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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 25-39


VIABILIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR NORDESTINA
E GLOBALIZAÇÃO: MITOS E DESAFIOS

Eric Pierre Sabourin (1)

 

Introdução

Uma das principais questões colocadas para os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento visando o fortalecimento da agricultura familiar tem a ver com a viabilidade e a sustentabilidade desses sistemas de produção num contexto de integração dos intercâmbios e dos mercados. Os tomadores de decisão, em particular ao nível local o microrregional, querem saber se vale a pena investir no apoio a agricultura familiar e de que maneira para garantir resultados. Não se pretende analisar aqui a evolução das políticas públicas brasileiras em matéria de agricultura familiar(2). Trata-se apenas de uma reflexão ilustrada destinada a esclarecer os termos do debate sobre a sustentabilidade da agricultura familiar e a globalização dos mercados a partir de exemplos concretos, apontando para novos desafios.

A primeira parte introduz o tema da viabilidade social da agricultura familiar como base essencial da sua sustentabilidade(3) abordados alguns dos desafios colocados pela questão da aplicação de políticas locais de desenvolvimento sustentável da agricultura familiar brasileira, no contexto da integração regional e da globalização, a partir de exemplos nordestinos.

Viabilidade, evolução institucional e mutações técnicas

Da viabilidade para a sustentabilidade

A viabilidade econômica e social da agricultura familiar é, de maneira geral, associada à reprodução dessas unidades familiares de produção. A especificidade da lógica sócioeconomica da agricultura familiar foi evidenciada por vários autores (Chayanov, 1966; Abramovay, 1992; Lamarche, 1993; Francis, 1994). A viabilidade econômica(4) da [fim da página 25] agricultura familiar foi definida em termos de manutenção, conservação e reprodução dos fatores de produção. Ora, a viabilidade econômica e técnica da agricultura familiar não pode ser visualizada somente do ponto de vista da produção e do mercado. Ganha a ser analisada também do ponto de vista social, quer dizer a partir da organização social das estruturas produtivas e do manejo dos fatores técnicos. Isto tem a ver com a evolução das práticas de acesso, distribuição, transmissão e gestão dos fatores de produção.

Viabilidade social e econômica da agricultura familiar

O Grupo de Pesquisa sobre Produção Familiar do Centro de Humanidades da Universidade Federal da Paraíba (UFPb) oferece uma definição para a viabilidade econômica e social da agricultura familiar (1998):

"Considera-se a viabilidade da produção familiar no seu sentido amplo que abrange os aspectos econômicos, sociais, ambientais e culturais. Para uma dada região ou localidade, ela corresponde assim, a reprodução “ampla” das diversas unidades de produção (família, terras e patrimônio) de uma localidade ou região determinada, garantindo a integração econômica, social e cultural das novas gerações e a manutenção dos agro-ecossistemas."

Para completar esta definição, teria que precisar os critérios ou indicadores que correspondem, para cada situação dada, aos tais degraus ou etapas para chegar a padrões de reprodução viáveis, satisfatórios. Malagodi (1998) agrega:

"Essa definição determina pelo menos três principais vertentes para uma análise da viabilidade das unidades de produção familiar: a viabilidade econômica, a capacidade de reprodução agro-ecológica dos ecossistemas cultivados e a continuidade social, quer dizer a disponibilidade de produtores para assumir estas unidades no futuro."

Neste sentido, Camarano e Abramovay (1998) mostram a diferença entre a reprodução da unidade familiar (a partir da terra) via os filhos e o fato do conjunto dos filhos conseguir emprego e renda através dessa unidade.

A noção de viabilidade social, além do aspecto restrito da reprodução do patrimônio e da força de trabalho, obriga a considerar outras escalas que aquela da unidade de produção familiar. Uma tem a ver com o espaço local e outra com o ambiente institucional externo. Quem fala de agricultura familiar, faz referência a uma coletividade local e a um território(5). Mendras (1978), lembra que a noção de agricultura camponesa [fim da página 26] (diferente daquela de agricultura familiar) é associada, entre outros elementos, a relações de comunicação interpessoal ou de proximidade. Assim, o velho debate sobre a caracterização do camponês, pode ser resumido à permanência de sociedades camponesas. Estabelecendo uma comparação, a viabilidade das unidades agropecuárias familiares depende também das relações sócio-econômicas de solidariedade ou de reciprocidade entre as famílias. Pode-se citar o compadrio, o mutirão (ajuda mútua), a comunidade, os fundos de pasto (pastagens comuns), as fontes de água comunitárias. Existem também novas formas locais de coordenação entre os produtores: as organizações profissionais como sindicatos, associações, cooperativas e as redes(6) interpessoais como as redes de comercialização ou as redes de inovação(7). A viabilidade da agricultura familiar depende portanto, também, do ambiente institucional regional e global. Este é constituído pelas políticas públicas, pela organização das cadeias produtivas, pelas redes de inovação, pelo acesso a informação ou pelas oportunidades de aprendizagem, individual ou coletiva.

