Copyright© 1985-2001 PPGS-UFPb. Todos os Direitos Reservados. Nenhuma cópia deste artigo pode ser distribuída eletronicamente, em todo ou em parte, sem a permissão estrita da revista Política & Trabalho. Este modo revolucionário de publicação depende da confiança mútua entre o usuário e o editor. O conteúdo dos artigos publicados é de inteira responsabilidade de seus autores.


Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 33-45


A EMOÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO SOCIAL

Maria de Fátima Santos de Araújo (1)

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar a relação entre a emoção e a construção do social, tendo por base os conceitos de Comunidade e Sociedade, intermediados pelo estudo da cultura. A discussão aqui desenvolvida está fundamentada em autores que adotam os significados de Comunidade ligados ao campo do emocional e os de Sociedade ao campo do racional. O estudo da emoção como categoria de ligação entre esses dois "mundos" sugere a superação dessa dicotomia, num processo de sociabilidade que permite aos seres humanos estabelecer redes e não um conjunto de ações desconexas.

A partir da discussão de como a emoção é vivenciada e construída em contextos sociais e culturais diferentes, pode-se demonstrar a viabilidade da quebra desta dicotomia, através de uma rede de relacionamentos no interior destas culturas, permitindo a aproximação ou identificação entre os dois conceitos.

Neste sentido, a contribuição de autores que buscam a interpretação como caminho metodológico, numa perspectiva interacionista - onde o significado é o elemento central de análise - é imprescindível. A subjetividade é estudada a partir da intermediação das questões objetivas, onde as relações sociais exercem um papel importante no entendimento e na explicação dos temas abordados.

Os tipos ideais de sociedade e as formas de sociabilidade desenvolvidas por Tönnies são o ponto de partida dessa discussão, que culmina com visões de outros autores que também buscam, em suas análises, superar possíveis dicotomias na abordagem deste tema.

Em seguida, destaca-se nesses autores a idéia de que se tomando a emoção como categoria central nessa relação, se chega a uma visão humanista da sociologia.

Por último, procurou-se, de forma breve, levantar elementos na construção da identidade a partir da intersubjetividade, destacando o emocional como elemento intrínseco a essa construção.

Emoção como interseção entre Comunidade e Sociedade

Os tipos ideais de sociedade desenvolvidos por Tönnies, Gemeinschaft e Gesellschaft (2), são definidos por Coenen-Huther como, o primeiro sendo "(...) fundado sobre a integração orgânica de relações comunitárias carregadas de afetividade, o outro, estabelecido a partir de relações mais abstratas, nas quais entram, muito mais, avaliações racionais" (1995: 195-196).

[fim da página 33]

Para este autor essa oposição é fruto de uma tradição sociológica que se interessa pela evolução das formas de sociabilidade, na qual Tönnies se insere. Destaca, também, a sua originalidade na forma de conceituação.

Como precursor do formalismo sociológico, Tönnies aproxima-se de Simmel ao se preocupar com a análise e classificação de categorias elementares, além de estabelecer continuidade entre o psicológico e o social. Como Simmel, parte da relação social e, conseqüentemente, da interdependência, como a base da vida em sociedade. A sociedade, assim, é entendida como baseada no encontro de duas vontades humanas - a vontade natural ou espontânea e a vontade racional ou refletida, uma influenciando a outra.

Coenen-Huther acrescenta ainda que é a partir da categoria vontade que Tönnies liga o pensamento e a ação sociais, fundamentos da natureza humana. Traduzindo para a modernidade, numa perspectiva interacionista, afirma que se poderia chamar de "ato intencional [aquilo] que caracteriza o ser humano ao mesmo tempo como ser pensante e como ser social" (1995:199).

