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Política & Trabalho 16 - Setembro / 2000 - pp. 123-135


O CENTRO DRAGÃO DO MAR DE ARTE E CULTURA:
EXPRESSÕES DE UM LUGAR DE MODERNIDADE
(1)

Vancarder Brito Sousa (2)

 



Simbolização da modernidade oficial através do Centro Dragão do Mar

O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura instalou-se em meio à antiga Praia do Peixe, atualmente chamada Praia de Iracema, primeira zona portuária de Fortaleza, ainda hoje pontilhada de velhos galpões e sobrados das companhias de comércio que ali funcionavam junto ao porto até meados deste século.

Nascido de um discurso de modernidade que se instalou desde 1987 com a chegada de Tasso Jereissati ao Governo do Estado do Ceará, o Centro Dragão do Mar em 1999 sugere, dentro do universo simbólico que o gerou, a renovação de toda uma gama de significações referentes aos conteúdos, tanto do local onde se encontra, a Praia de Iracema de antigas tradições portuárias, poéticas e boêmias, hoje transfiguradas através do lazer e do entretenimento; quanto da própria funcionalidade e destinação da cidade de Fortaleza.

Sob a ótica do discurso do “governo das mudanças”, Fortaleza destinar-se-ia ao convívio com um modo de vida desvinculado das bases relacionadas à produção industrial. Entendida assim, a partir do momento da existência do Centro Dragão do Mar e da política cultural que lhe deu sustentação, como inclinada a se adequar a um modo de vida de laços mais estreitos com a globalização econômica e cultural, que hoje parece ser a tônica mais marcante das novas configurações societárias que o mundo experimenta.

O aspecto visual do Centro Dragão do Mar imediatamente se distingue de tudo o que há no entorno, devido à sua polifonia arquitetônica de inspiração pós-modernista, posta em funcionamento através dos elementos construtivos que se estendem sobre a área de 30 mil metros quadrados. Sua estrutura arquitetônica linear e seqüencial parece haver sido “derramada” sobre o bairro, distribuindo-se em várias direções, e abrindo para os espectadores admirados as suas várias entradas. Conhecê-lo, ou melhor, desvendá-lo, parece ser um desafio que aponta a possibilidade de permanecer fora de um movimento que inquieta, por propor a realização amistosa do diálogo entre o moderno (o Centro Cultural) e o arcaico (o entorno), na expectativa da entrada em uma nova era - um novo tempo.

Tempo pós-moderno, festejado pela política cultural fundada pelo ex- [fim da página 123] Secretário de Cultura do Estado, Paulo Linhares, e simbolizado na estrutura do Centro Dragão do Mar pelas diversas citações, mesclas e reminiscências históricas, levadas a extremos através da retórica justificativa dos seus projetistas.

Aproximando-se do horizonte de elaboração pós-moderno, no qual as referências e citações são presenças marcantes, para os arquitetos do Centro Cultural, a recuperação de antigas tradições, sob uma leitura contemporânea, balizada a partir das novas tecnologias e demandas do urbano, garantiria uma viagem onde se presentificariam os oitões, as réstias de sol, as amplas varandas em branco das casas de fazenda, em um arranjo de monumento arquitetônico.

Mas que tempo seria esse movimentado pela proposta do Centro Cultural, e como se daria sua vivência dentro dos horizontes de significação que o mesmo coloca?

Antes de tudo, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura parece ser um lugar de modernidade, em um sentido aproximado ao qual se refere Chesneaux, quando comenta as características do Centro Cultural Georges Pompidou, o Beaubourg, de Paris. Chesneaux afirma que o Centro Cultural Georges Pompidou se apresentaria como um lugar de modernidade, na medida em que seria capaz de representar um “discurso sob forma de macro-estrutura que recapitula (...) os grande axiomas culturais e ideológicos da modernidade” (Chesneaux, 1995: 89).

Dentre estes axiomas modernos destacar-se-iam os da comunicação e circulação, encerrados em algo que se aproximaria de uma “catedral da modernidade”, criada para marcar uma posição de prestigio e poder, típica de um novo mundo tecnológico, não se importando em dialogar com as formas do entorno, antes colocando-se “(...) em situação de exterioridade espaço-temporal que é deliberadamente provocadora” constituindo “um discurso ideológico ‘insensível’ (...) e que se quer estranho, por princípio, a tudo o que está em volta dele e a tudo o que o precede” (Chesneaux, 1995: 90), situação esta para a qual fora destinado: revitalizar uma área específica do centro de Paris com o incremento do turismo.

Através da observação do modelo sugerido pelo Centro Cultural Georges Pompidou, seria possível traçar um paralelo à implantação do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, claro, guardando as especificidades de cada processo.