A permanência e o desenvolvimento da agricultura familiar, depende cada vez mais de relações territoriais, de redes econômicas, sociais e [fim da página 27] técnicas, como aquelas verificadas no caso das pequenas e médias empresas (Courlet, 1993). Isto remete para o debate sobre território e sobre políticas locais e regionais de desenvolvimentos territorial (Pecqueur, 1995; Abramovay, 1998).

A noção de sustentabilidade foi logo aproximada àquela de agricultura familiar (Chambers & Conway, 1992; Ehlers, 1996; Veiga, 1994; Veiga, 1996). Mas, em que o conceito de sustentabilidade contribui hoje para definir melhor a viabilidade econômica, ecológica e social da agricultura familiar ?

O Banco Mundial (1990) defende a tese da luta contra a pobreza rural na América Latina, associada ao fortalecimento da agricultura familiar como base estratégica de desenvolvimento rural sustentável. A defesa da agricultura familiar não se deve somente à sua capacidade social de absorver mão-de-obra no campo, mas de gerar crescimento econômico (Banco Mundial, Brasil, 1993). Este argumento foi retomado em discursos recentes(8), mas interpretado de diversas maneiras no Brasil. O fato de existir um amplo setor da agricultura familiar cada vez mais integrado ao mercado e mais organizado não constitui ainda uma força política suficiente para garantir a aplicação efetiva de políticas públicas específicas. Em realidade, faltam diálogo e alianças entre os segmentos dos produtores, do mercado, da agroindústria, e por suposto do Estado. A repartição da informação e do poder político e financeiro é ainda demasiada assimétrica para garantir negociações que permitam uma co-gestão da política agrícola.

De fato, no Brasil, a agricultura familiar não representa ainda uma real prioridade para as políticas públicas agrícolas comparada com a agricultura empresarial que gera divisas ou com o latifúndio que gera sustentação política por parte das oligarquias e dos grupos políticos tradicionais. A agricultura familiar pode tornar-se vítima das suas qualidades ou do seu sucesso. Mais adaptada às mutações climáticas e econômicas pelas suas estratégias de limitação dos riscos, aparece até como eficiente, competitiva e flexível, comparada com a grande empresa agropecuária (Vieira, 1995). Realmente, como escreve Delgado (1995), ela se adapta à reconversões sucessivas e rápidas, responde às mudanças dos mercado e aos impulsos das políticas públicas. É inegável que a agricultura familiar resiste e se adapta. Mas a quê custo, com que tipo de remuneração do capital, da força de trabalho, e gerando que renda ? Esta é a outra cara da moeda quanto à viabilidade econômica e social da agricultura familiar.

A tentativa brasileira do apoio à agricultura familiar

Até hoje, a maioria das políticas e dos programas de desenvolvimento direcionados para a agricultura do país privilegiou a produção patronal e [fim da página 28] empresarial. Foi até o caso dos projetos especiais para a região Nordeste que, a longo ou médio prazo, pouco fizeram para os produtores familiares, comparados com as regalias obtidas pelo latifúndio via a “indústria da seca” e pela agricultura empresarial através dos incentivos federais como o FINOR (Fundo de Incentivo para a região Nordeste) (Oliveira, 1977; Novaes, 1994). Esta política concorreu para o empobrecimentos da população das áreas rurais paralelamente ao processo de “desruralização” do país, observado nos anos 90 (Camarano & Abramovay, 1998).

Por outro lado, os efeitos combinados da integração regional através da criação do Mercosul em 1991 e da estabilização monetária via o Plano Real em 1994, têm provocado uma importante redução dos preços agrícolas, avaliada entre 15 e 30% conforme os produtos (Deser, 1997). Neste novo contexto, a agricultura familiar, mantida numa situação de difícil acesso ao crédito rural, aparece como mais flexível e mais resistente que a agricultura empresarial. Mesmo assim, ela sofre com a desestruturação das cadeias comerciais, das estruturas de armazenamento, de produção de semente e dos serviços de assistência técnica e de pesquisa dos estados (Delgado, 1995).

