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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 73-84


PROFISSÃO, VOCAÇÃO E MEDICINA

Artur Perrusi (1)

 
Nota sobre o conceito de profissão


Pode-se dizer, com algum grau de certeza, que o conceito de profissão já possui, há muito, o seu “carimbo sociológico”, isto é, a sua legitimidade enquanto área de conhecimento, sendo inclusive a categoria central de todo um campo da sociologia acadêmica: a sociologia das profissões. A legitimação dessa área de conhecimento, no entanto, não foi trazida apenas por uma necessidade conceitual ou “científica”; na verdade, a sociologia das profissões teve um início, digamos assim, “ideológico”: desenvolveu-se na apologia e na institucionalização de si mesma. Não só isso, mas além disso: a sociologia das profissões formou-se através da defesa arraigada de seu alicerce, a sociologia profissional - a defesa da disciplina “sociologia das profissões” enquanto defesa profissional da sociologia tout court. Não foi mera coincidência que tal processo tenha sido confirmado pela tradição de pensamento surgida a partir dos trabalhos daquele que foi o arquiteto e o herói fundador da sociologia: Durkheim (Ortiz, 1989). A conseqüência mais gritante de tal ratificação foi a construção de um modelo “angelical” de profissão, no qual as profissões, principalmente as liberais, representariam a institucionalização e a adesão desinteressada a valores altruísticos e coletivos (Paicheler, 1992: 42).

Assim, o modelo “angelical” de profissão não só foi utilizado como categorização teórica da profissão, mas também como defesa profissional da própria profissão de sociólogo. A profissionalização da sociologia faria parte, num jogo de espelhos um tanto enviesado e irônico, da própria “sociologia das profissões”, e a defesa da sociologia enquanto profissão envolveria, além da legitimação de um saber científico, o recurso a uma prática corriqueira de poder no mundo moderno: o poder profissional.

Saindo da discussão político-ideológica da formação da “sociologia das profissões”, podemos dizer que, provavelmente, o grande demiurgo dessa obra política, seja como defensor da sociologia profissional, seja como teórico da “sociologia das profissões”, foi Talcott Parsons. Guardando os exageros de um certo sectarismo político e teórico, realmente Parsons foi um apologético da profissão; mas é impossível não deixar de reconhecer suas contribuições para a “sociologia das profissões” e para a sociologia em geral. Sua dissecação dos valores da profissão, mesmo que num estudo concreto sobre a medicina (Parsons, 1955), continua pertinente, principalmente se fizermos, a partir de suas análises sobre a profissão, analogias com o saber burocrático e com a ideologia tecnocrática(2). Contudo, seu funcionalismo e sua preocupação [fim da página 73] unilateral com a ordem social foram bastante criticados; ao mesmo tempo, o seu modelo de profissão adaptou-se mal às situações não liberais do exercício profissional (Dubar, 1992: 138).

Talvez a crítica mais interessante à visão parsoniana de profissão tenha sido aquela realizada pelo interacionismo simbólico, através de autores como Everett Hughes (Dubar, 1992: 142) e sobretudo Anselm Strauss (1992), quando enfatizaram, no estudo das profissões, os conflitos internos e as mudanças no campo profissional. Tal ênfase praticamente não existe na análise de Parsons, sendo assim correta a afirmação de que o “funcionalismo teria uma visão por demais homogênea e coerente da profissão, seja quanto aos seus valores, seja na sua organização interna” (Baszanger, 1992: 70-81).

Dessa forma, Strauss analisou, por exemplo, alguns valores que não seriam consensuais na profissão médica, sendo apropriados de forma diferente em cada segmento profissional e causadores de conflitos, tais como: a missão, as diferentes atividades de trabalho e os interesses e associações de cada segmento; a clientela diferenciada, e outros (Strauss, 1992). Em suma, Strauss criou uma teoria importante sobre a segmentação profissional, na qual demonstra que, no caso da “medicina organizada”, diversos interesses, valores e modos de organização existem segundo a forma de estruturação do segmento analisado.

