Austin, ele comenta:

“(...) somente um soldado impossível (ou um lingüista ‘puro’) pode conceber como possível dar uma ordem a seu capitão. O enunciado performativo comporta ‘uma pretensão manifesta de possuir este ou aquele poder’, pretensão mais ou menos reconhecida e, portanto, mais ou menos sancionada socialmente.” (1996: 62)

[fim da página 222]

Contanto que atrás do poder simbólico do capital simbólico esteja um pouco do poder real (normalmente em alguma relação definível pelo capital real), este método funciona bastante bem e provê explicações sugestivas de certos tipos de efeitos culturais e estilísticos. A análise de Bourdieu sobre o significado político do estilo de Heidegger evita as discussões habituais da conexão entre a filosofia heideggeriana e seu nazismo, notando em primeiro lugar a importância de Heidegger para o campo da filosofia, estudando-o através de uma divisão aparentemente absoluta entre o que seu texto disse e seu significado mais simples. Esta divisão pode ter desencorajado qualquer consideração de significado político do que foi dito, mas sua forma ordenou outro tipo de efeito político:

“Para o logocentrismo universitário, cujo ponto limite é o fetichismo verbal da filosofia heideggeriana - a filosofia filo-lógica por excelência -, é a boa forma que faz o bom sentido. A verdade da relação entre o aristocratismo filosófico - forma suprema do aristocratismo universitário - e qualquer outra espécie de aristocratismo - ainda que se trate do aristocratismo autenticamente aristocrático dos Jünkers e de seus porta-vozes - exprime-se na formulação e nas precauções adotadas contra qualquer espécie de ‘reducionismo’, ou seja, contra qualquer destruição da forma com o propósito de reconduzir o discurso à sua expressão mais simples e, portanto, às determinações sociais de sua produção.” (1996: 149) (12) 

O estilo de Heidegger, por sua recusa de relevância social, sua insistência em uma forma integral com seu valor, valida uma classe profissional de filósofos cuja preferência pela compreensão da obra de Heidegger é análoga, em seu aristocratismo filosófico, a um “autêntico aristocratismo aristocrático”. Bourdieu também tenta explicitar o papel deste aristocratismo acadêmico da filosofia para seus praticantes em termos de seu espírito de classe:

“O aristocratismo pequeno-burguês desta ‘elite’ do corpo professoral não podia deixar de estar em sintonia com este produto exemplar de uma disposição homóloga [do pensamento de Heidegger]; essa ‘elite’ estava nucleada em torno dos professores de filosofia, freqüentemente oriundos das camadas inferiores da pequena burguesia, tendo ascendido, por força de suas proezas escolares, ao ápice da hierarquia das disciplinas literárias, no ‘quarto da bagunça’ do sistema escolar, alheado do mundo e de qualquer poder sobre ele.” (1996: 156)

Com efeito, o estilo de Heidegger recebe o poder simbólico de sua habilidade para validar o profissionalismo da filosofia acadêmica. E a validação tem valor porque marca a transformação de seus praticantes em uma elite acadêmica (mesmo que uma elite apenas acadêmica) cujos postos eles, como petite-bourgeoisie, se esforçaram para ocupar. O poder simbólico, definido deste modo, sempre tem que se referir a um poder mais “autêntico”.

Exceto por estender a idéia de que qualquer conceito análogo possa operar [fim da página 223] por transferência figurativa, o conceito de capital simbólico não é, contudo, particularmente literário ou estético - nem mais, de qualquer modo, que qualquer outra analogia. De fato, seu poder explicativo repousa em sua separação do literário, do estabelecimento de uma base lingüística ou estilística que lhe dá valor e poder. Entretanto, justamente por esta razão, esta versão de capital simbólico não consegue solucionar o problema da estética no campo social ou histórico. Tudo aquilo que Bourdieu diz sobre os significados sociais da lingüística, do literário, do estilístico, poderia ser verdade e seu valor ainda poderia ser constituído por um pouco de puro conteúdo estético. Desse modo, uma resenha bastante favorável de La distinction termina com a seguinte contraposição:

“A afirmação de que a discriminação estética repousa sobre princípios de inclusão e exclusão social de uma forma não lógica descarta a possibilidade de se justificar as normas universais de avaliação estética.” (Giddens, 1986: 304)

Talvez de maneira mais importante, esta definição de capital simbólico não pode explicar o funcionamento da cultura ou da arte quando estas deixam de se alinhar diretamente com o aspecto econômico ou com os benefícios de poder pelos quais já não podem ser trocados. Justamente pelo fato de Bourdieu querer explicar que isto parece indicar a pureza da estética, ele é levado a estender sociologicamente sua definição, em termos do poder simbólico. Mas estas explicações conduzem logo a uma recriação coberta de um valor estético intrínseco. Por exemplo: Bourdieu geralmente explica a disposição estética de desinteresse em termos de sua dependência a um espaço livre da necessidade econômica; pois experimentar um desinteresse estético deste tipo coincide com o fato de se possuir os meios econômicos para assim fazê-lo. Mas ele também percebe que a estética, assim definida existe em certa oposição, ao menos, em relação ao conceito de poder econômico. Desse modo, o mais puro compromisso na área da estética se torna um modo de reivindicar liberdade de uma dominação econômica que é parte do campo em que se está inserido:

“Não é surpreendente que adolescentes burgueses, que são tanto economicamente privilegiados quanto (temporariamente) excluídos da realidade do poder econômico, às vezes expressem sua distância do mundo burguês, de que eles realmente não podem se apropria,r por uma recusa de cumplicidade cuja expressão mais refinada é uma propensão para a estética e o esteticismo. A este respeito compartilham uma área de concordância com as mulheres da burguesia que, sendo excluídas parcialmente das atividades econômicas, acham ocupação na administração da ‘decoração de palco’ da existência burguesa, momento em que não estão buscando refúgio ou consolo na estética.” (1984: 55)

A explicação de Bourdieu para a resistência de artistas à compreensão até mesmo de seus mecenas de classes superiores (1984: 228-229) e para a atenção aos registros superiores da classe dominante entre aqueles com um capital cultural relativamente alto e um capital econômico relativamente baixo - os professores por exemplo - e aqueles com capital econômico relativamente mais [fim da página 224] alto e capitais sócio-culturais profissionais relativamente inferiores - segue o mesmo padrão (1984: 283-295). Em cada caso, o cultural se torna um valor intrínseco em termos de sua oposição à dominação econômica.

Mas a partir de que ponto o poder simbólico do capital cultural entra nesta situação? Originalmente, a habilidade da cultura para a distinção expressou seu poder distinguindo aquele que era economicamente privilegiado, que obteve o vagar por obter capital cultural. Mas desde que esta distinção já não pode ser trocada por privilégios econômicos ou poder político (seu valor pertence agora a grupos relativamente dominados: adolescentes, mulheres, professores), deve estar tanto no puro poder da estética ou da distinção (que vem a ser a mesma coisa se, como nós vimos, a estética for definida pelo poder distintivo interno de desinteresse). Se Bourdieu estabelece uma relativização completa dos gostos culturais e estéticos, já não pode explicar os efeitos estranhos que acontecem quando a estética se torna uma atividade que resiste ao benefício econômico (e a compreensibilidade muito teórica de seus objetivos sociológicos força sua atenção para estes momentos). Mas se, por outro lado, se até mesmo permite-se o ato de distinção em que a estética se torna um valor que não pode ser medido economicamente, parece ter se produzido simplesmente uma nova versão de uma estética intrínseca (13).

As mais recentes definições de capital simbólico feitas por Bourdieu resolvem este problema com respeito à estética, fazendo da própria transferência simbólica um ato fundamentando de valor (da qual a transferência econômica somente é outra versão). Uma vez que não é preciso trocar o capital simbólico em capital econômico para perceber seu valor, basta uma análise da estética que teça analogias entre as atividades no plano do capital econômico para que se obtenha uma indicação suficiente de seu efeito sociológico. Para escapar do economicismo como base do capitalismo simbólico, Bourdieu discute a extensa gama de práticas pouco econômicas de troca, fazendo do capital simbólico uma categoria mais ampla e da qual o capital econômico é apenas uma parte. Ele afirma que o “economicismo é uma forma de etnocentrismo” (1990: 112) porque trata todas as economias, até mesmo a pré-capitalista, como se fossem explicáveis nos termos da economia capitalista. Mas freqüentemente tais explicações econômicas simplesmente não podem compreender como algumas trocas se dão:

“No trabalho que reproduz relações estabelecidas - banquetes, [fim da página 225] cerimônias, troca de presentes, visitas ou cortesias e, acima de tudo, matrimônios - das quais nenhuma é menos vital à existência do grupo que a reprodução das bases econômicas de sua existência, o trabalho exigido esconde que a função das trocas é tão importante quanto o trabalho que precisaram para executar esta função.” (1990: 112)

É claro que não pode se pode trocar um trabalho que traz em si embutida uma função de troca sem o encobrimento que o reifica, pois assim ele ficaria inacabado. Em tal troca, o valor só pode existir se a troca econômica básica que envolve este trabalho não puder acontecer. Para criar o valor, um ato aparentemente estranho de trabalho tem que acontecer, um ato que não pode reduzir seu valor intrínseco mas do qual ele depende. Adequadamente, Bourdieu discute a prioridade do capital simbólico sobre o capital econômico nestes condições:

“Em uma economia que é definida pela recusa em se reconhecer a verdade ‘objetiva’ das práticas ‘econômicas’, quer dizer, a regra do cálculo egoístico e ‘nu’, a menos que o capital ‘econômico’ não possa funcionar senão num plano em que seja reconhecido por uma conversão que pode fazer irreconhecível o verdadeiro princípio de sua eficácia. O capital simbólico é este capital negado, reconhecido como legítimo, quer dizer, como um não-capital.” (1990: 118)

O capital simbólico, portanto, não é meramente um símbolo para capital econômico mas o capital que existe quando são negados os interesses econômicos. Esta negação pode acontecer em uma economia pré-capitalista, mas também pode acontecer em uma economia capitalista quando os agentes resistem a interesses econômicos. Finalmente, o capital per se importa ao valor que motiva qualquer conversão, seja ela uma troca econômica ou o disfarce de uma troca econômica. Poderíamos discutir que este disfarce sempre é uma forma de troca, mas isto só seria verdade se a troca sempre fosse uma forma de disfarce. Desta perspectiva, então, o capital é somente simbólico.