Boudon também define Comunidade e Sociedade a partir de Tönnies e reforça a idéia deste autor, ao considerá-las como única alternativa para os homens estabelecerem relações sociais, e acrescenta:

"À sociedade (Gesellschaft), fundada na estrita individualidade de interesses (...) opõe-se a comunidade (Gemeinschaft), estabelecida na identidade substancial de valores, assinaladas umas às outras - nem sempre conscientes disso - pela mesma origem e destino." (1993: 73)

Miranda aponta aspectos semelhantes da teoria desenvolvida por Tönnies, ao mencionar que para este autor as relações concebidas como possuidoras de uma vida real e orgânica são tidas como as com características essenciais da Comunidade (Gemeinschaft) e quando a estrutura é mecânica e imaginária, relaciona-se ao conceito de Sociedade (Gesellschaft):

"(...) Assim, estas observações (...) postulam uma oposição inerente aos conceitos: tudo aquilo que é partilhado, íntimo, vivido exclusivamente em conjunto (...) será entendido como a vida em comunidade. A sociedade é a vida pública - é o próprio mundo.
Na comunidade, há uma ligação desde o nascimento, uma ligação entre os membros tanto no bem-estar quanto no infortúnio. Já na sociedade, entra-se como quem chega a uma terra estranha. (...) comunidade (...) é a forma de vida comum, verdadeira e duradoura. A sociedade é somente passageira e aparente. Pode-se, em certa medida, compreender a comunidade como um organismo vivo, e a sociedade como um agregado mecânico e artificial."
(1995: 231-232)

Por outro lado, alguns autores adotam uma abordagem relacional em que os caminhos teórico-metodológicos vão no sentido de relacionar laços mais estreitos vivenciados por uma Comunidade e questões mais objetivas predominantes na Sociedade.

Minayo (1999: 11) é um dos autores que aponta críticas de estudiosos a esta orientação, por considerar que este tipo de estudo atomiza a realidade na análise dos grupos sociais, como totalidade nela mesma e pela ausência quase [fim da página 34] total de discussões de problemas estruturais. Acrescenta, ainda, que sua concentração nos significados é quase absoluta, levando-as à base material do universo simbólico.

Geertz (1989: 15) propõe, para a antropologia social, a etnografia como caminho teórico-metodológico para se empreender um conhecimento. Na sua visão, este caminho não depende de métodos, mas de um esforço intelectual, pois só compreendendo o que é etnografia, sua prática, é que se pode entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. E, ainda, para se compreender a ciência, antes de olhar para suas teorias ou descobertas ou sobre o que dizem sobre ela, é preciso o conhecimento anterior do que os praticantes da ciência fazem. Tal perspectiva permite o alargamento do universo do discurso humano, através do conceito semiótico de cultura, que permite descrever esse universo de forma inteligível, de forma densa (Geertz, 1989: 24).

A proposta teórico-metodológica de interpretação das culturas desenvolvida por Geertz parte do princípio de que a definição de homem passa por uma redefinição do papel da cultura na vida humana, por considerar que o emocional e o social, e todos os aspectos que envolvem o homem na sua vida cotidiana, são produzidos no mesmo espaço.

É nesta direção que a emoção, enquanto categoria central, promove a união de elementos constitutivos da Comunidade e da Sociedade, evitando dessa forma a dicotomia entre indivíduo e sociedade, entre o emocional e o racional, tão indesejada pelas ciências sociais.

Morris, citada por Wolff (1980: 677), afirma que a abordagem humanista-culturalista (que envolve, entre outros, os fenomenologistas, os interacionistas simbólicos e os etnometodologistas) possui suposições comuns que são o fato "(...) de que os seres humanos não são apenas influenciados pelos fatos ou forças sociais; que estão constantemente modelando e criando seus próprios mundos sociais em interação com outros (...) [mas] são necessários métodos especiais para o estudo e entendimento desses processos singularmente humanos".

Giddens (1992), ao analisar as transformações que se deram no campo cultural através do amor e da sexualidade, dá indicações importantes de como historicamente homens e mulheres viveram diferentemente, sendo influenciados por valores de cada época. Essas idéias ligadas à intimidade estavam associadas a outras mudanças sociais, envolvidas com transições importantes que afetaram o casamento e outros contextos da vida pessoal.