A partir da crítica ao funcionalismo, surgiram outras teorizações do fenômeno profissional que deram um novo alento à sociologia das profissões. Assim, dois aspectos foram cada vez mais ressaltados: a autonomia profissional no mercado de trabalho e a utilização do saber. Nesse campo, estariam autores como Freidson (1984) e M. S. Larson (1988) que relacionaram o controle e o monopólio do saber profissional ao poder de tipo profissional. A profissão conectaria de forma orgânica, seja através das condutas e dos valores profissionais, seja de forma institucional, o saber com o poder. Não causa surpresa, assim, a utilização das teorizações de Foucault por uma autora como Larson (1988:28), ou ainda um parentesco entre as análises foucaultianas e um sociólogo da profissão médica como Freidson (1984).

Ao mesmo tempo, com a ampliação do interesse pelas profissões, surgiram outras teorizações parecidas e complementares às analisadas acima, vindas das sociologias da organização e do trabalho. A primeira, influenciada pelos trabalho de Weber sobre a burocracia e o processo de racionalização social, apreendeu a profissão como uma forma de organização especial, paralela à organização burocrática. A segunda deu ênfase ao problema da qualificação nas sociedades modernas e à inserção no mercado de trabalho, numa posição mais inspirada pela economia política neo-marxista (Braverman, 1976; Derber & Shwartz, 1988).

O que mais transparece na maioria dessas teorizações sobre a profissão seria que o poder profissional estaria relacionado ao monopólio de um saber especializado e à posição particular do profissional no mercado de trabalho, seja numa escala individual ou coletiva. Acreditamos que um tal “enquadramento” da profissão permite uma melhor apreensão histórica do surgimento do fenômeno profissional, já que, apesar de suas origens remontarem às antigas corporações da Idade Média, ele se constituiu como um fato moderno nascido do processo de racionalização social - da posição historicamente determinante da ciência nas sociedades modernas - e da solução [fim da página 74] institucional ao problema essencial da alocação de recursos e de mão-de-obra: o mercado de trabalho(3)  - ou, pelo menos, historicamente a profissão desenvolveu-se, enquanto tal, a partir desses dois pólos constituintes da modernidade.

A crescente importância das profissões foi acontecendo de forma paralela ao progressivo aumento da intervenção da ciência, em particular da “ciência aplicada”, na produção de bens e de serviços - a ciência não pode ser mais vista, atualmente, como um processo exterior ao mundo produtivo, mas sim como um elemento constituinte da própria produção econômica, a tal ponto de ser um fator incontornável da criação do setor de produção de bens e de serviços no capitalismo(4). Ao mesmo tempo, levando em conta a complexidade da sociedade moderna e do crescimento exponencial dos setores de serviços, uma nova geração de assalariados, qualificada comumente de “nova classe média”, surgiu à luz do dia, mantendo uma relação particular com o mercado de trabalho e o saber em geral.

Nesse sentido, pode-se dizer que a profissão representaria, do ponto de vista histórico, uma forma de organização privilegiada dessa “nova classe média”. Um profissional assalariado, assim, não faria parte da “classe dos trabalhadores”, pois não estaria completamente “despossuído” ou “livre” no mercado de trabalho; isto é, ele estaria submetido ao controle da formação e da utilização de seu principal meio de produção: o saber. Seria o monopólio de tal meio de produção que produziria uma “reserva de mercado” - um dos fundamentos de uma profissão -, e não o contrário: a “reserva de mercado” produzindo o monopólio.

A profissão assalariada, dessa forma, distinguir-se-ia da profissão liberal pelo fato de esta última deter, ao mesmo tempo, o saber e os outros meios de produção necessários para exercer sua atividade. Um médico liberal(5), por exemplo, possui uma “reserva de mercado” no setor de serviços e não no mercado de trabalho, porque sua condição de profissional independente, [fim da página 75] detentor de todos seus meios de produção e de sua força de trabalho, libera-o da necessidade de vender esta última, oferecendo justamente o resultado de tal combinação (força de trabalho + meios de produção) no mercado de bens e serviços.