Os novos projetos oficiais, como o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o PRONAF, foram inicialmente bem desenhados. Na prática, os sucessivos cortes orçamentários, a burocracia das estruturas federais e o filtro das instituições bancárias têm comprometido uma aplicação efetiva e decisiva dos recursos a favor dos segmentos mais necessitados da agricultura familiar brasileira (Deser, 1996; Abramovay & Veiga, 1998).

O apoio à agricultura padece da sua falta de antecipação, ao exemplo da seca anunciada de 1998 no Nordeste. Está ainda globalmente restrito a ações de tipo social como a previdência rural, a medidas emergenciais como as frentes de trabalho e a distribuição de cestas básicas ou a propostas caritativas como o Projeto Comunidade Solidária. Mal pode se comparar o volume e os efeitos produtivos das aposentadorias rurais com os valores e resultados mais otimistas dos financiamentos direcionados para o crédito rural ou o subsídio à produção, incluindo o PRONAF. Assim, no Estado do Ceará(9), o reinvestimento produtivo de parte das aposentadorias rurais constitui a primeira fonte de financiamento público da agricultura familiar (Oliveira et alli, 1997).

Além da falta geral de crédito rural com juros acessíveis no país, esta realidade constitui mais um desafio para procurar entender porque os poucos apoios institucionais, a priori, pertinentes, a favor do desenvolvimento sustentável da agricultura familiar brasileira, terminam não sendo realmente aplicados em benefício dos seus setores mais [fim da página 29] fragilizados(10).

Transformação institucional e mudança técnica

A proposta de uma agricultura ecologicamente e socialmente sustentável constitui uma verdadeira utopia. Segundo Dover & Talbot (1992), que falam de “sonho”, ela tem que respeitar o meio ambiente e o homem (as mulheres, os jovens, os pobres); ela deve integrar os marginalizados, e finalmente, gerar emprego e renda no meio rural. São os desafios que enfrenta quem luta para este sonho. Por outra parte, se os agricultores familiares e as entidades que os apoiam, não aproveitam este discurso, essa dinâmica, para lutar por este sonho, ninguém o fará no lugar deles. O respeito de tais parâmetros depende de relações de força e de enfrentamentos. Portanto os agricultores familiares estão obrigados, “condenados”, a se organizar para negociar, para planejar o seu futuro e, como o mostra Gehlen (1995), para lutar contra a exclusão.

A organização autônoma dos produtores constitui, sem dúvida, um primeiro critério de viabilidade social e econômica da agricultura familiar. Mais que uma resistência, no sentido de resistir socialmente para continuar a existir, esta organização passa por uma série de adaptações permanentes: atualização das formas de solidariedade familiar e de reciprocidade camponesa a um novo contexto institucional; adaptação do “saber-fazer” camponês em matéria de produção e processamento às novas exigências do mercado. Esta adaptação traduz-se em termos de inovação institucional, técnica e econômica. Pode ser ilustrada através da diversidade das formas institucionais referenciadas na segunda parte: Sindicatos de Trabalhadores Rurais no Estado da Paraíba, Conselhos Municipais em Tauá (CE) e em Mirandiba (PE), associações e comunidades em Massaroca (BA), cooperativas nos perímetros irrigados e assentamentos de reforma agrária, centrais de serviços e grupos de produção comunitária em Pintadas (BA), redes de proximidade e redes sócio-técnicas, nos diversos casos abordados (Sabourin, 1999).

Entre os diversos fatores de viabilização da agricultura familiar - sem negar a importância dos elementos agro-ecológicos e técnicos - os aspectos econômicos e sociais (institucionais ou organizacionais) aparecem cada vez mais presentes. Os enfoques econômicos neo-institucionalistas e convencionalistas utilizados para analisar as dinâmicas dos complexos agro-industriais e das [fim da página 30] cadeias produtivas (Farina, 1993; Machado, 1998) estão sendo aplicados às situações da agricultura familiar (Abramovay & Veiga, 1998). As transformações técnicas dos sistemas de produção da agricultura familiar Brasileira, dependem estreitamente de transformações institucionais conduzidas pelos pequenos produtores em resposta a evoluções do ambiente institucional (Sabourin et alli, 1998).