No caso particular do Dragão do Mar a modernidade institucional proposta pelo projeto político em curso, o das “mudanças”, assumiria uma forma prática a partir da materialização do objetivo de dotar Fortaleza de condições de desenvolvimento de produtos culturais e de serviços, destinados à circulação em nível das exigências globais de qualidade.

O Centro Dragão do Mar desponta no projeto oficial como símbolo grandioso desta atmosfera de rompimento com o passado moldado pelo clientelismo e estagnação econômica, que seria uma “era de luzes” (Teixeira, 1994) pautada sobre o desenvolvimento econômico. “Era das luzes” que, chegando ao plano cultural, dota a cidade de um equipamento proposto a romper com o passado e com “uma paisagem deprimida”(3), que seria a da Praia de Iracema anterior à construção do Centro Dragão do Mar, tornando-se, “um orgulho para o Ceará”, como vende o seu slogan de inauguração visto nos outdoors [fim da página 124] pela cidade.

Aventurar-se em direção ao Dragão do Mar pode suscitar uma euforia por algo completamente novo e que pode não encontrar similitude em experiências passadas do espectador no contexto da história da cidade.

Embalado pelas imagens de uma cidade que aspira transformar-se rapidamente em destino turístico privilegiado, em nível nacional e internacional, cujas reformas, construções e demolições apontam para o surgimento de algo absolutamente novo para os padrões locais, viveria esse espectador a oportunidade de encontrar-se também como protagonista deste espetáculo de formas urbanas e societárias em mudança.

Em meio a todas as propostas de transformação e às mudanças efetivadas, permanecem a pobreza e a degradação sob forma de grandes favelas, em sua maioria fora dos circuitos de circulação de desfrute do lazer e tempo livre na cidade, sobretudo nas zonas Norte e Oeste da cidade. Vale ressaltar que áreas a Leste, onde prevalecem as residências, comércio e serviços destinados às camadas economicamente privilegiadas da cidade, como a própria Praia de Iracema, possuem núcleos habitacionais de baixa renda, como a favela do Poço da Draga, instalada a poucos metros da entrada do Centro Dragão do Mar.

O Dragão do Mar, nascido da ação vanguardista de uma elite política, propõe-se a continuar o rompimento com o passado na área de política cultural, ao mesmo tempo que nas áreas do turismo e do urbanismo. Da mesma forma, estaria pondo em prática essa lógica em outras áreas da ação governamental, como a administração pública e a economia. As funções de política cultural, renovação urbana e turismo, se imbricariam no espírito da “destruição criativa” (Berman, 1992) que o empreendedor político do “governo das mudanças”, estaria abrindo para o desfrute público.

A noção de invenção da modernidade, a partir da ação política de uma vanguarda no Ceará, poderia ser melhor definida com a afirmação de Balandier:

“(...) o paradoxo que afeta o sistema das idéias, que define o campo da modernidade, é que ele nasce de vanguardas, de criadores de rupturas, de teóricos muito críticos, e que logo se torna rapidamente suspeito.” (Balandier, 1997: 139)

A construção de um prédio novo como o Dragão (ao invés de uma tentativa de aproveitamento das antigas construções da área), cumpriria para a proposta oficial três funções: política cultural (implantação de uma indústria cultural local), renovação urbana e turismo, como símbolo da modernidade no Ceará, guardando sob a forma de símbolo, a capacidade de mobilizar “de maneira afetiva as ações humanas” (Laplantine, 1996: 21). Assegurando desta forma a aprovação popular e a legitimidade social do projeto.

Suas dimensões grandiosas e sua funcionalidade moderna expressariam um movimento de tempo e de espaço de uma época marcada por aceleradas trocas internacionais e intensificação da produção e do consumo, que teria na sociedade de massas o seu maior sujeito e no shopping center, através do consumo simbólico, talvez, o seu lugar de maior representatividade. Nesse sentido, afirma Frúgoli:

“(...) os shoppings aspiram a traduzir, do ponto de vista [fim da página 125] institucional, uma utopia urbana que o capitalismo moderno não conseguiu concretizar: a equiparação de todos os cidadãos a consumidores, circulando incansavelmente por esta microcidade de sonhos.” (Frúgoli, 1990: 28)

Assim, o espaço representado pelo shopping pode ser tomado como um bom modelo para se perceber os traços de uma sociabilidade fundada sobre as bases do consumo em uma sociedade de massa. Seus diversos espaços, suas funções e definições podem ser vivenciados como uma réplica em escala da vida da cidade. Grupos e freqüentadores diferenciados são capazes de atribuir significados os mais variados ao espaço que estão circulando, até mesmo a exclusão e formas de apartação social podem ser observados nesse microcosmo.