Embora esta versão de capital simbólico possa remover qualquer ponto de vista fora da mal-entendida troca simbólica para montar uma crítica política direta, remove também o problema de que, em certas circunstâncias, não se pode trocar o capital simbólico ou cultural por uma posição estética para obter seu valor através do poder externo (14). Afinal de contas, que necessidade se tem para efetuar uma troca de um símbolo se o capital simbólico cria as relações de poder e valor de troca em lugar de somente representá-los. Aceitando completamente a transferência metafórica ao nível conceitual de sua teoria, então, Bourdieu soluciona os problemas de sua própria análise sociológica da prática estética.

[fim da página 226]

Podemos perceber mais claramente esta resolução em suas recentes discussões sobre Flaubert e o desenvolvimento do conceito de uma arte pura. Bourdieu posiciona três grupos de escritores no que ele chama de “campo literário” de meados do século XIX na França. O primeiro destes grupos, o dos “defensores de arte social”, exigem que a literatura cumpra uma função social ou política. Para eles, o valor monetário da arte enlaça-se bem facilmente com o valor da posição política que se ocupa. O segundo grupo, “os representantes da ‘arte burguesa’ ”, escreveu “num gênero que pressupôs comunicação imediata entre o autor e público e não só assegurou a estes escritores benefícios materiais significantes... mas também todas os ícones de sucesso no mundo burguês” (Bourdieu, 1988: 550). Este grupo apresenta menos problemas sociológicos até porque sua arte era produzida pelo e para a troca econômica. Porém, o terceiro grupo parece recriar os problemas de se avaliar uma estética que resiste às forças que poderiam lhe dar valor sociológico:

“Os escritores localizados gradualmente fora destas duas posições adversárias inventaram o que foi chamado de ‘arte pela arte’. Em lugar de uma posição para ser, era uma posição para fazer. Embora tenha existido potencialmente dentro do espaço das posições existentes, seus ocupantes tiveram que inventar, contra as posições estabelecidas e contra seus ocupantes, tudo aquilo que distinguisse sua posição daquela ocupada por todos os outros. Tiveram que inventar um personagem social sem precedentes - o artista moderno, profissional de tempo integral, dedicado ao seu trabalho, indiferente às exigências da política sobre as injunções da moralidade, e não reconhecendo nenhuma jurisdição senão aquela específica da arte.” (1988: 551)

Bourdieu também descreve os modos através do quais os ocupantes deste grupo criaram sanções internas e recompensas, análogas a outras sanções sociais e recompensas, mas determinadas por uma resistência negativas a estas últimas(15)  (Bourdieu, 1987: 208).

As questões acima tiveram uma análise semelhante em La distinction, no que diz respeito ao papel da estética de grupos marginalizados dentro da classe dominante, que não evapora totalmente sob a luz da posição mais brilhante dada ao capital simbólico - mas foram discutidas de modo mais local e historicamente específico do que efetivamente teórico. Ainda poderíamos desejar saber por que os artistas tornaram as menos evidentes recompensas de prestígio dentro de um grupo marginal a-social semelhantes às recompensas sociais calculáveis disponíveis para os escritores burgueses, ou por que a sociedade mais ampla concedeu respeito àquele grupo dotando suas negações de valor social ao cercá-las com vários tipos de verificações institucionais de seu status como profissionais. Mas estas são questões empíricas sobre como um evento determinado ocorreu. Em termos do que este grupo de artistas fez, suas ações não importam para a troca e criação do capital em termos de alguma analogia incalculável para capital econômico e troca. Portanto, apenas as [fim da página 227] atividades que o grupo empenha constituem as atividades criadoras de valores de troca e disfarçam a troca que encontramos em qualquer capital. Pode ser que, criando este grupo socialmente definível, os artistas tenham que criar também um objeto para com o qual sua relação imediata é de desinteresse, mas se o propósito daquela relação é permitir a entrada em um sistema maior de trocas, então uma descrição cheia de atividade estética deve compreender vários interesses sociológicos.

Novamente, Bourdieu valida sua análise sociológica de cultura e estética aceitando um certo estado estético para suas ferramentas de análise. Sua reversão de campo por meio do capital simbólico, ao invés de ser uma versão metafórica especializada do capital econômico, se torna uma categoria geral da qual o capital econômico é um subconjunto, restabelecendo um desconstrução quase arquetípica que manobra com as categorias de linguagem literária e filosófica(16). Acima disto, o status estético do habitus sugere que as sensibilidades estéticas da elite corresponda a um modo de classificação, confirmando a base sobre a qual a análise sociológica é executada. Aqui, entretanto, a afirmação de um simbolismo constituído para a troca mostra o interesse nos investimentos simbólicos que criaram o objeto de arte esteticizado, fazendo assim criar-se um espaço fundamental que, embora não esteja precisamente livre de interesses, não pode ser calculado em termos de qualquer forma de interesse externo. Novamente, para analisar sociologicamente a arte e a cultura, Bourdieu primeiramente estetizou sua sociologia.