Já um médico assalariado, trabalhando num hospital privado, não dispõe dos meios de produção necessários ao exercício de sua profissão, pois tais meios pertenceriam ao(s) proprietário(s) do estabelecimento (sala de consulta, aparelhos de exames complementares, etc.) - o médico assalariado estaria assim, de certa forma, “despossuído” de seus instrumentos de trabalho. No entanto, visto que “possui” o controle coletivo da produção e da utilização do saber médico por intermédio da organização profissional, ele estaria um “degrau” acima do que se chama comumente de “trabalhador”. Nesse sentido, a profissão assalariada representaria um caso limite de desenvolvimento da forma profissional de trabalho(6), já que, a partir do momento em que uma profissão perde o controle da produção e o monopólio de seu saber, estamos na presença de uma proletarização de uma profissão ou, em última análise, na frente do começo do fim de uma profissão.

Vocação, saber profissional e burocrático

Vocação e profissionalismo algumas vezes são colocados como termos não cambiáveis e, até mesmo, antagônicos. O profissionalismo teria destruído o aspecto vocacional dos métiers, impondo um conjunto de valores tais como competência técnica, universalismo, especificidade funcional e neutralidade afetiva(7), que teriam esvaziado o conteúdo “existencial” de uma atividade como, por exemplo, a medicina. A vocação seria uma “escolha de vida”, um projeto pessoal, um engajamento subjetivo que levaria o médico adiante na sua carreira, apesar dos percalços vividos ao longo do exercício de sua atividade. Ela realizaria o vínculo entre a motivação para a carreira e a realização pessoal que esperamos da vida profissional(8).

O profissionalismo, ao contrário, significaria o trabalho desocupado de valores existenciais e de engajamento pessoal, no qual a utilização de um saber, visto somente a partir de sua finalidade funcional, depauperaria o conteúdo axiológico do métier. Tal visão de profissionalismo o relaciona estreitamente ao trabalho burocrático e, de fato:

“o grande instrumento da superioridade da administração burocrática é o saber profissional especializado, cujo caráter imprescindível está condicionado pelas características da técnica e da economia modernas da produção de bens.” (Weber, 1969: 178)

A burocracia está, nesse sentido, impregnada de profissionalismo, e a [fim da página 76] profissão, impregnada de burocratismo, estando ambas subsumidas ao inexorável processo de racionalização social; um processo cujo ranço instrumental aprisiona a ação social, seja burocrática ou profissional, nos ditames da coerência da relação entre meios e fins(9). Contudo, se identificarmos a atividade profissional à atividade burocrática, provavelmente teremos dificuldade em encontrar um aspecto vocacional nas profissões. O saber burocrático não necessita, por princípio, de um sistema de valores como a vocação. Num ambiente completamente burocratizado, o funcionário efetua o seu trabalho sem que nele precise investir ou realizar a sua identidade pessoal. Toda a ação é coordenada por normas rígidas e fixas, externas à sua vontade ou à sua autonomia de trabalho. Ele não tem controle sobre a produção do seu serviço e nem “tem” propriamente um saber; na verdade, ele “utiliza” um, que não é dele, nem feito por ele, e sim “usado” por ele para realizar o seu trabalho(10). Nesse sentido, o despotismo burocrático se identifica com o de fábrica(11).

Ainda que se considere o saber profissional e o burocrático como distintos, a atividade profissional não seria incompatível com a burocracia:

“(...) o estudo de M. Goss mostra que, de fato, a autonomia profissional pode ser exercida num quadro burocrático hierarquizado, através da delimitação nítida de dois tipos e de dois domínios de atividade. Cada um corresponde a um sistema de norma e a um tipo de controle distinto. No domínio que ele considera como ‘administrativo’, o médico aceitará obedecer às ordens vindas de superiores hierárquicos; no domínio médico, ao contrário, o médico, qualquer que seja seu posto, aceitará e oferecerá apenas ‘conselhos’ sem valor imperativo.” (Herzlich, 1970: 166)

Existiriam, assim, dois tipos de controle que coabitariam, embora não necessariamente de maneira pacífica(12).

Mas por que duas formas de controle?