Porém, as organizações formais não são as únicas instituições ativas em matéria de estruturação regional ou de difusão de informações e inovações. Existem estruturas não formalizadas, baseadas em relações interpessoais que desenham redes de proximidade (ao nível da localidade) e redes comerciais e sócio-técnicas ao nível setorial ou micro-regional.

Finalmente, outro elemento fundamental para projetar uma agricultura familiar sustentável reúne aspectos econômicos, ecológicos e técnicos. Trata-se da adaptação de sistemas de produção mais facilmente reprodutíveis, essencialmente a partir do baixo uso de insumos externos (Reijntjes et alli, 1992).

Apenas uma ressalva: geralmente, as conversões agro-ecológicas ou as mudanças radicais de enfoque ou de sistema de produção passam por verdadeiras mutações dos sistemas técnicos de cultivo e dos referenciais técnicos a aplicar. Tais revoluções tecnológicas supõem, portanto, um enorme esforço de validação, de transferência de tecnologia e de aprendizagem individual ou coletiva. No Brasil, numa região como o Nordeste, dado o ambiente institucional e tecnológico, o acesso ao insumo "informação" torna-se essencial... e este insumo tem também um custo.



Mapa 1 - Localização dos municípios citados

[fim da página 31]

Desenvolvimento sustentável, organização local e globalização

Ninguém contesta que as propostas de desenvolvimento sustentável sejam generosas e justas ou que seus princípios devam ser divulgados e experimentados. Porém, a aplicação destas propostas em qualquer contexto deve ser examinada com um olhar crítico.

Organização de produtores e planejamento municipal

No Brasil, fala-se muito de planejamento de desenvolvimento local sustentável ou de agricultura sustentável, como se fosse uma alternativa, uma receita que bastaria colocar em aplicação na escala local, ao nível dos produtores, para melhorar a situação ou ainda para ser reconhecido pelos tomadores de decisão e pelos organismos financiadores. Em outras palavras, sustentabilidade e inserção em mercados globalizados, seriam a última oportunidade para os pequenos agricultores pegarem o “bonde do progresso e da modernização”. Ora, a agricultura sustentável não é uma nova tecnologia como a irrigação localizada, nem uma proposta de vida ou de mercado “alternativo” como a agricultura agro-ecológica. Trata-se mais de um ideal, como a justiça social, de um projeto de sociedade que deve ser construído tecnicamente, socialmente, politicamente e civicamente.

Seria um mito perigoso passar a idéia de que apenas os agricultores e os trabalhadores sem terra de uma região marginalizada como o Nordeste semi-árido têm um papel e uma responsabilidade essencial em matéria de desenvolvimento sustentável. Eles têm a mesma responsabilidade que qualquer cidadão em não depredar o meio ambiente e os recursos naturais locais. Mas eles têm, antes de tudo, a responsabilidade e o dever de alimentar as suas famílias e de lutar pelos seus direitos como o acesso à terra, ao emprego, à moradia e à cidadania.

Até hoje, o grande mérito das propostas de desenvolvimento sustentável nos Estados do Nordeste (Magalhães, 1995) e do Programa de Fortalecimento da Agricultura familiar do Governo Federal (Pronaf) foi de ter acelerado a criação de espaços e estruturas locais de negociação dos recursos públicos para a agricultura familiar. São os chamados Conselhos Municipais de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Ceará, ou mais simplesmente, conselhos ou comissões municipais de desenvolvimento rural nos outros Estados (ver p. 34: “Novos produtos da pecuária familiar nos Sertões de Sergipe e Bahia”, e também Sabourin et al., 1997; Abramovay & Veiga, 1998). Podem constituir os primeiros passos de uma política diferenciada de desenvolvimento territorial para a agricultura familiar Embrapa, 1997; Vilela, 1997; Abramovay, 1998). Apesar das dificuldades enfrentadas no Nordeste, qualquer negociação dos projetos orçamentos locais, mesmo no marco de um conselho municipal assimétrico, manipulado e sem verdadeiro poder de decisão e de execução, já cria um precedente, depois do qual será sempre difícil voltar atrás.