Frúgoli sugere que mesmo com consumo definindo a existência e a necessidade do shopping, este, em seu uso por múltiplos grupos e tipos sociais, conteria significados outros que extrapolariam a sua dimensão fundadora, mercantil. Nesse ponto, valeria ressaltar o papel assumido pelo shopping na vida da cidade, como ponto de encontro e de socialização.

A implantação do Centro Dragão do Mar incorpora alguns dos traços do shopping center, como a diversão e o incentivo aos encontros e estreitamento dos vínculos sociais relacionados ao consumo, um lugar onde os bens culturais são dispostos sob forma comercial, ao mesmo tempo em que as pessoas podem passear como se estivessem em uma rua do centro comercial

O Centro Dragão do Mar, em sua concepção, cumpriria uma função social ao se contrapor à “teoria dos containers”, pela qual a metrópole moderna estaria em breve sujeita a um acirramento da segregação, posicionando, de um lado, uma maioria armada que dominaria os espaços públicos, e de outro uma minoria com recursos financeiros suficientes para freqüentar, com segurança, lugares privados de trabalho e diversão, se deslocando rapidamente entre uns e outros.

A freqüência a este “shopping da cultura” sugere um consumo simbólico diferenciado de outros lugares como o bairro, a escola, ou o local de trabalho. Sua grandiosidade parece oferecer às pessoas a oportunidade de “acesso simbólico a um espaço urbano marcado pela modernização” (Frúgoli, 1990: 33). No caso do Dragão do Mar, esse imaginário de modernização pode ser expresso através da opinião dos próprios usuários sobre o espaço. Assim, falas nas quais o mesmo seja referenciado como possuidor de “uma estrutura de primeiro mundo”, ou “espetacular”, foram ouvidas com freqüência junto aos usuários(4).

O Dragão do Mar conforme definido por um de seus projetistas, além de um lugar de produção e consumo de bens culturais, também cumpre a função de via aberta, marcada pela presença dos equipamentos culturais e pela possibilidade de seu consumo. Onde as pessoas podem ir para “verem e serem vistas”, para compensar um pouco da deficiência de convivência que marcaria as grandes metrópoles modernas, o esvaziamento dos lugares públicos, do sentido da vida pública, que estaria sendo substituída pelos sentidos e motivações da esfera da vida privada como exposto por Sennett (1988).

[fim da página 126]

Sennett indica a tendência nas cidades modernas de procura de uma vida comunitária legítima, mesmo que esta precise ser construída, pois a vida comunitária existente se encontra enfraquecida por uma superlativização do Eu. Esforço que na maioria das vezes pode redundar em fracasso, pois os lugares erigidos para a recriação da vida pública tornam a acentuar as individualidades e o isolamento entre as pessoas, tornam-se esvaziados pelo predomínio da “tirania da intimidade” sobre a vida pública.

Segundo Gondim (1999), a grandiosidade da arquitetura pós-moderna do Centro Dragão do Mar remeteria a um conjunto de imagens identitárias do projeto político em ação no Ceará, e do momento de transformações urbanas e sociais que ele sugere e que ajudariam a formar em torno destas a atmosfera das “mudanças”:

“(...) são elementos básicos [incorporados ao Dragão do Mar]: a escala (grandeza); o branco (pureza); e a luminosidade (ambas). A grandeza, aqui, diz respeito não apenas a um atributo material, físico, mas à simbologia associada aos grandes espaços, que evocam largueza de espírito, autoridade, respeito, pompa, como nos monumentos e nos templos. Nesse sentido, a arquitetura do Centro Cultural é consistente com o ambicioso projeto político de tornar Fortaleza uma cidade global, projetando-a pelo seu papel no circuito produtor, distribuidor e consumidor de cultura (...) mais do que a imagem de uma cidade moderna, poder-se-ia dizer, que o Dragão do Mar projeta a imagem de uma cidade ‘pós-moderna’.” (Gondim, 1999 a: 22-23)

Através da observação de alguns pontos de destaque do conjunto pode ficar mais clara a proposta do projeto, a sua intenção de agregar citações também de um Ceará rural dentro de sua proposta de monumentalidade, mesmo que muitas vezes de difícil discernimento, subliminares portanto, conforme Gondim (1999 a) dificilmente identificáveis para leigos.

Como informam alguns responsáveis ligados à concepção do Dragão do Mar e da política cultural atual, os aspectos que responderiam por uma memória arquitetônica local se encontrariam esvanecentes, residuais, ou mesmo nunca teriam existido na memória construtiva da cidade, posto ela ter menos de um século e ser marcada profundamente pelo ecletismo arquitetônico e por aceleradas mudanças.