Consideramos a decomposição de trabalhos complexos em simples como um dos fundamentos da burocracia. Ora, é preciso existir “disposições” [fim da página 77] técnicas(13)  e sociais para a redução de um trabalho complexo em simples. Podem ocorrer:

  1. situações nas quais um trabalho complexo tem a possibilidade técnica de ser decomposto, mas socialmente ele é monopolizado por um grupo, podendo impedir a decomposição do trabalho;

  2. situações em que o trabalho complexo não é monopolizado, mas não existem condições técnicas para reduzi-lo;

  3. situações em que o trabalho complexo não é monopolizado e existem condições técnicas para reduzi-lo e, enfim,

  4. situações nas quais o trabalho complexo é monopolizado e não existem condições técnicas para o decompor(14).

Acreditamos que o trabalho médico encarne esta última situação: um trabalho complexo monopolizado por um grupo social específico e valorizado socialmente, e que é, pelo menos por enquanto, irreduzível tecnicamente. Por isso, a administração burocrática consegue menos se apropriar do que impor limites de competências e um controle externo sobre o resultado do trabalho profissional médico. A burocratização completa da atividade médica, abstraindo as questões relacionadas ao poder e à legitimidade social, exigiria a redução de um trabalho complexo em vários trabalhos simples, o que reclamaria uma transformação qualitativa na divisão social e técnica do trabalho(15)  - esta situação hipotética eliminaria, a nosso ver, a natureza profissional do saber médico enquanto tal.

Existem muitas similitudes entre o saber profissional e o burocrático, mas subsiste uma diferença fundamental: o profissional possui o controle de seu principal meio de produção: o seu saber. Tal situação, como vimos, não acontece com o indivíduo que cumpre tarefas burocráticas. Um médico, por exemplo, pode ser um assalariado e depender dos meios materiais e tecnológicos oferecidos por um hospital, mas preservará a sua autonomia enquanto possuir e controlar, de forma coletiva, via organização profissional, a produção e a utilização do saber médico. Assim, enquanto um profissional detiver a “posse” e o controle do seu saber, mesmo que seja um assalariado, não haverá, por definição, uma proletarização. Tal situação ocorre quando uma categoria de [fim da página 78] profissionais fica “despossuída” do seu saber, isto é, quando perde a “posse” e o controle da produção e da utilização do seu saber.

Vocação e responsabilidade

A “posse” do saber e a respectiva autonomia profissional permitem a cada profissional um autocontrole do seu trabalho e engendram, na nossa opinião, uma responsabilidade prática que aparece, quando normatizada e institucionalizada, como um dos fundamentos dos códigos de deontologia profissional. O indivíduo responde assim não somente pelos resultados da sua ação, mas também pela sua atuação no processo de trabalho, configurando toda uma série de comportamentos e posturas individuais. A responsabilidade profissional é reforçada mais ainda quando a sociedade outorga à profissão um “mandato social”, principalmente nas atividades, como a medicina, cuja intervenção no seio de uma população é evidente.

A responsabilidade vincula o profissional ao objeto de seu trabalho, mesmo se o produto final de sua atividade não lhe pertence. Ela gera uma disposição na qual a vocação pode se sedimentar e crescer em valor, ocorrendo entre as duas uma retroalimentação que impulsiona a fusão ou união da identidade pessoal com a profissional. Desse modo, quanto mais vocação e responsabilidade o indivíduo atribuir ao seu trabalho, mais a sua “identidade biográfica” e a sua “identidade profissional” estarão isentas de contradições, unindo-se na sua prática individual, e mais ele se aproximará da “fusão ideal” citada acima.

A responsabilidade pode ser considerada uma interseção entre os esquemas de interpretação dos agentes e as normas estabelecidas. Não queremos afirmar, com isso, uma simetria entre os códigos formais de conduta e as ações dos agentes. Um agente responsável tem o poder de explicar as razões de sua conduta e de assinalar os fundamentos normativos que justificam a sua ação. Ele possui uma “competência” e uma capacidade reflexiva para ajustar ou não sua conduta de acordo com os códigos formalizados existentes.