O Conselho de Desenvolvimento Rural Municipal de Mirandiba (PE)

Mirandiba é um município do sertão de Pernambuco, marcado pela recessão após a crise do algodão(11). Reúne hoje 10.500 habitantes (3.000 no centro [fim da página 32] “urbano”) repartidos em 120 comunidades ou aldeias para uma área de 800 km2. O Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR) criado em 1996 reúne os representantes da Prefeitura Municipal, dos órgãos técnicos estaduais, da sociedade civil (Igreja, sindicatos, ong’s...) e representantes dos produtores. A sua originalidade foi optar por um sistema de representação das comunidades rurais através da eleição de 20 representantes correspondendo a 20 pólos associativos do município, já que é impossível contar com um membro de cada associação local. A maioria dos CMDR da região resolveu o problema convidando unicamente a um representante do sindicato de trabalhadores rurais, do sindicato da agricultura patronal e de alguma organização de produtores patrocinada pela prefeitura. Assim os agricultores familiares conseguem dispor da maioria entre os 37 membros do Conselho. Este detalhe mudou completamente a natureza dos projetos realizados através de fundos públicos como o Pronaf ou os subsídios do Estado de Pernambuco e do Banco Mundial (programa Prorural). Para o manejo da água na zona rural por exemplo, quando a prefeitura e o estado tinham projetado três grandes projetos centralizados de bombeamento e armazenamento de água com energia solar ou eólica (US$ 30.000 cada), os representantes dos agricultores no Conselho tem exigido não menos que dez pequenos projetos menos vistosos, de menor custo e assegurando uma melhor repartição decentralizada do manejo da água, além de soluções técnicas social e tecnicamente apropriáveis pela população local.

Globalização e espaços econômicos para a agricultura familiar

Defender a idéia de um desenvolvimento sustentável regulado pelo mercado é um desafio árduo na situação atual, até para o Vice-Presidente do Banco Mundial (Stiglitz, 1998). De fato, os processos de globalização dos intercâmbios são associados a novas diferenciações, geográficas e sócio-econômicas. Uma dessas conseqüências, acelerada pelos processos de comunicação, é a segmentação dos mercados. Cerdan e Sautier (1998) mostram a coexistência, no setor agro-alimentar, de formas de produção e de consumo mundializadas e de sistemas produtivos constituídos por redes localizadas de empresas. Estas são baseadas em dinâmicas territoriais ou institucionais específicas e numa interação estreita entre territórios, inovação e qualidade dos produtos. Além do caráter biológico, perecível e heterogêneo das matérias primas agrícolas, existe um forte fator de identidade dos bens alimentares e de identificação dos consumidores com os produtos (Cerdan & Sautier, 1998).

De fato, apesar das propostas comerciais de globalização dos mercados e de uniformização dos padrões de consumo, a população das principais regiões do mundo prefere ainda consumir produtos locais, regionais ou diferenciados. Nas cidades brasileiras como em outros países, numerosos consumidores continuam procurando produtos caseiros, granjeiros ou, simplesmente, típicos da agricultura familiar ou de uma região específica(12). Existe portanto, nessas [fim da página 33] localidades, uma tradição, um “saber-fazer” localizado, técnicas de produção e de processamento, condições agro-ecológicas específicas que geram esta diferenciação dos produtos biológicos (Cerdan et al.,1997). Tais atributos e conhecimentos constituem o verdadeiro capital humano ou social da agricultura familiar brasileira.

Novos produtos da pecuária familiar nos Sertões de Sergipe e Bahia

O bode assado do São Francisco

A criação de cabras (bodes) constitui a base da alimentação e da renda das comunidades de pequenos agricultores do Sertão de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) no vale do Rio São Francisco. As organizações de produtores, como o Comitê de Associações Agro-pastoris de Massaroca solicitaram um estudo do mercado da carne de caprinos e descobriram a alta demanda para carne de “carneiro na brasa” nas cidades da região, ao invés da tradicional carne de cabra. Mantiveram o nome tradicional de “bode assado” mas passaram a produzir ovelhas, carneiros e borregos para valorizar melhor o potencial de criação de pequenos ruminantes da região. O saber fazer local, junto com uma identificação regional, foram mobilizados para garantir a qualidade de um produto novo de consumo essencialmente urbano.