Isso não significa, dentro da análise das bases estéticas do habitus e de capital simbólico traçada acima, sugestionar uma leitura estética da sociologia de Bourdieu para capturá-la através de um formalismo generalizado. A ruptura com este formalismo acontece com o que considera-se ser a manobra teórica completamente estética de Bourdieu: o enfoque ego-reflexivo de sua teoria, que estuda desde casos antropológicos até temas mais acadêmicos, o que fez com que a preocupação de suas teorias se voltasse mais implacavelmente para tópicos culturais e estéticos. Antes de delinear a reflexividade de Bourdieu em particular, entretanto, é preciso justificar a reivindicação que este gesto é particularmente estético - no plano kantiano. A filosofia contemporânea e a crítica literária quase entendem a reflexividade como uma concessão definida por um certo momento literário. Mas desde que Bourdieu se pôs como suporte para a análise cética de imagens, tal como Foucault e Derrida, que centralizam interpretações de uma pintura de reflexões ou de um poema de Mallarmé, não podemos assumir sua identificação de reflexividade com a arte como autoritária, até mesmo se esta sua reflexividade reproduz somente estes momentos de sua filosofia e torna assim mais complexo seu ceticismo.

Mas se a reflexividade constitui o momento inaugural d’A Crítica do julgamento de Kant, ou seja, a teoria estética que Bourdieu tão persistentemente [fim da página 228] tenta desconstruir, talvez a própria reflexividade de Bourdieu possa ser vista sob a mesma luz estética que o habitus e a troca simbólica. Primeiramente, a definição de Kant do papel do julgamento como uma faculdade que, tendo sido determinada por leis universais de outras faculdades, particularmente sob estas leis, faz disto um poder instrumental distintamente subordinado. Ele conclui esta definição de abertura com uma oração que muda esta subordinação: “Mas se só o particular tiver sido dado por aquilo que tem que ser achado no universal, o julgamento é meramente reflexivo” (Kant, 1951: 15). Esta reflexão não é, contudo, realmente reflexividade. Está qualificada como mera reflexividade porque é oposta às determinações que o julgamento, que subsume particularidades sob o exercício daquilo que é universalmente conhecido. Isto somente é a caracterização do ato mental, que extrapola algo universal a partir de uma particularidade para explicá-la.

A definição de Kant do julgamento reflexivo, porém, clareia ambos os conceitos, ou seja, que sua crítica de julgamento é um ato de julgamento e que o julgamento que julga estéticas assim o faz por meio de uma lei que é, em primeiro lugar, estética:

“O julgamento reflexivo, que é obrigado a ascender do particular da natureza para o universal, requer neste caso um princípio que não pode obter emprestado de experiência, porque sua função é estabelecer a unidade de todos os princípios empíricos sob outros mais elevados, e conseqüentemente estabelecer a possibilidade de sua subordinação sistemática. Tal como um princípio transcendental, então, o julgamento reflexivo só pode se dar como uma lei de e para si mesmo. Não pode derivar de fora (porque então seria o julgamento determinante); nem pode prescrever-se para a natureza, porque a reflexividade nas leis da natureza se ajusta naturalmente, e não é natural, pelas condições de acordo com as quais nós tentamos chegar a um conceito sobre ele, que seja bastante contingente em relação à natureza.” (Kant, 1951: 16)

Não surpreendentemente, a regra da natureza reflexiva em relação a tal tema é aquela em que se julga particularidades em termos de uma unidade, nem sendo dada a partir de um conhecimento apriorístico nem por qualquer conhecimento atual das leis naturais, mas como inerente no seu aparecimento. Mas as particularidades do poder de que Kant fala tão bem são, em primeiro lugar, a experiência de beleza e depois, mais genericamente, a experiência da teleologia na natureza - os tópicos de A Crítica do julgamento. Nenhum destes tem qualquer lei universal que se aplique a eles ou que poderia ser dada pela razão pura, com que não se possa fazer nenhuma determinação sobre o mundo natural, ou pelo entendimento de que estas determinações sobre o mundo natural nunca são transcendentais. Assim, determinar suas leis universais deve ser um ato do julgamento reflexivo em que se tem que extrapolar as leis universais de particularidades empíricas através do princípio transcendental aqui dado.