Para Giddens, as sociedades modernas não aboliram a história emocional, mas a trouxeram para o domínio do privado, isto é, a mantiveram separada de sua identidade pública. Por outro lado, a intimidade implica numa total democratização do domínio interpessoal, compatível com a democracia na esfera pública que, por sua vez, é o reflexo das transformações da vida pessoal.

Burkitt (1997: 40) desenvolve uma tese onde as emoções não são expressões de processos interiores, mas modos de comunicação dentro de relações de interdependência. Seu objetivo é estabelecer uma abordagem diferente para evitar a dicotomia entre o individual e o social. A idéia de emoções como complexos constituídos de relacionamentos, assim, para ele, envolve várias dimensões da existência humana, interdependentes.

Para Maffesoli (1998) a metáfora tem um papel privilegiado na construção [fim da página 35] do saber, ao integrar os sentidos à progressão intelectual. Situa-se entre o lugar ocupado pelo sentido na vida social e sua integração no ato do conhecimento. Permite que se encontre um equilíbrio entre o intelecto e o afeto, equilíbrio que se encontra e é vivido no senso comum, nas novas gerações que promovem uma sinergia entre a razão e os sentidos. Como ele próprio diz:

"(...) utilizar a razão sensível não é ter um pensamento irracionalista, mas considerar racionalmente o pensamento irracional. A racionalidade, para não se perder em racionalismo, deve entrar em interação com outros parâmetros humanos - o imaginário, o onírico, o lúdico. Sinergia não é soma, é desenvolvimento multiplicador dos efeitos. Esta seria a resposta intelectual à 'regrediência' social." (3)

Portanto, Maffesoli sugere uma racionalidade aberta em oposição ao racionalismo estreito e estático. Significa dizer que o afeto, o emocional, as coisas ligadas à paixão, não estão separadas em um domínio à parte, na vida privada, mas podem tornar-se instrumentos metodológicos para a reflexão epistemológica e para explicar a vida social. Por extensão, considera esclerosado o racionalismo, constituindo-se um obstáculo à compreensão da vida em seu desenvolvimento, inapto para perceber e apreender o aspecto denso, imagético, simbólico da experiência vivida. Para superar a unilateralidade, propõe colocar o racionalismo e o irracionalismo num processo de interação e complementaridade. Busca evitar com isto que o racionalismo passe do concreto ao abstrato, do singular ao geral, sem que seja levada em conta a vida em sua complexidade, colocando tudo numa categoria explicativa e totalizante.

Para esta tarefa Maffesoli indica a contribuição de Edgar Morin, com seu conceito de "encaminhamento". Sua proposta é voltar às reflexões que colocam o indivíduo como único sujeito do conhecimento e capaz de dominar o mundo social e natural. Considera inadmissível dividir a ordem da razão e da paixão.

A divisão de entidades tipificadas - identidades, classes, categorias sócio-profissionais, filiações partidárias, ideológicas ou religiosas, provocada pela distinção filosófica, sociológica e política - para Maffesoli, progressivamente, deve dar lugar a um vasto sincretismo de contornos pouco delimitados, onde cada um é chamado a desenvolver diversos papéis. Ele afirma que já existe abertura na sociologia para tal perspectiva, por considerar que no domínio vivo da socialidade existe não só a comunicação verbal, mas também a comunicação não verbal, o domínio do sensível.

Maffesoli define o "alargamento da consciência" como o processo epistemológico capaz de perceber a globalidade social em todos os seus elementos. Para realizar este projeto é necessário saber superar as categorias de análise que foram elaboradas ao longo da modernidade. Somente uma "ciência criativa", ou "ciência operante", permite o vínculo entre a natureza e a arte, o conceito e a forma, o corpo e a alma. Vínculo este acentuado pela vida. O racionalismo moderno analisa o mundo real, e a racionalidade aberta analisa a realidade em sua totalidade.