O Queijo “coalho” de Nossa Senhora da Glória em Sergipe

Tanto nas praias da Bahia como nas cidades do litoral e do interior nordestino, uma maioria de consumidores e de turistas prefere o tradicional queijo coalhado e prensado do Agreste e dos Sertões do Nordeste (chamado coalho) aos queijos argentinos ou europeus, sem sabor ou demasiado exóticos. Esta realidade sustenta uma série de atividades “alternativas” de processamento e comercialização de leite e queijos no Semi-árido sergipano, chegando a absorver 60 a 80 % de uma produção local de leite crescente, e cada vez mais, assegurada por produtores familiares. “Alternativa” na medida que essa atividade ocupa essencialmente pequenos produtores de porcos pluri-ativos, artesões, pequenos criadores e intermediários comerciais ocasionais. O desafio dos produtores familiares de leite, junto com os pequenos fabricantes de queijo, é organizar melhor o controle da cadeia, de maneira a garantir a qualidade do produto e um retorno econômico estabilizado. Assistimos, em Nossa Senhora da Glória, como em Juazeiro, a emergência de diversas economias externas localizadas ou aglomeradas:

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[fim da página 34]

Allaire e Sylvander (1997) mostram como esta relação passa pela construção social de processos de inovação localizados e ligados a mecanismos de especificação e a qualidade dos produtos(13). Nos países europeus a renovação dos territórios aparece associada à mutação dos modelos de produção agropecuária, passando de uma lógica produtivista para uma lógica de qualidade. Cerdan & Sautier (1998) lembram que no Nordeste Brasileiro, o retorno do “local” provêm bem mais do impacto do desengajamento do Estado Federal (desregulamentação das cadeias, privatização dos serviços, descentralização das políticas para a esfera municipal). A implementação do Mercosul modifica as vantagens comparadas, renovando certas condições de concorrência dos territórios. Estas vantagens competitivas são então ligadas à qualidade, aos serviços ou ao posicionamento específico do produto. São atributos dinâmicos que dependem da capacidade de coordenação (ou de organização) dos atores econômicos locais, num território dado, para defender seus interesses.

Essas características devem ser aproveitadas pela agricultura familiar para existir apesar da globalização. Elas abrem janelas de consumo correspondendo a hábitos humanos, identidades e experiências históricas ou a valores culturais regionais (Cappecchi, 1987). Uma pista de pesquisa consistiria em verificar se a consolidação de mercados segmentados corresponde à uma abertura e à uma oportunidade do mercado capitalista globalizado ou às limitações das tentativas de padronização do consumo. Ora, não têm duvida que essas oportunidades devem ser trabalhadas e aproveitadas pela agricultura familiar.

Políticas específicas, ao exemplo do Programa de Verticalização do Distrito Federal (PROVE), são necessárias para convencer produtores, técnicos e banqueiros, dessa vertente da globalização (Carvalho, 1997). Se não, ela chega a ser transfigurada pela ideologia neoliberal e apresentada como um desafio, um challenge, que até os agricultores familiares, considerados como micro-empresários, não poderiam perder (Carvalho, 1997).

Conclusão

Sem a organização sócio-econômica ou sócio-técnica dos agricultores, não existem muito meios institucionais para viabilizar o apoio a uma agricultura familiar reprodutível. Sem essa organização, nunca haverá política de ação pública a favor do desenvolvimento da agricultura familiar. Por conseqüência, sem o apoio público atrelado à organização dos produtores, a sustentabilidade destes sistemas de produção no Brasil está ameaçada. Uma política diferenciada, descentralizada, articulando os esforços privados e públicos, estaduais e locais seria mais uma garantia para a difusão de propostas sócio-técnicas adaptadas [fim da página 35] para a viabilização de sistemas diversificados.

Isto leva a formular algumas pistas de trabalho em matéria de apoio a produção e a valorização dos produtos. Em primeiro lugar, é importante reconhecer e motivar a capacidade de inovação do setor familiar agropecuário e artesanal, em particular pela valorização do saber-fazer existente e pela capacitação profissional. Em segundo lugar, cabe preservar a principal vantagem competitiva dos sistemas localizados de inovação, a saber sua capacidade de regulação apesar de condições precárias de produção e de comercialização. Finalmente é necessário favorecer o engajamento das organizações locais (ação coletiva) junto com as instituições públicas (ação pública) no apoio aos sistemas de produção familiar através de mecanismos de coordenação e de negociação, de sistemas de formação ou ainda com a elaboração de um marco de leis mais adaptadas (Cerdan et al. 1997).