Kant, é claro, não quis definir esta reflexividade para utilizá-la como uma justificativa própria ou um prazer auto-suficiente. A Crítica do julgamento traz meios para prover uma transição crucial entre a compreensão do conhecimento [fim da página 229] da lei natural e a articulação da razão das leis morais (17). Neste sentido, sua teoria nos provê com a lógica de abertura para a própria insistência de Bourdieu na auto-reflexão. Ambos os trabalhos explicitamente teóricos de Bourdieu, Esquisse d’une théorie de la pratique e Le sens pratique, se apresentam como reflexões acerca de versões anteriores de suas próprias teorias e pesquisas. E Bourdieu assim o faz porque insiste que a rota de objetivismo para uma compreensão da lógica da prática passa por uma reflexão sobre a própria prática. Esquisse se inicia com a afirmação de que um antropólogo só pode abandonar o objetivismo a partir do momento que percebe, primeiramente, como seu próprio papel de antropólogo produz e necessita daquela instância do conhecimento (1983: 48). Em outras palavras, a primeira prática que o antropólogo tem que entender, para entender verdadeiramente a prática, é a sua própria. Anos depois, Le sens pratique generaliza esta situação em uma regra filosófica:

“Não é pretendido que esta reflexão crítica nos limites de compreensão teórica desacredite o conhecimento teórico em uma ou outra de suas formas e, como é tentado freqüentemente, introduza em seu lugar um conhecimento prático mais ou menos idealizado; mas basta que se lhe dê uma base sólida livrando-o da distorção que surge das condições sociais e epistemológicas de sua produção. Isso não tem nada em comum com o objetivo de reabilitação que enganou a maior parte do discurso em prática; mas simplesmente aponta para iluminar a teoria da prática que o conhecimento teórico implicitamente aplica.” (1990: 27)

Nem meramente negativa, movendo-se da reflexão ao ceticismo, nem ingenuamente positiva, movendo-se da reflexão ao ceticismo e daí para um conhecimento positivo recuperado, a reflexão de Bourdieu reproduz sua teoria da prática extrapolando-a. Assim, Bourdieu teima tanto em refletir sobre seu próprio papel como investigador quanto em pensar que aquela reflexão descreverá ambos, a prática de tal papel e a teoria de como elucidar tal prática.

O que a reflexão tem para dizer sobre a prática de sua própria sociologia começa, para ele, na consideração do sistema que a produz: o sistema educacional francês. No início de sua carreira, como parte da reflexão sobre seu próprio papel como um observador francês de práticas sociais no período em que esteve na Argélia sob colonização francesa, Bourdieu voltou seu enfoque para o sistema educacional, que era o campo de sua própria prática. Esta pesquisa conduziu a duas conclusões, uma sobre o sistema, e outra sobre o que poderia ser chamado de habitus dos estudantes e professores dentro deste sistema. Primeiramente, Bourdieu percebeu que até mesmo dentro do sistema educacional francês, ostensiva e rigorosamente estruturado dentro de linhas de meritocracia, a origem social constantemente preestabelecia o sucesso educacional: “A origem social é indubitavelmente aquilo cuja influência afeta o mundo do estudante fortemente, mais fortemente, de qualquer modo, que sexo ou idade, e certamente mais que qualquer outro fator claramente percebido, como a crença religiosa” [fim da página 230] (Bourdieu & Passeron, 1979: 08)(18) . Esta conclusão não deveria surpreender alguém que discutiu a ‘maquiagem’ do corpo dos estudantes no sistema educacional dos Estados Unidos. Bourdieu, entretanto, discordando de muitos críticos norte-americanos que não se opõem a programas que igualaram o acesso ao ensino entre as classes sociais, não pensa que tais programas vão, particularmente, mudar qualquer coisa:

“Os mecanismos que asseguram a eliminação de crianças da classe trabalhadora e da baixa classe média quase operariam tão eficazmente (mas mais discretamente) quanto em uma situação na qual uma política sistemática de concessões de bolsas de estudos colocou sujeitos de todas as classes sociais frente a uma educação formalmente igual.” (Bourdieu & Passeron, 1979: 27)

Como estes mecanismos, que garantem tão seguramente o acesso ao sistema escolar, seriam ineficazes? Para responder a esta pergunta, temos que nos voltar à segunda conclusão de Bourdieu, relativa ao assunto empiricamente calculável de que práticas culturais e intelectuais produzem sucesso no mundo acadêmico. Nela Bourdieu discute que a instrumentalidade que define os papéis dos estudantes e dos professores, combinada com a impossibilidade de reconhecer aquela instrumentalidade e ainda com a execução das atividades que habilitam seu funcionamento, produzem as práticas particulares no campo educacional. Em outras palavras, num sentido óbvio, “ser um estudante é preparar a si mesmo através do estudo para um futuro profissional” (Bourdieu & Passeron, 1979: 56). Mas se os estudantes agissem como que se este fosse o caso, “a tarefa profissional do professor se tornaria então somente um aspecto de um projeto profissional do qual ele não senão o mestre atrás de quem repousam inúmeros significados” (Bourdieu & Passeron, 1979: 58). O resultado é uma dupla mistificação: primeiramente os estudantes vêem sua própria atividade principal como um tipo de criação própria que só pode ser ordenada rejeitando qualquer coisa que poderia constrangê-la, sugerindo que esta escolha não é absolutamente grátis: “A aspiração para criar e escolher a si mesmo não impõe um comportamento determinado, mas só um uso simbólico do comportamento intencional significa que este comportamento foi escolhido” (Bourdieu & Passeron, 1979: 38). Além de negar a própria instrumentalidade dos estudantes, esta mistificação “permite aos professores se enxergarem como mestres que transmitem uma cultura total através de uma dádiva pessoal” (Bourdieu & Passeron, 1979: 58). Assim cada um dos estudantes e dos professores negam um ao outro, e sua própria instrumentalidade cria práticas que se distinguem da sociedade circunvizinha em termos de uma preocupação intrínseca com a criação e a cultura.