[fim da página 36]

Enfim, a pós-modernidade seria uma espécie de aglutinação, ao mesmo tempo díspar e totalmente unida aos mais diversos elementos. Na pós-modernidade não há nenhum domínio que escape ao retorno em massa do afeto: as relações "tribais" que marcam a vida social, o político, as relações culturais, religiosas, de trabalho, que tornam necessária uma visão orgânica do mundo. Seria levar em conta a opinião, onde há o reconhecimento de um componente da subjetividade, a partir da experiência de vida de cada um, sua ideologia, religião ou a visão sobre qualquer outro tema.

Sua contribuição nas análises sociológicas se volta principalmente para os estudos de grupos urbanos que vêm surgindo na atualidade (hip hop, rap, etc.), as chamadas "tribos", que fazem incursões por outros processos de sociabilidade, em espaços próprios, permitindo uma maior vivência e identidade do grupo.

Sennett (1999: 358-359), ao analisar a Comunidade, tem uma visão diferente das idéias defendidas por estes autores. Sua análise tem um caráter político e baseia-se na atuação dos planejadores urbanos atuais. Em sua opinião, esses planejadores desistiram de uma concepção global da cidade, pelas limitações do conhecimento e por falta de influência política.

Sennett faz referência à concepção de Sitte, empreendida há mais de um século, que representava uma geração que concebia a comunidade dentro da cidade, enquanto os urbanistas da atualidade concebem a comunidade contra a cidade. Ele ainda estabelece diferenças entre relações de uma personalidade comunal, coletiva e os territórios concretos da comunidade na cidade moderna, a vizinhança, o quartier. Reforça o seu pensamento com a seguinte afirmação:

"(...) a lógica emocional da comunidade, começando como uma resistência aos males do capitalismo moderno, resulta numa espécie bizarra de retraimento despolitizado (...) acreditei erroneamente que a reconstrução da comunidade local era o ponto de partida para a reconstrução política da sociedade mais ampla. (...) está errado com a noção da construção de uma comunidade contra o mundo (...) ela assume o fato de que os próprios termos da experiência intimista efetivamente permitiram às pessoas criar um novo tipo de sociabilidade, baseada em compartilharem seus sentimentos." (1999: 360-361)

Para este autor, como as características da Gemeinschaft não podem ser assimiladas imediatamente, provocam uma dicotomia entre os sentimentos e a indiferença impessoal. Aqui o emocional não é visto como elo entre Comunidade e Sociedade, mas ao contrário, como coisa que coexiste de forma estanque no mundo moderno (sennett, 1999: 366). Ele ainda argumenta que "Os materiais que essa cultura oferece para que as pessoas façam 'conexão' com as outras pessoas são símbolos instáveis de impulso e de intenção" (1999: 367).

Embora sua análise esteja centrada numa questão bem pontual - no caso, a atuação dos planejadores urbanos - percebe-se claramente sua crítica a uma visão de comunidade e sua ligação com valores urbanos, por colocar-se em oposição a uma integração do espaço público e da vida pública na cidade em sua totalidade (1999: 377).

Sennett vê também, no que ele chama de solidariedade comunitária, uma [fim da página 37] função estabilizadora para as estruturas políticas da sociedade:

"(...) assim como ocorrerá com a experiência carismática, agora é muito fácil confundir a paixão pessoal na sociedade com a desordem na sociedade (...) quanto mais as pessoas estão mergulhadas nessas paixões de comunidade tanto mais as instituições de base da ordem social permanece intocadas." (1999: 377)

Comparando o significado original de Gemeinschaft com o moderno, Sennett afirma que o primeiro significava a total abertura de sentimentos e, ao mesmo tempo, uma comunidade de pessoas, onde relações emocionais abertas são possíveis, em oposição ao segundo onde prevalecem relações parciais, mecânicas ou emocionalmente indiferentes (1999: 378). E justifica sua posição da seguinte maneira:

"(...) as pessoas somente podem ser sociáveis quando dispõem de alguma proteção mútua; sem barreiras, sem limites, sem a distância mútua que constitui a essência da impessoalidade, as pessoas são distintivas (...) porque o efeito último da cultura gera pelo capitalismo e pelo secularismo moderno torna lógico o fratricidio, quando as pessoas utilizam as relações intimistas como base para as relações sociais." (Sennett, 1999: 379).