As proporções grandiloqüentes do seu hall de entrada, apresentando um pé direito superdimensionado como o das catedrais góticas, parecem acentuar a pequenez do visitante frente ao que é simbolizado ali. Remeteriam ao caráter de fundação de uma tradição, experimentando-se novos conceitos quando todas as tradições, quiçá existentes na cidade, teriam sido abandonadas ou esquecidas, como define o mesmo projetista:

“(...) por que as pessoas tinham essa preocupação tão grande com essa coisa que nunca tiveram [um passado colonial, uma tradição arquitetônica], entendeu? Então eu percebi que tinha esse problema de criar alguma coisa que arquitetonicamente fosse representativa da gente e tivesse um aspecto memorável, do ponto de vista de espaço [fim da página 127] público (...) as pessoas gostariam de ter um espaço público que fosse lembrado, memorável (...) essa tradição precisava ser construída (...) a tradição é uma invenção.” (Gondim, 1998 b)

Outro ponto relevante para ilustrar essa necessidade de se criar uma tradição é o aspecto da adaptação visual e temática com o seu entorno arquitetônico na Praia de Iracema. O Centro Cultural seria problemático para alguns por não se preservar a memória e o padrão de sua vizinhança, apesar desta não ser marcada por um estilo de arquitetura em especial, prevalecendo o ecletismo, num cenário de certo abandono de galpões e sobrados.

Por outro lado, na visão dos seus criadores, prevaleceria a harmonia com o meio, aparentemente não querendo deixar margem para questionamentos a respeito da conveniência da implantação do conjunto, mesmo sendo tomado sob a perspectiva da preservação da memória do lugar, que seria, sob esta ótica, antes estimulada do que destruída, a partir da vivência do lugar proporcionada pela nova estrutura oferecida.

A observação dos pontos determinantes do conjunto também passa pela valorização dos elementos naturais, a ventilação e a luz representada pela intensa insolação; dos elementos subjetivos como o caráter hedonístico e democrático do espaço, que possibilitaria às pessoas liberdade de se movimentarem e adotarem funções não previstas anteriormente pelo projeto. Por exemplo, o uso que se está firmando no espaço sob o planetário (no formato de um grande odeon). Lá as crianças ficam brincando com o grande eco formado, correm entre as colunas brincando de “quatro cantos”, os adultos sentam no chão para conversar e os jovens namoram.

O aspecto de liberdade sobre o qual o projeto é proposto, estaria marcado pelo caráter de um corredor cultural, relacionado à proposta de que o Centro Cultural funcionaria como uma espécie de rua aberta - portanto pública e democrática - ligando o complexo de edificações pré-existentes(5)  (mais elevado 25 metros em relação ao nível do mar), à Praça Almirante Saldanha na Praia de Iracema com seus bares, restaurantes e equipamentos de lazer públicos e privados.

Enfim, o Centro Dragão do Mar é apresentado como um lugar de livre trânsito, que estimule a freqüência e, conseqüentemente, a melhoria da qualidade de vida na cidade, resultando na formação de um público consumidor de arte, dando sustentação a intenção oficial de implantação de uma indústria cultural forte no Estado.

Lugar dos mitos e marco espaço-temporal da modernidade cearense

O Centro Dragão do Mar, para o seu principal idealizador Paulo Linhares, poderia estar se propondo em sintonia com o “mito fundador” da renovação, lido na metáfora do romance Iracema de José de Alencar(6), como em Linhares [fim da página 128] (1992). Desta leitura metafórica do romance entre Iracema e o colonizador Martins Soares Moreno, realizada por Linhares, emerge a visão de um conjunto de símbolos da “cearensidade” capazes de revelar o desapego à terra e ao antigo - quando de sua entrega ao estrangeiro.

Para Linhares, o mito de Iracema estaria inserido geograficamente na cidade em marcos como a casa de José de Alencar, a estátua de Iracema na Av. Beira-Mar e o Teatro José de Alencar, estruturando a cidade enquanto doadores de sentido e marcos de identidade. Como ele afirma: “este mito se entranhou no imaginário cearense e até mesmo como ele representa certas maneiras de pensar e enxergar o Ceará” (Linhares, 1992: 117).