Há três aspectos desta conclusão que é preciso notar. Em primeiro lugar, num certo sentido, as práticas culturais e intelectuais de estudantes e professores não reproduzem, de fato, o resultado direto dos efeitos distintivos de classe do sistema educacional. Até mesmo se o sistema fosse de fato meritocrático, o papel de estudantes ainda seria instrumental, dirigido a os ajustar para suas [fim da página 231] ocupações futuras, e os professores ainda seriam, na realidade, auxiliares àquele papel. A mistificação dupla desses papéis que constituem o campo acadêmico ainda aconteceriam. Em segundo lugar, o conteúdo daquela mistificação conduz diretamente às conclusões de La distinction. O modo através do qual estudantes e professores se distinguem de seus papéis sociais cria um sentido de cultura que secunda as atividades diferenciais de classe e o sistema educacional como um todo. Mas justamente pelo conteúdo de mistificação do intelectual acadêmico não ser o resultado direto do papel completamente sociológico da educação - simplesmente não funcionando como uma máscara ideológica daquele papel - um intelectual acadêmico pode, por reflexão sobre suas próprias práticas, observar seus efeitos sociológicos até mesmo enquanto ele os reproduz. Com efeito, justamente o campo intelectual que Bourdieu descreve em Les hérititiers e La distinction produz a pesquisa e as práticas intelectuais que conduziram a esses livros, como Bourdieu tão bem percebe.

O fato de Bourdieu estar envolvido nas atividades que ele analisa sociologicamente poderiam comprometer a liberdade de sua análise política. Uma observação crítica afirma que o fato de que La Distinction “seja lido por pessoas situadas no topo da esquerda (a fração dominada da classe dominante que é relativamente mais rica em capital cultural do que em capital econômico) - como um modelo de estilo de vida, como a possessão da música de Boulez, do tipo de alto capital cultural associado aos professores universitários (...). Mesmo que La Distinction não permita aos não-leitores refletir sobre a disposição de classe que assegurou a continuidade de sua condição de não-leitores, não pode deixar de ser um livro sobre não-leitores feito para leitores” (Robbins, 1991: 28-29). Mas também porque tanto o escritor como qualquer um de seus leitores vêm do habitus da universidade, isto ordenará as práticas distintivas que os separam dos não-leitores, observando ceticamente estas práticas e reproduzindo-as ainda que este não seja seu intento. Paradoxalmente, aceitando aquelas presunções estéticas que governam as próprias práticas individuais, podemos descrever completamente seu funcionamento sociológico, justamente porque a prática estética difere bastante dos fins sociológicos que habilitam o indivíduo a percebê-los como uma produção. Se A Crítica do julgamento de Kant é um julgamento do julgamento é, também, um julgamento crítico do julgamento estético, e se esta diferença não basta para criar a base transcendental que Kant quer, ao menos permite uma avaliação da estética em outras bases além daquelas produzidas pelo julgamento. Da mesma maneira, a reflexão estética de Bourdieu produz uma sociologia da estética. Se não exigimos bases transcendentais para nossa sociologia, o fato da reflexividade não incapacitará as conclusões sociológicas específicas automaticamente; realmente, como vimos, essas conclusões podem ser necessárias.

Então, é possível olhar para a sociologia da estética de Bourdieu do seguinte modo: ele descreve um habitus - um campo cultural ou estético - que deliberadamente se separa da esfera da influência ou efeito social, mas dentro do qual interesses profissionais operam de um modo sociologicamente descritível. Dentro deste campo existem objetos de arte cuja estetização os retira, também deliberadamente, do interesse social imediato. Mas a liberação imediata do interesse sobre aquele objeto cria um interesse profissional por parte daqueles [fim da página 232] que operam dentro de seu campo específico. A sociologia bourdieuniana descreve, deste modo, ambos os papéis políticos do estilo de Heidegger - se não o transformarmos numa análise empiricamente questionável de seu valor particular para a pequena burguesia - e o papel da arte ou a ‘causa’ da arte para Flaubert. O fato de que estas ferramentas de análise - o habitus e capital simbólico - são conceitos esteticizados, entretanto, parece sugestionar uma última base para o desinteresse estético. Aceitando a reflexão da análise que produz esta sociologia como esteticizada, porém, se recupera sua força sociológica: analisando as raízes sociológicas e efeitos da análise desinteressada - até mesmo a análise que faço nesta análise - pode-se ligar a sociologia novamente à análise que examina até mesmo como um indivíduo aceita a necessidade de sua afirmação para um desinteresse estético.