Porém, por mais que se consigam elementos ou apoios públicos nesta direção, nenhuma política resolve a contradição da sustentabilidade ou o dilema do “custo social” da viabilidade da agricultura familiar. A definição de tais políticas, como o programa PRONAF ou o atual programa de Reforma Agrária, já depende diretamente, hoje da organização dos produtores familiares e dos setores da sociedade civil comprometidos com eles. A ação pública não chega longe se não for articulada e completada pela ação coletiva (organizada) e pelas ações individuais.

O papel dos técnicos dos centros de pesquisa, desenvolvimento é, precisamente, contribuir para identificar e para tornar mais visíveis e acessíveis, e finalmente, para qualificar, as formas de inovação local e os atributos específicos das sociedades locais. Um segundo passo seria qualificar as relações de intermediação entre ação individual, ação coletiva e ação pública de maneira a poder desenhar e logo coordenar planos locais ou microrregionais de desenvolvimento territorial.

Referências Bibliográficas


Notas

1) Professor e pesquisador visitante do CNPq junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus II - Campina Grande). Consultor do Programa de Agricultura Familiar da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). E-Mail: eric.sabourin@cirad.fr.

 2) Para isto lembramos as referências conhecidas mencionadas neste texto: Abramovay & Veiga, 1998; Delgado, 1995; Deser, 1996 e 1997; Vilela, 1997, entre outros.

3) A noção bastante complexa de sustentabilidade, embora diversamente interpretada, é onipresente nos discursos de hoje. O conceito, aparentemente, tem tudo para fazer a unanimidade. Billeaud (1995) lembra como, inclusive nos países desenvolvidos, ele “é pouco discutido ou controvertido, mas, mesmo assim, continua incerto”, para não dizer pouco seguro.

 4) Não se refere aqui a viabilidade econômica, no sentido de viabilidade de sistemas (viabilidade matemática) aplicada a economia, ver Aubin J.P.in Vieira P.F e Weber J. 1997.

5) Território: espaço geográfico construído socialmente, marcado culturalmente e delimitado institucionalmente. No sentido sócio-antropológico, Di Meo (1995) chama de território “o ambiente de vida, de ação e de pensamento de uma comunidade, associado à processos de construção de identidade”.

 6) Redes: instrumento intelectual usado para evidenciar as diversas formas de relação social. Aqui corresponde ao conjunto de atores (indivíduos e instituições) ou outras unidades organizadas ou relacionadas num espaço dado, em torno de um tema ou objeto dado. Darre (1986) usa o conceito de “rede de diálogo técnico” para designar “o desenho das relações entre as pessoas, que permite prever, quem fala com quem, e entre que indivíduos, as idéias tem mais probabilidade de ser transmitidas e transformadas”.

7) Redes sócio-técnicas: são as estruturas desenhadas pelas relações interpessoais múltiplas que reúnem atores individuais e institucionais ao nível regional ou local, em torno de objetos e objetivos comuns (Sabourin, 1999). As redes econômicas são as mais conhecidas e visíveis. No caso da produção leiteira familiar do Estado de Sergipe, Moreira et al. (1996) mostram a correspondência entre diversificação dos sistemas de produção familiar e diversidade das formas de articulação com o mercado, em particular através de intermediários ocasionais (fretistas, “biscaiteiros” ou “mangalheiros”) e de unidades de processamento informais. Observamos os mesmos mecanismos no caso da cadeia produtiva da batatinha no Agreste da Paraíba. As redes de proximidade e redes sócio-técnicas passam por este tipo de relacionamento econômico (ajuda mútua, fidelidade comercial, etc.). Mas elas dependem sobretudo de relações, práticas e valores sociais ligados a diversos universos sócioeconomicos. Boltanski & Thévenot (1991) distinguem as lógicas (eles falam de “cités”) do mundo doméstico (camponês, artesão); aquelas do mundo mercantil (comercio, mercado), do mundo industrial (agroindústria, empresa multinacional, etc..) e, finalmente, do mundo cívico (política, administração). As redes sócio-técnicas, na realidade, nem sempre são tão visíveis ou palpáveis. Um esforço específico é necessário para identificá-las. Mas estas redes representam potentes exemplos de práticas institucionais “catalisadoras”. Tal abordagem passa, também, pelo apoio à implementação de sistemas de informação que podem subsidiar tanto a ação pública como as atividades das redes sócio-técnicas ou econômicas.