No entanto, quando os códigos formalizados são interpelações de um sistema burocratizado, vemos a responsabilidade do médico diluir-se. Aparentemente, a burocratização diminui a responsabilidade do profissional de medicina. Seria como se ocorresse uma transferência da aura carismática do médico - vinculada à responsabilidade profissional e à vocação do profissional - à sua posição no sistema burocrático e à técnica utilizada na gestão administrativa de doenças e doentes. Se a responsabilidade do médico não está diretamente dirigida ao paciente, se diversas mediações começam a surgir entre o profissional e seu cliente, a começar pela mediação técnico-administrativa, as decisões passam ao largo dos interesses dos pacientes, tomando como referência principal os interesses da organização - participar e ser agente de um sistema burocratizado dilui a responsabilidade médica e, ao mesmo tempo, sacrifica os interesses do indivíduo doente às necessidades e exigências do sistema. No caso de uma estrutura burocrática, como um hospital, por exemplo, a responsabilidade do médico vai-se diluindo a partir do momento em que o paciente vai atravessando os segmentos burocráticos da divisão do trabalho especializado da medicina, passando de especialista em especialista, até que uma tomografia computadorizada defina enfim o diagnóstico.

[fim da página 79]

Vocação e profissionalismo

Diversos autores enfatizaram o aspecto vocacional da profissão. Desde Durkheim a Parsons, passando por Weber, a vocação profissional tem uma importância capital. Diante de um mundo “desencantado”, no qual a esfera do sacro se subsome cada vez mais ao cálculo (Weber, 1959), a profissão é percebida como uma fonte de valores moralizantes, civilizadores e restauradores de uma ética perdida.

Dessa forma, para Durkheim, “a profissão seria justamente um melhor cimento que a religião” (Paicheler, 1992: 42). A vocação profissional absorve e integra os melhores elementos do “compromisso religioso”, entre os quais um aspecto fundamental: o seu caráter de missão. Tal palavra aparece, inclusive, várias vezes nos escritos de Durkheim sobre a pedagogia, como quando, por exemplo, refere-se ao poder de convicção do professor acadêmico:

“(...) o que reveste a autoridade da palavra do sacerdote é a alta idéia que ele possui de sua missão; pois ele fala em nome de um deus no qual ele crê, em relação ao qual ele se sente mais próximo do que a multidão dos profanos. O mestre leigo pode e deve ter alguma coisa deste sentimento. Da mesma forma que o sacerdote é o intérprete do seu deus, ele é o intérprete das grandes idéias morais de seu tempo e de seu país.” (Durkheim, 1977: 68)

Parsons irá mais longe, tornando-se um verdadeiro advogado da profissão; assim, afirmará a “ênfase sobre o caráter desinteressado e ético das profissões, e seu fundamento sobre um saber técnico que lhes confere autoridade e responsabilidade sociais” (Paicheler, 1992:43). Se bem que “desinteressado”, o profissional não se furta a ter um relacionamento estreito com a estrutura de poder. Consciente deste fato, Parsons utilizará, no verbete “profissões”, escrito como artigo para a International Encyclopedia of the Social Sciences (1968), a metáfora do casamento para explicar as origens da profissão: “a origem básica do sistema profissional moderno está no casamento do profissional acadêmico com certas categorias de homens práticos”.

Ora, os “homens práticos” sofrem, nas suas “funções operacionais” - políticas e econômicas, fundamentalmente -, a falta crônica de uma legitimidade ideológica difusa, do tipo que assegurava a religião. O profissionalismo e a profissão poderiam, neste caso, fornecer legitimidade às suas ações a partir de valores, inclusive mais eficientes do que aqueles representados pela ideologia religiosa.

Eliminando esse lado apologético, a vocação profissional pode ser vista como um dos elementos mais gerais de um sistema ideológico que sustenta o imaginário das classes médias no capitalismo desenvolvido. O profissionalismo poderia ser entendido como um tipo novo de vocação - sem a antiga carga “sacra” - alicerçado na necessidade do saber especializado na divisão social do trabalho, e legitimado por sua relação com o conhecimento científico.