Talvez esse mito da transformação e de abandono da tradição possa ser lido na própria Praia de Iracema atual, onde a chegada do Dragão do Mar revivificaria o abalo irreversível do mundo de Iracema, por um amor e motivos que se ligariam aos valores, padrões e necessidades ditados d’além mar, pelo aventureiro conquistador. Ainda metaforicamente, a modernidade aspira fecundar a todos os lugares com a incerteza das rápidas mudanças e desvinculação com a tradição, conforme o tom sugerido por Balandier: “o tempo da modernidade atual é, mais ainda que o de épocas passadas, dificilmente definível. Ele é pensado a partir de rupturas” (1997: 139).

Um tempo forjado no “instante”, momento regido pela contínua substituição de formas exigidas a partir das aceleradas rotações do mercado, que superaria o sentimento das relações sociais marcadas pela “duração” (Chesneaux, 1995: 23), do relacionamento duradouro, da estabilidade. Para Chesneaux, “tudo concorre para a identificação da vida moderna com a ética do instante, ao império do ‘nanosecond’, ao culto do descartável, ao frenesi da obsolescência” (1995: 23). O tempo vivido na “duração” significaria a esperança da comunidade em face da ameaça de fragmentação e desaparecimento que a modernidade parece estimular.

Viver o “tempo da duração” é assim, para Chesneaux, “uma vivência coletiva, uma conquista social cumulativa, uma contínua construção (...) o tempo é um campo de liberdade que permite aos homens desenvolver suas mútuas relações, compreender-se, estar juntos” (1995: 25).

Aos estímulos de uma nova vivência do tempo na modernidade, atrelar-se-iam também as mudanças na relação com o espaço. A extrema velocidade com que as comunicações e os novos meios de transporte, os regimes de produção e de troca e os mercados financeiros colocam todos os países e povos em contato, terminaria por prender os homens em si mesmos, ao contrário de se verem libertos através das promessas de autonomia e felicidade divulgadas pela técnica. Desta forma, “as ruas se esvaziam, as pessoas se ignoram ou se evitam, os lugares e os momentos de encontros coletivos verdadeiros se tornam raros” (Chesneaux, 1995: 32), idéia que se aproximaria de Giddens (1991: 27), quando afirma “que em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico”, através das influências geradas a grande distância, desta [fim da página 129] maneira, a forma visível dos lugares ocultariam relações distanciadas, mas que mesmo assim “determinam a sua natureza”.

Nos sentidos propostos por Giddens e Chesneaux, vale a pena interrogar sobre as condições de estruturação do Centro Dragão do Mar em relação ao meio urbano onde está inserido, e em relação às características peculiares em que o amplo movimento de alcance global, como o da modernidade, pode assumir numa determinada localidade, no caso, Fortaleza.

Assim, na readequação do espaço público representado pela Praia de Iracema, o seu uso estaria perdendo há alguns anos suas características de um bairro residencial e boêmio, cujo modo de vida tranqüilo, sugeriria antes a intimidade e o convívio, do que a indiferença aparente que parece ser a maior marca dos indivíduos e grupos que hoje lá circulam e consomem - a Praia de Iracema foi transformada no principal pólo etílico e gastronômico da cidade.

Por outro lado, a Praia de Iracema pode encerrar outros conteúdos, além da idéia de drama e violação que envolve o mito que lhe emprestou o nome. Em sua atualidade, a cidade de Fortaleza, com a forte intervenção do poder público em âmbito estadual e municipal na reformulação do espaço urbano, reelabora a velha Praia do Peixe como uma espécie de vitrine da diversão de qualidade na cidade, seu pólo turístico em sentido exato, pronta a recepcionar os novos estrangeiros.

A Praia, enquanto local de encontro da terra com o mar e de ruptura e descontinuidade estabeleceria, segundo Paulo Linhares (Linhares, 1992: XIX), conteúdos ligados à liberdade e a transgressão imagética. Esta praia, local de passagem, partida e chegada no seu antigo uso portuário, poderia ser hoje novamente o espaço do trânsito, cujas marcas seriam as do consumo de diversão, e desfrute do tempo livre.

Poderia, assim, existir no Centro Dragão do Mar a simbolização de um novo porto, atualizado, que liga os circuitos do local e do externo através do turismo, da mídia, da moda e do mercado. Desta forma, poderia ser a festa a representação mais pertinente para o espaço onde o Centro Cultural foi erigido, referência a uma possível gramática de significados que tivesse estimulado a sua construção.

Outros conteúdos ligados ao imaginário de fundação do Centro Cultural, bem como ligados à própria Praia de Iracema podem fazer eco no retorno às imagens da Fortaleza provincial, de suas experiências libertárias e emancipatórias: nas conseqüências dolorosas da Confederação do Equador (em 1824), como também vividas no episódio da abolição dos escravos marcado pela participação de Dragão do Mar (Francisco José do Nascimento - o Chico da Matilde) como o herói jangadeiro que liderou o movimento que impediu o desembarque dos escravos no porto de Fortaleza em 1881, e a revolta popular armada que derrubou a oligarquia Accioly em 1912.