Porém, esta recuperação só funciona quando acompanha a aceitação esboçada acima, como podemos ver nos momentos nos quais Bourdieu tenta radicalmente se separar da análise por ele desdobrada. Por exemplo, La distinction termina com um ataque sobre a leitura de Derrida sobre Kant presente em The truth in painting, um ataque cujo interesse principal está determinando seu motivo. Oferecendo um resumo do argumento de Derrida, que é surpreendentemente moderado dentro dos limites de sua própria destilação confessa, Bourdieu se acha constrangido para admitir que Derrida levanta, embora em um registro estilístico muito diferente, várias das perguntas levantados por sua própria leitura sociológica. Por fim, Bourdieu acaba simplesmente atacando:

“Embora marcando uma ruptura acentuada com o ritual ordinário da leitura idólatra, esta pura leitura ainda concede o ponto essencial ao trabalho filosófico. Pedindo para ser tratado como trata seu objeto, i.e., como uma obra de arte que faz do objeto de Kant seu próprio objeto, i.e., prazer cultivado, cultivando prazer cultivado, exaltando este prazer artificial artificialmente pelo último refinamento encarnado que implica numa visão lúcida deste prazer, oferece, acima de tudo, um espécime exemplar do prazer da arte, o prazer do amor da arte do qual, como todo o prazer, não é fácil falar.” (1984: 498)

Considerando que Bourdieu admite que Derrida analisa o papel do prazer de certo modo consoante com sua própria visão cética do tema, suas diferenças em relação a Derrida devem estar em termos de uma irresponsabilidade estilística que Bourdieu enxerga, e que só pode significar uma indulgência para com um prazer elitista, uma irresponsabilidade a que sua própria análise deseja escapar. Mas Bourdieu marca a característica principal desta indulgência como a extrema atenção de Derrida para a forma de seu próprio argumento (1984: 495-97). Esta crítica é incrivelmente auto-consumida com a própria rejeição dele pela elite do Le Nouvel Observateur, na luz de sua própria autoconsciência estilística óbvia, a qual é justificada apenas dez páginas após ter sido feita a crítica a Derrida:

“Lá permanece um problema final que mereceria uma discussão longa indubitavelmente: o de escritura. A dificuldade principal, especialmente em tal um assunto, é que a linguagem usada tem que sinalizar uma [fim da página 233] ruptura com a experiência ordinária que é não menos necessária para destinar o conhecimento produzido adequadamente do que para produzi-lo.” (1984: 509-10)

Bourdieu, assim, afirma que sua própria atenção estilística é necessária para produzir uma ruptura, mas a atenção estilística de Derrida é culpável porque, enquanto uma ruptura intelectual, não é uma ruptura social (1984: 496). Falando de seu próprio projeto, refere-se à linguagem de consciência que tenta analisar também bastante conscientemente. Tentando se separar de sua competição acadêmica, porém, mira sua análise num enfoque que torna seu argumento auto-contraditório.

Finalmente, meu argumento sobre a sociologia da estética de Bourdieu tem, me parece, duas implicações. Em primeiro lugar, suas práticas específicas - definições de habitus, especificações de capital simbólico e poder simbólico - não resultam em leituras da literatura ou da história literária que tenham executado alguma ruptura decisiva com avaliações estéticas, entretanto tais leituras podem ter qualquer número de outros valores locais. Mas, em segundo lugar, sua análise da sociologia das práticas acadêmicas, particularmente em seus momentos mais auto-referentes, tem muito para dizer sobre as ‘guerras culturais’ que os professores da área literária estão lutando atualmente entre si, e mais recentemente com nosso próprio ‘Nouvel Observateur’. La distinction oferece um olhar cético à cultura que, certamente, oferece apoio às leituras mais céticas de cânon tradicional e às avaliações literárias. Mas o custo de lançar este olhar é que seu ceticismo sempre deve estar baseado nas presunções do campo que constrói a habilidade para lançá-lo. Os cânones tradicionais e leituras ocupam este campo intrinsecamente ligado às análises que os atacam. Talvez só abandonando o desejo de deixar este campo, em proveito de um reino a partir do qual um ataque político puro possa ser lançado, fazendo consideravelmente mais do que transformá-lo num assunto de retórica momentânea que não tenha nenhuma implicação maior, possamos obter coerentemente as implicações políticas que muitos de nós queremos a partir das idéias de Bourdieu.

Referências Bibliográficas


Notas

1) Originalmente publicado na revista English Literary History (Baltimore, 1993, vol.60, n.4, pp. 1033-1056), sob o título "Bourdieu and the sociology of aesthetics". As citações de textos de Bourdieu que porventura tenham também sido publicados numa tradução brasileira seguem preferencialmente estas versões, indicadas nas referências bibliográficas ao final do texto. Traduzido do inglês, com permissão da Johns Hopkins University Press, por Carla Mary S. Oliveira (N. da T.).

2) Catedrático do Departamento de Literatura do College of Arts and Sciences, American University, Washington-DC, EUA. E-Mail: jloesbe@american.edu (N. da T.).

3) Ao discutir este projeto será usado mais extensivamente The logic of practice, uma tradução de Le sens pratique, publicado na França em 1980. Este livro traz, em forma latente, muito daquilo que Bourdieu viria a escrever sobre cultura e estética, além de resultados de alguns de seus primeiros estudos antropológicos. De forma mais complexa, é também explicitamente uma revisão das teorias trabalhadas em Outline of a theory of practice, que tanto traduz quanto revisa a versão francesa original, Esquisse d'une théorie de la pratique, lançado na França em 1972, bem antes de muitos de seus trabalhos sobre cultura e estética.