E ainda afirma que, "(...) Historicamente, a vida pública morta e a vida comunitária pervertida, que afligem a sociedade burguesa do Ocidente, são algo como uma anomalia" (1999: 380).

Procurou-se levantar, até aqui, perspectivas teóricas em torno dos conceitos de Comunidade e Sociedade, perspectivas estas que apresentam tanto posições convergentes ou próximas, como díspares, com relação aos seus significados. Buscaremos, adiante, identificar em alguns autores a visão de que a emoção, enquanto categoria, tem a capacidade de aglutinar e tornar as análises sociais mais humanísticas.

Emoção: substrato de uma visão humanista

Ao se eleger a emoção como uma das dimensões imprescindíveis nos estudos da existência humana, realizados pela sociologia e pela antropologia, procura-se também mostrar que essas disciplinas se tornaram mais humanistas, como decorrência da união de traços considerados da Comunidade e da Sociedade.

Para Berger (1986: 27) o sociólogo deve interessar-se pelo mundo dos homens, abordando em suas análises suas instituições, sua história, suas paixões, enfim, a vida cotidiana que inclui fatos e interações humanas. No nosso entender, há nesta afirmação uma preocupação de Berger em evitar a dicotomia entre os diversos aspectos da existência humana.

Na mesma direção, Geertz (1989: 48) afirma que antropologia tem se preocupado em encontrar um caminho que leve a um conceito mais viável sobre o homem, considerando a diversidade cultural e que tenha como princípio dominante "a unidade básica da humanidade". Geertz faz uma crítica àquilo que chama de 'consenso de toda a humanidade', afirmando que o estudo da cultura não pode contribuir para seu entendimento por basear-se em universais culturais [fim da página 38] fundamentados em processos particulares, biológicos, psicológicos ou sociológicos. Em outras palavras, ele reforça sua idéia ao afirmar que a natureza humana é inerente à cultura e o sistema nervoso central cresceu em interação com ela - só com a orientação de sistemas de símbolos significantes é possível tornar este sistema capaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência:

"(...) Nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais - na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos e, não obstante, manufaturados." (Geertz, 1989: 62)

Neste sentido, Comunidade e Sociedade podem significar uma unidade, se analisados considerando todos os aspectos da existência humana passíveis de identificação no estudo de culturas.

Para Cohen (1995: 206-207), o entendimento da essência dos conceitos de Gemeinschaft e Gesellschaft desenvolvidos por Tönnies permite compreender os pontos essenciais da vida, e poderia ajudar na direção de uma prática mais humanística e mais profunda da sociologia e de outras ciências. Para ele há uma aproximação da essência do significado de Gemeinschaft, quando se fala de espírito comunitário ou relacionamento comunitário. Este significado, porém, exige uma camada mais profunda de sentido, pois Gemeinschaft é um grupo de ligações, de proximidades, uma idéia do mundo enquanto Idéia, uma forma de relacionar o grupo com o mundo em todas as dimensões, um modo de percepção, uma visão de mundo realmente Weltanschauung (Cohen, 1995: 207).

Nesta perspectiva, a emocionalidade estaria mais próxima da Gemeinschaft, e a racionalidade e a intelectualidade da Gesellschaft. Então, se a intelectualidade e a emoção se unem, podem levar à profundidade do entendimento, combinando elementos da Gemeinschaft e da Gesellschaft, tornando-se uma só, a Gemeinschaft, não sendo pois excludentes, já que esta, baseada em laços emocionais, permite alguma racionalidade, mais relacionada a Gesellschaft:

"(...) Pensa-se que a racionalidade irá exorcizar os sentimentos subjetivos da emocionalidade. Mas exorcizar a emocionalidade deixa a racionalidade estéril. Torna-se irracional desde que a vida 'real' inclui um mundo emocional que deve ser entendido em seus termos, que é também emocional em um inter-relacionamento de trocas e interações simbólicas." (Cohen, 1995: 211-212)