Dos eventos ligados à campanha pela libertação dos escravos, nesta tradição libertária, emerge não mais o Chico da Matilde, mas o Dragão do Mar(7)  (Morel, 1988: 157), figura mitificada e idolatrada como herói libertário, capaz de [fim da página 130] fundamentar uma parte do imaginário emancipatório e globalizante que ainda ecoaria na cidade. É sob esta forma de herói libertador, que parece haver sido apropriada a história do jangadeiro para dar sustentação imagética ao projeto de política cultural do Estado do Ceará. Assim, em meio ao espaço “colonizado” pelo consumo de diversão da Iracema atual (a praia), surge o mito do Dragão do Mar, de polaridade contrária ao de Iracema, em forma de edificação que domina o horizonte arquitetônico e simbólico, tensionando ainda mais na Fortaleza atual a sua relação entre o local e o global.

Acompanhando sua trajetória provinciana, Fortaleza parece se dedicar a voltar sempre a sua atenção para as modas, os gostos, as relações, o comércio e as coisas que vem de longe, pelo oceano. Fortaleza parece sempre estar, nesse sentido, em busca de uma afirmação, da criação de uma identidade.

Isto pode ser sentido nas sucessivas transformações urbanas promovidas por suas elites em busca de características mais racionais, portanto modernas, para suas funções: plano do Eng. Silva Paulet com seu traçado xadrez, que desafiava a sinuosidade do riacho Pajeú, o qual ditava o contorno da cidade (1818); o plano do Eng. Adolfo Herbster, logo depois em 1875, promovendo a “haussmanição” de Fortaleza. Materialização do desejo de atualização conceitual da cidade, de limpeza, de arejamento, conquista do espaço habitado por pessoas sãs e prósperas, coordenadas por elites esclarecidas, vanguardas políticas aptas a promover a materialização do novo e do progresso, a preocupação com o futuro (Linhares, 1992), como afirma Pimentel Filho:

“(...) no caso de Fortaleza, temos uma cidade muito mais em processo de construção de uma identidade, real e imaginária do que (re)construção (...) o processo de formação da cultura erudita local, inclui, portanto, novos lares, nova espacialidade.” (Pimentel Filho, 1998: 42)

Seriam rudimentos de uma provável mentalidade de modernidade, de apego às rupturas e descontinuidades como visão de mundo, possibilidade de constante inserção nos modelos constituídos (políticos, econômicos e culturais) pelos centros mais avançados do capitalismo mundial, que ainda hoje reverberariam nas propostas tecnocráticas dos gestores da atual política cultural, e que deu origem ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura na Praia de Iracema. Fortaleza, como as jovens cidade ibero-americanas, segundo Paulo Linhares, “não reconhecem avós, tampouco pais, nem traços de história” (1992: 341); constituída por um povo jovem e sem história. Segundo o mesmo autor, “compreendemos nossa existência como disponibilidade permanente e incondicional para o futuro” (1992: 341).

Na mesma linha, um dos responsáveis pela política cultural que deu origem ao conjunto Dragão do Mar, sugere a existência de um traço da cultura cearense ligado aos espaços abertos, e a uma falta de ligação com o hábito de freqüentar lugares dedicados à informação e a oferta de bens culturais (e públicos), como também o sentido de um vazio, pela inexistência de um passado colonial.

A cidade careceria de uma arquitetura de aspecto memorável, monumental, o que justificaria que fosse construída então uma tradição para [fim da página 131] Fortaleza. Para este gestor, a cidade não teria vivido uma efervescência durante o período colonial, tal qual ocorrido em outras capitais brasileiras como Salvador, Recife, São Luiz. No Ceará os eixos econômicos passavam pelos municípios de Camocim, Aracati, Icó e Sobral, portanto, defende que é preciso estabelecer uma tradição a partir de agora:

“Fortaleza teria que compensar essa falta de áreas históricas, de valor histórico, com alguns equipamentos básicos de cultura, que dessem possibilidade inclusive, do aparecimento de uma indústria cultural (...) para competir nesse processo da indústria da informação e da sociedade do conhecimento, e que a gente precisaria ter um equipamento de qualidade. Precisaria ter uma escola, que é o Instituto Dragão do Mar.” (Gondim, 1999 a)

Contudo, se sustentaria a afirmação de que o Ceará não guardaria uma memória arquitetônica que desse respaldo a uma tradição construtiva e cultural, que fosse necessário recorrer às formas e dimensões ousadas do Centro Dragão do Mar como marco de uma tradição? O apego à novidade, a desvalorização do patrimônio cultural não incidiria no acirramento de uma situação de reféns do novo?