 8) Ver o argumento que Joseph Stiglitz (1998), vice-presidente e economista chefe do Banco Mundial repetiu em parte, em Brasília, em julho de 2000, defendendo o papel multiplicador da reforma agrária em termos de crescimento econômico e enfatizando os erros das políticas econômicas neoliberais. Segundo ele, “a liberalização dos mercados e o combate à inflação não são suficientes para garantir uma alocação mais demócrática, justa e sustentável de recursos”, havendo “a necessidade da intervenção dos Estados na regulação dos mercados, nos investimentos públicos e nas políticas de transferência de tecnologia” (tradução nossa).

 9) O estudo realizado pelo Cpatsa em mais de 3000 propriedades de agricultores familiares de 5 estados do Nordeste mostra o uso dos recursos das aposentadorias na produção e até para o investimento produtivo em numerosas unidades. Os dados da pesquisa foram tratados para os Estados do Ceará, Bahia, e Rio Grande do Norte, e publicados no caso do Ceará (Oliveira et alli, 1997).

 10) Além do caráter recente do programa PRONAF, tem que lembrar que a escolha dos municípios beneficiados depende dos governos de Estado assim como o desenho dos projetos estruturais. A seleção dos produtores para créditos de custeio depende das prefeituras ou das comissões municipais e a outorgação do crédito dos bancos oficiais. São muitos intermediários que, além de não estarem sempre próximos do agricultor familiar, podem ter interesses contrários ou concorrentes. Em 1996 e 1997, no norte de Minas Gerais, a Emater e a Secretaria de Agricultura somente selecionavam projetos de agricultura irrigada para o Pronaf. A facilidade para o banco, num contexto de crédito rural caro e raro, é privilegiar os agricultores mais dotados, por exemplo, grandes proprietários que conseguem o registro de “agricultor familiar”, como foi verificado em vários municípios da Paraíba.

11) Além da caída dos preços, a partir de 1985, o algodão desapareceu da região por causa do ataque do bicudo (Anthonum grandis). A ONG As-pta intervêm no município de Mirandiba a pedido da prefeitura para contribuir a experimentar e difundir alternativas de armazenamento e manejo de água na zona rural.

 12) A procura de produtos agro-biológicos ou orgânicos é também crescente e significativa no Sul do país ou em torno das metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre ou Florianópolis.

 13) Pesquisadores do Cirad desenvolveram a noção de Sistemas Agro-alimentares Localizados definidos como “organizações de produção e de serviços (unidades de produção agropecuárias, empresas agro-alimentares, comerciais, de serviços, restaurantes..) associadas, pelas suas caractéristicase e pelo seu funcionamento à um território específico. O meio, os produtos, os homens e as suas instituições, seu saber-fazer, e suas práticas alimentares combinam-se num território para produzir uma forma de organização agro-alimentar para uma escala espacial dada” (Cirad-Sar, 1996).

RESUMO
VIABILIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR NORDESTINA E GLOBALIZAÇÃO:
MITOS E DESAFIOS

O artigo trata da viabilidade e da sustentabilidade da agricultura familiar no Brasil. A primeira parte situa os conceitos de viabilidade econômica e social da agricultura familiar. O debate sobre desenvolvimento sustentável e agricultura familiar é colocado dentro do contexto da evolução econômica mundial e das especificidades da política pública brasileira em matéria de agricultura familiar. A segunda parte discute a questão das políticas locais de desenvolvimento sustentável a partir de exemplos nordestinos. Além da análise dos principais obstáculos para a aplicação local das recomendações objeto dos atuais discursos desenvolvimentistas, algumas pistas e alternativas são identificadas.
PALAVRAS-CHAVE: agricultura familiar; sustentabilidade; viabilidade sócio-econômica; ação pública.

ABSTRACT
THE FEASIBILITY OF NORTHEASTER BRAZILIAN FAMILY FARMING SYSTEMS AND GLOBALIZATION:
MYTHS AND CHALLENGES

This article deals with the feasibility and the sustainability of Brazilian family farming systems. In the first part, the concepts of the economic and social feasibility of family farming are introduced. The debate on sustainable development and family agriculture is replaced in the context of economic global evolution and of the specifications of Brazilian public policy on the matter of family farming. Based on some examples in the Northeast region, the second part discusses local politics of sustainable development challenge. As well as this analyses the main obstacles for the realising of the recommendations, object of the present developmental discourses; some clues and alternatives are identified.
KEYWORDS: family farming; sustainability; social-economic feasibility; public action.



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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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