Desse modo, para os setores médios da sociedade e, principalmente, para a classe média americana:

“(...) a cultura profissional serviu como contexto ao aparecimento de certos valores que, depois, impregnaram a sociedade inteira: sucesso, determinação, auto-estima, ambição. Enquanto atitude [fim da página 80] profissional, o apoio na ciência se fundaria no controle de si, no respeito à universalidade das regras, na prova pela experiência e na tradução de preceitos morais em verdades estabelecidas.” (Paicheler, 1992: 39)

Pode-se considerar a vocação como uma série de predisposições básicas, construídas socialmente, relacionadas a uma profissão determinada, representando um conjunto de valores que interpelariam e legitimariam a finalidade e a ação de tipo profissional. A vocação constitui, via socialização profissional, um médium pelo qual o indivíduo interioriza os valores, as regras e as normas da profissão, incorporando-os ao seu mundo interior e tornando-os “pessoais”.

Vocação e medicina

Existe um relativo consenso de que o aspecto vocacional na medicina é bastante acentuado. Ele, no entanto, sofreu grandes transformações nos últimos 40 a 50 anos, e sua identificação a uma “missão” ou a um “sacerdócio” - termos impregnados de simbologia religiosa - não seria tão presente no imaginário profissional ou, pelo menos, passou por um filtro mundano, mantendo-se com uma significação, digamos assim, mais “técnica”. Apesar disso, pode-se encontrar, por exemplo, o sentido de missão nas reivindicações de especialidades médicas que estão barganhando reconhecimento institucional.

Assim, a reivindicação de uma missão está inscrita no processo de legitimação de uma profissão:

“(...) desde o início de seu desenvolvimento, as especialidades definem e proclamam suas missões específicas. Tais missões atestam a contribuição que a especialidade, e somente esta, pode trazer num contexto referente a um conjunto de valores, e freqüentemente desenvolvem uma argumentação determinando por qual forma são particularmente apropriadas para essa tarefa. A reivindicação de uma missão tende a tomar uma forma retórica, provavelmente porque a missão ocupa um papel no contexto de uma luta pelo reconhecimento e pela obtenção de um status institucional.” (Strauss, 1992: 70)

O interessante do exposto acima é a idéia de que o sentido de missão pode corresponder à segmentação da medicina em especialidades e disciplinas, desmistificando um campo médico homogêneo e sem contradições. Dessa forma:

“(...) as identidades, como também os valores e os interesses, são múltiplas, e não se reduzem a uma simples diferenciação ou variação. Elas tendem a ser estruturadas e partilhadas; coalizões desenvolvem-se e prosperam em oposição a outras.” (1992: 68)

A segmentação da medicina “fixaria” o médico numa determinada posição no campo da medicina, influenciando a formação da sua identidade profissional.

Num sentido amplo, a segmentação da medicina teria várias “direções”, seja no sentido de um campo médico com várias disciplinas (psiquiatria e medicina interna, por exemplo) e, dentro delas, diversas especialidades (psiquiatra infantil e de adulto), seja no sentido ocupacional (medicina privada [fim da página 81] e pública). Os “efeitos de segmentação”, porém, não seriam exclusivos na determinação da identidade profissional, estando combinados aos chamados “efeitos de disposição”, principalmente do saber médico (concepção terapêutica e nosológica, por exemplo). A combinação dos “efeitos de segmentação” com os “efeitos de disposição” situaria o médico no campo geral da medicina(16), condicionando sua identidade profissional.

A vocação e a responsabilidade profissional, assim, seriam vistas de maneiras diferentes segundo o segmento ao qual pertence o médico, e conforme a sua disposição em relação ao saber médico. A responsabilidade profissional, por exemplo, é percebida pelo médico geralmente como uma construção individual surgida da sua interação com o paciente. Tal percepção é facilitada nas situações onde domina uma concepção liberal da profissão ou uma concepção nosológica centrada na interação médico/paciente, como as de cunho psicanalítico. Nas situações nas quais a medicina faz parte de uma política pública e onde predomina uma concepção nosológica de cunho sociológico, a responsabilidade tem uma índole social.