O novo momento preconizado por Linhares (1992) se apoiaria na idéia de que o mundo estaria vivendo uma era pós-industrial, em que as ocupações movimentadas pela indústria tradicional estariam cedendo espaço para o crescimento dos setores de serviço nas grandes cidades. Para Paulo Linhares:

“(...) o aparecimento da praia, como centro de um certo imaginário urbano da cidade de Fortaleza e o estilhaçar do nosso centro (tanto do ponto de vista econômico, como funcional e imaginal), representa a entrada da cidade num formato de organização pós-industrial. Fortaleza deve ser pensada como um certo tipo de cidade que se caracteriza pela perda do senso de continuidade e onde as sensações de incerteza proliferam.” (Linhares, 1992: 338)

Um dos autores do projeto se refere também a um espírito do devaneio, e da boêmia que permearia todo o projeto do Centro e do Instituto Dragão do Mar. O que o faz representar um marco topográfico no mapa simbólico de um novo momento que a cidade viveria, em que fossem superadas algumas deficiências da cidade em função dos seu espaços de convívio público e de uso cultural. Dentro do novo panorama que Fortaleza estaria começando a viver, a partir da perspectiva de ares pós-modernos, pós-industriais da leitura oficial, cabe questionar sobre as formas específicas de sociabilidade que poderiam surgir do convívio e dos usos praticados dentro do Centro Dragão do Mar.

Definir assim as malhas de significados produzidos e que dão sustentação imagética ao conjunto, percebidas a partir de uma etnografia que pretenda dar conta das estruturas de significação e que remetam à sua base social, na qual as escalas de importância e hierarquias de ações e relações sociais são produzidas e institucionalizadas.

As categorias de tempo e espaço, nascidas e desenvolvidas no recém-inaugurado Centro Dragão do Mar, são tomadas como fundamentais para o [fim da página 132] estabelecimento e compreensão de uma sociabilidade, de uma cultura, no sentido referido por Geertz como um contexto que guardaria os acontecimentos sociais, e “algo dentro do qual eles podem ser descritos com densidade” (Geertz, 1989: 24).

Observar o desenrolar das ações, os ritmos do público, as construções imaginárias a partir da gama de tipos sociais que o freqüentam, desde os extratos sociais mais pobres aos mais favorecidos, pode propor uma alternativa de compreensão deste “shopping da cultura”, apresentado com suntuosidade pelo Governo como pedra de toque de uma nova era, e arauto da liberdade e democracia em sua função primeira de desenvolver uma indústria de bens culturais, em sintonia com o incremento do turismo. Alternativa de compreensão possivelmente marcada pelo contraste, entre o tempo e espaço pós-moderno da proposta oficial, e o que emerge da vivência da cidade pelos citadinos, das relações sociais que ai proliferam, assumindo e marcando os espaços, atribuindo-lhes significados próprios.

Lugar de passagem e lazer, de formação de um quadro de consumo específico, prioritariamente de cultura, acomoda usos marcados por uma inflação dos símbolos ali contidos na espetacularização do cotidiano em uma área destinada a ser uma vitrine oficial do “Ceará que deu certo”.

Não guardando relações e memórias dos que por ali rapidamente passam, e que ficam apenas para utilizar o seu tempo livre ou consumir bens culturais, as formas sociais que ele induz e tolera no seu espaço, podem significar uma evidência das visões parciais de quem com ele trava contato, quando, de passagem, o indivíduo que o utiliza estaria “sozinho, mas semelhante aos outros” (Augé, 1994: 93). Mantendo o visitante uma relação contratual apenas com o próprio lugar ou com o poder por ele significado, o Centro Dragão do Mar, inspira o aprofundar-se nas relações que compõem um não-lugar, que se propõe conectar o espaço local ao mundo.

Porém, a observação das ações que se desenvolvem naquele espaço podem revelar os tipos de rupturas que a modernidade proporciona no Dragão do Mar. Índice do processo vivido por essa Fortaleza que aspira se modernizar mantendo seu quadro de pobreza. Criando redes imaginárias nas quais a vida numa cidade de ares modernos poderia compensar a desigualdade e exclusão, chamando a atenção para as formas de manutenção do local e da memória frente a proposta, aparentemente avassaladora, do global e da desterritorialização.