4) Publicado originalmente na França em 1979.

5) A edição norte-americana de Ce que parler veut dire, intitulada Language and symbolic power e publicada em 1991, traduz a maioria da versão original lançada na França em 1982, mas soma artigos publicados mais recentemente, em 1984, e parte do artigo homônimo publicado em 1977 na revista Langue Française (nº 34). Bourdieu não só revisa livros para tradução, mas constantemente revisita livros e artigos antigos em livros mais recentes, que oferecem articulações teóricas mais novas e propõe distinções cronológicas, o que na sua escritura sempre é uma tarefa bastante arbitrária. Se todos seus conceitos se inter-relacionam como Bourdieu afirma, isso ocorre pelo fato de pelos seus métodos de revisão ele ter operado constantemente reinclusões e referências cruzadas.  

6) Aqui estão simplificadas as recentes versões da crítica de Bourdieu. Para uma discussão mais extensa como também uma explicação da evolução de Esquisse d’une théorie de la pratique para Le sens pratique, ver Derek Robbins (1991), capítulos 5 e 9.

7) Fazendo um paralelo com um campo completamente diferente da crítica, Louis Renza discutiu em “The veto of the imagination: a theory of autobiography” (Olney, 1980: 280), que autobiografias devem ser factíveis, sem poder nem mesmo afirmar com precisão uma conexão aproximada entre o ego do escritor e o ego que é descrito, porque o texto escrito não pode comunicar o aspecto mais vital dos eventos descritos, seu passado, aquele que foi experimentado apenas por um deles. Podemos imaginar extensões adicionais de tal crítica da inabilidade de um texto ou descrição trazer em si a experiência de subjetividade.  

8) Ver as notas de rodapé do tradutor para a discussão destes termos feita por Derrida (1987: 51, 68).  

9) Para uma definição de beleza, ver Kant (1951: 73); para a discussão da teleologia natural, ver também Kant (1951: 205-207).  

10) Em uma resenha sobre a edição norte-americana de La distinction, Elizabeth Wilson centraliza este conceito em sua frase de abertura: “Em A distinção: uma crítica social do julgamento do gosto, Pierre Bourdieu elabora um modelo de poder simbólico que descreve o papel de cultura na reprodução de relações sociais na França contemporânea” (1988: 47). Esta descrição do livro, que certamente não é inexata, enfoca a função social do capital cultural e seu lugar na tentativa de Bourdieu em descrever o que são estética e gosto, e como isso indica o interesse primário do livro pela discussão teórica literária que seguirá.

11) Grifos de Bourdieu (N. da T.).

12) Grifos de Bourdieu (N. da T.).

13) Aqueles críticos que querem dar às idéias de Bourdieu um poder político de resistência à dominação da burguesia por desmascarar suas pretensões estéticas têm problemas particulares com este aspecto de La Distinction. Toril Moi cita particularmente um desdenhoso ataque na conceituada Le Nouvel Observateur como um exemplo da crítica à política de Bourdieu, justificando sua própria e óbvia contradição do momento, de modo pouco persuasivo, afirmando que a falta de Bourdieu de laços de poder em relação ao Le Nouvel Observateur derruba esta contradição (1991: 1026, 1045). É claro que não se quer levar a análise bourdieuniana da retórica estética elitista como seriamente inclusiva. Assim, por outro lado, Elizabeth Wilson conclui que falta às teorias de Bourdieu a habilidade para efetuar uma intervenção política justamente porque elas não oferecem modos de avaliação livres da crítica da cultura e da estética (1988: 58-60).

14) A ênfase aqui está na palavra “direta”, pois se sente um significado político óbvio para o projeto de Bourdieu. Porém, Bourdieu resiste totalmente a agregar implicações políticas a suas teses. Em uma entrevista, o tradutor Richard Nice afirmou que Bourdieu “situa a si mesmo fora da política convencional” e que “ele não é muito político na vida cotidiana” (Mahar, 1990: 53). Esta reticência, não só em relação à “vida cotidiana” (o que faria Bourdieu desta categoria?), conduz sem dúvida à frustração de alguns de seus críticos nas discussões sobre La Distinction.

15) Posição essencialmente semelhante a apresentada no artigo sobre Flaubert, apesar de ser especificamente mais abstrata.

16) Determinado sua preocupação com a inabilidade de filosofia para definir a metáfora sem recorrer à metáfora e sua preocupação com as trocas entre a transferência metafórica e a troca econômica, Derrida, em seu texto intitulado “White mythology” (1982: 207-271), considera-a inevitável se também fizer referência, neste caso, a algo estereotipado.

17) Discuti o papel crucial da estética de Kant em sua filosofia crítica mais detalhadamente em Aestheticism and Deconstruction (Loesberg, 1991: 142-45).

18) Publicado originalmente na França em 1964, com o título Les hérititiers: les étudiants et la culture.





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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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