Conclusão

A sociologia da saúde, em particular da medicina, possui algumas dificuldades de legitimação; afinal, a doença, a saúde, a medicina são observadas e vividas por todos e não têm, aparentemente, nada de especificamente social. A razão sociológica tem dificuldades em competir com a razão biológica, a razão psicológica e mesmo com a razão econômica; afinal, suas interpretações a respeito da realidade médica não parecem e nem são percebidas como cruciais. O que conta no campo da saúde é a dimensão clínica e experimental, o que importa é o fato biológico. O resto é resto.

A sociologia da saúde ainda pode ter alguma credibilidade, contanto que fique eclipsada na sua área acadêmica; contudo, não é o caso da sociologia na saúde, que tem que conviver diariamente com os profissionais da saúde. Como, neste caso, manter a identidade sociológica e, principalmente, ganhar o respeito entre os profissionais da saúde, mostrando a utilidade e a pertinência da sociologia nesse campo profissional? Para isso, os sociólogos na saúde precisam revelar a visibilidade do fato social numa realidade completamente dominada pelo fato biomédico; para isso, será necessário um distanciamento crítico das representações profissionais usuais que perpassam o campo dos profissionais da saúde, mostrando que tais concepções são produzidas socialmente e que, inclusive, o império do fato biológico, ele mesmo, não surgiu naturalmente, como cogumelos em dias de chuva, mas sim a partir de um determinado contexto histórico - em suma, o fato biológico seria também um produto social.

Nesse sentido, acreditamos que a “sociologia das profissões” possa ajudar eficazmente a sociologia da e na saúde a buscar um reconhecimento e uma legitimidade no campo profissional da saúde. Ao mostrar, por exemplo, que a legitimidade da medicina funda-se na história política e cultural dessa profissão, e não numa essência natural evidente a todos; ou, ainda, mostrando que a autoridade médica foi construída graças ao controle de um determinado [fim da página 82] "espaço" ou "campo", condição sine qua non de uma produção e legitimação de um saber especializado e... profissional. "A sociologia das profissões", nas suas versões menos apolíneas ou angelicais, desmistificaria a neutralidade do saber médico, demonstrando que sua legitimidade científica ocorreu também a partir do fortalecimento e da construção da profissão médica; ou seja, o saber médico estaria conectado organicamente a um tipo de poder muito comum e característico da sociedade moderna: o poder profissional.

Em suma, o duo saber/poder, se quisermos “complementar” alguns entrelaçamentos gerais dados pelas diversas “arqueologias do saber”, precisa ser estudado de uma forma concreta, justamente da forma concreta a que se propõe a “sociologia das profissões”.

Referências Bibliográficas


Notas

1) Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (Campus I – João Pessoa).

2) Ao mesmo tempo, Parsons constatou uma dupla competência no saber profissional, em particular o médico, que julgamos fundamental para a nossa análise: um saber prático aliado a um saber teórico proveniente da formação médico-universitária e de uma socialização “secundária”.

3) Todas as sociedades devem encontrar uma solução ao problema da alocação de recursos e de mão-de-obra: “de um lado, o sistema de produção deve ser alimentado com os inputs de trabalho por ele requeridos; por outro lado, a força de trabalho deve ser abastecida com meios de subsistência monetários (renda) e sociais (status). O mercado de trabalho resolve os dois problemas de alocação simultaneamente, enquanto nas sociedades não-capitalistas ou pré-capitalistas encontramos predominantemente formas institucionais em que o tipo e o nível dos meios de subsistência fornecidos aos indivíduos dependem de outros fatores, e não das contribuições dos indivíduos para a produção social” (Offe, 1989: 24).

4) Marx faz referência, nos Grundise, a uma situação na qual a produção de valor através do trabalho seria substituída pela produção de valor através do conhecimento ou da ciência. Parece-me que, se podemos falar de produção de valor segundo a noção antiga utilizada na economia política marxista, a ciência (conhecimento e informação) e o trabalho teriam papéis complementares (Marx, 1980).