Rupturas que parecem requerer a cada momento a presença do pólo opositor, o elemento de vida a prometer estabilidade e continuidade para que se desenvolva o próprio discurso da superação. Contraditória por natureza, haja vista as manutenções que preserva frente às mudanças que promove, a modernidade conceitual lida através do Dragão do Mar, com traçado e funções adquiridos à grande distância - nos discursos e práticas relacionados aos países centrais do capitalismo internacional - parece se desenvolver, na sua vivência pelos usuários, um tempo de ritmos mais tranqüilos e intimistas.

Neste sentido, pode-se ressaltar que o tipo de freqüência do Dragão do Mar abriga desde famílias passeando com carrinhos de bebê, grupos de adolescentes que sobem nas costas um dos outros para escrever seus nomes numa das paredes da galeria destinada a este fim, até as crianças que varam o [fim da página 133] dia brincando e andando de um lado para o outro das instalações, talvez construindo para si mesmas seu próprio Dragão do Mar, como um grande e estranho navio ancorado para sempre naquele porto esquecido da Praia de Iracema. Crianças de pés descalços, shorts molhados do mar e sem camisas, vindas da vizinha Favela do Poço da Draga, maravilhadas e cada vez mais íntimas de tudo aquilo, como a requerer a sua cota de felicidade prometida.

Tempo que a modernidade do Dragão do Mar sugere remeter a um estar lento e despreocupado num invólucro up to date, não como num shopping convencional com o seu consumo habitual e dirigido, antes como uma extensão da praça lá de baixo, na qual circula uma Fortaleza que parece desafiar os discursos e se apresenta sob muitos tons pacata e provinciana, cidadã do bairro antes do mundo, de pé no chão jogando bola na quadra comunitária, hipnotizados pelas luzes do Dragão que se dirigem para os céus.

Referências Bibliográficas


Notas

1) Este texto é referente à Dissertação intitulada Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura: política cultural no discurso de modernização do 'governo das mudanças', financiada pela CAPES e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba em 30 de março de 2000, sob a orientação do Prof. Mauro Guilherme Pinheiro Koury, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia.

2) Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

3) Conforme referido por um dos projetistas do Centro Dragão do Mar, em entrevista concedida à Profa Linda Gondim em 07/ dez./ 1998. Por opção metodológica as identidades dos informantes não serão reveladas.

4) Foram aplicados 100 questionários junto aos freqüentadores do Centro Dragão do Mar, nos quais se buscou caracterizar o perfil sócio-econômico e as impressões gerais dos mesmos sobre o conjunto.

5) Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha (ano de 1841), Seminário da Prainha (ano de 1861), Teatro São José (ano de 1917), Praça do Cristo Redentor com sua torre (ano de 1922), Biblioteca Pública Menezes Pimentel (ano de 1975) e Av. Monsenhor Tabosa (de grande atração turística devido ao comércio de confecções).

6) O romance de José de Alencar, narra a saga do amor da índia Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel, pelo português Martins Soares Moreno, o Guerreiro Branco, durante os primeiros momentos da colonização cearense. Da relação entre os dois nasce um filho, Moacir. Martins Soares precisa partir para atender aos chamados da guerra e de aventuras alhures. Iracema porém fica e, sofrendo a dor desta separação forçada, morre esperando a volta do amado.

7) Codinome atribuído a Francisco do Nascimento pela imprensa abolicionista na Corte Imperial.

RESUMO
O CENTRO DRAGÃO DO MAR DE ARTE E CULTURA:
EXPRESSÕES DE UM LUGAR DE MODERNIDADE


Este artigo objetiva analisar alguns elementos de fundação relativos à atual política cultural desenvolvida no Ceará, concentrando a atenção no seu maior significante: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. A discussão trabalha numa perspectiva compreensiva dos atores sociais envolvidos no estabelecimento desta proposta, bem como dos usuários do Centro Cultural. Questiona como este centro cultural, nascido de um discurso político pós-moderno, dialoga com o urbano, como símbolo da transformação de Fortaleza numa global city.
PALAVRAS-CHAVE: urbano; política cultural; modernidade.

ABSTRACT THE "SEA'S DRAGON" ART AND CULTURE CENTRE:
EXPRESSIONS OF A MODERNITY PLACE


This article objectifies to analyse some relative foundation elements to the current cultural politics developed in Ceará State (Northeast region of Brazil), concentrating the attention on its significant largest: the "Sea's Dragon" Art and Culture Centre. The discussion works in an understanding perspective of the social actors involved in the establishment of this proposal, as well as of the users of the Cultural Centre. It questions as this public building, born of a powder-modern political speech, makes its dialogue with the urban, as symbol of the transformation of Fortaleza in a global city. KEYWORDS: urban; cultural politics; modernity.



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Número 16 - set/2000  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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