5) Na nossa opinião, a profissão liberal é uma modalidade da organização profissional. A diferença entre o profissional liberal e o assalariado estaria no fato de que possuem uma relação diferente com os dois tipos de mercados complementares ao capitalismo: o mercado de bens e serviço e o mercado de trabalho. A unidade conceitual das duas modalidades de profissão residiria no controle da produção e numa “possessão” coletiva de seu principal meio de produção, o saber, via organização profissional.

6) Sempre será interessante lembrar que a profissão assalariada é, cada vez mais, o status comum dos profissionais.

7) Ver discussão de C. Herzlich sobre os valores do profissionalismo, na qual critica Parsons por tê-los identificado apenas à prática médica e não às profissões em geral (Herzlich, 1970: 158).

8) Assim, “uma das funções da vocação é orientar a conduta atual no interesse de um objetivo a ser atingido” (Hall, 1970: 210).
9) Contudo, a racionalização social e a burocracia moderna não se esgotam na racionalidade em relação a fins. Ver crítica a Weber e sua concepção de racionalização em Jürgen Habermas (1987). Ver discussão sobre as diversas “lógicas de ação” possíveis numa empresa capitalista em Lucien Karpik (1972).

10) Evidentemente, se nós subirmos na hierarquia burocrática ou se examinarmos algumas áreas onde a divisão técnica do trabalho necessite de um saber especializado, encontraremos um saber do tipo profissional. Vale dizer que um administrador, atualmente, é um profissional, possuindo um saber que produz regras de gestão e de consecução de serviços que são “utilizadas” e não “apropriadas” pelo funcionário na realização de suas tarefas.

11) Ver discussão geral sobre o processo de trabalho na fábrica em Stephen Marglin (1989) e André Gorz (1989).

12) “É evidente que tal tipo ideal de profissão - no qual as grandes características podem ser resumidas em: autonomia, perícia, controle dos pares e valores comuns, choca-se de frente com o mundo da organização racional, onde seria melhor falar de salários, especialização, subordinação, status de regulamentação e de dependência” (Sainsaulieu, 1987: 31).

13) A tecnologia, nesse caso, é uma relação social; assim, o taylorismo e uma “técnica de gestão” podem ser considerados como tecnologias.

14) Evidentemente, não falamos, aqui, daquelas situações onde uma atividade perde o seu status profissional diante de uma inovação tecnológica. Nesse caso, o problema não é a decomposição do trabalho em trabalho simples, nem a perda do controle do saber, mas sim a substituição, pura e simples, de um saber por outro.

15) A transição histórica do artesão independente para o operário necessitou, é certo, de uma transformação na organização econômica e social, em suma na divisão social do trabalho, mas também de uma série de invenções tecnológicas concomitantes, inclusive de natureza administrativa e de controle produtivo, como a manufatura. As mudanças na relação tecnologia/divisão social do trabalho permitiram paulatinamente a redução de um trabalho complexo, como o de um artesão, em vários trabalhos simples, como o de um operário. Ver posição contrária a esta acima defendida em Stephen Marglin (1989) e, para uma discussão mais geral sobre tecnologia e desenvolvimento capitalista, ver Jon Elster (1989).

16) Ver discussão geral sobre posição, disposição e situação no capítulo 6 do livro de Raymond Boudon (1986).


RESUMO
PROFISSÃO, VOCAÇÃO E MEDICINA

Este artigo faz uma análise crítica da "sociologia das profissões" e do conceito de profissão. Procura situar o conceito de profissão em relação à profissão médica, realizando uma conexão teórica com o conceito de vocação. Tal conceito é revalorizado no estudo das profissões, em particular na análise da profissão médica.
PALAVRAS-CHAVE: sociologia das profissões; vocação; medicina.

RÉSUMÉ
PROFESSION, VOCATION ET MÉDECINE

Il s'agit d'une analyse critique de la "sociologie des professions" et du concept de profession. On cherchera à situer le concept de profession par rapport à la profession médicale, tout en faisant une connexion théorique avec le concept de vocation. Ce concept est mis en valeur dans l'étude des professions, en particulier dans l'analyse de la profession médicale.
MOTS-CLÉS: sociologie des profession; vocation; médecine.
 





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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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