Burkitt, citando Elias, também busca demonstrar que o caminho das disposições emocionais é condicionado por atos sociais, de modo que certos sentimentos são misturados e complementados ou contraditados uns aos outros. Ele utiliza como exemplo o sentimento de agressividade desenvolvido na Idade Média através das batalhas. Matar o inimigo era aceito socialmente como algo corajoso, demonstrava ser um bom guerreiro quem assim agia. A expressão de atos de alegria foi substituída pela agressividade, justificada pela justeza da causa (Burkitt , 1997: 47). A cultura delimita, deste modo, a experiência dos indivíduos associando certas ações ou funções com sentimentos prazerosos ou [fim da página 39] repugnantes (Burkitt , 1997: 48).

Portanto, a vida emocional dos indivíduos não pode, de nenhuma maneira, ser separada da cultura e aprendizagem. Não existe mundo interior ou sentimentos separados de valores ou normas culturais externas. Podemos compreender como pode existir contradição nos sentimentos criados por relações conflitantes ou contraditórios sem, contudo, estabelecer a dicotomia do individual e do social (Burkitt , 1997: 48).

Em síntese, o que estes autores querem enfocar é que para se ter uma visão humanística nas pesquisas desenvolvidas pela sociologia e pela antropologia, não se pode estabelecer uma separação na construção de dados objetivos e subjetivos, entre o emocional e o racional.

A seguir, buscaremos destacar, a partir de alguns autores, a possibilidade de construção do eu, dentro dos mesmos princípios teórico-metodológicos.

Emoção e identidade

A construção da identidade se dá a partir de relações de interdependência estabelecidas em diferentes contextos culturais. É na comunhão de elementos produzidos, pelo que se determinou teoricamente pertencerem a Comunidade e a Sociedade, que se constrói essa identidade.

As idéias que dão sustentação ao estudo da emoção - enquanto construção do social - demonstram que as emoções não são produções internas aos indivíduos, mas resultantes dessas relações. Portanto, é a partir do estudo das emoções desenvolvido por alguns autores que procuraremos mostrar a inter-relação existente entre o subjetivo e a construção do eu num sistema cultural.

Segundo Berger (1986: 59-60), a identidade dos sujeitos varia historicamente, com tendências a ser permanente nas sociedades tradicionais e incerta nas sociedades modernas, em virtude das constantes mutações nos papéis e pelas várias maneiras de olhar o mundo. Através da substituição do conceito de "conversão", que se refere à mudança de idéias, pelo conceito de "alternação", é possível ampliar-se e falar não somente em mudanças de idéias, mas também em mudança de identidade.

A cada alternação entre sistemas de significados é proporcionada uma explicação de sua própria existência e de seu mundo. Esta alternação é relativa e permite o conhecimento de outra dimensão da consciência sociológica - a percepção de que não somente as identidades, mas também as idéias, são relativas, dependendo de localizações sociais específicas (Berger, 1986: 61-63).

Para Berger, as mudanças nos sistemas de significados condicionam as mudanças nas relações sociais, em função de sua estrutura social (1986: 76). A consciência sociológica atua, assim, num quadro de referência. A localização do eu informa a um indivíduo aquilo que ele pode fazer e o que pode esperar da vida; estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de forças sociais específicas (1986: 77-81). Existem os mecanismos de controle social atuando, e "...os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e a atitudes elas relacionadas" (1986: 109).

Citando Mead, Berger afirma que todo papel na sociedade acarreta uma certa identidade, até aquelas identidades que julgamos constituir a essência de nossas personalidades foram atribuídas, sustentadas e modificadas socialmente. [fim da página 40] A identidade, assim, "(...) não é uma coisa pré-existente; é atribuída em atos de reconhecimento social" (Berger, 1986: 113). Ou seja, as identidades "(...) são atribuídas pela sociedade" (Berger, 1986: 114).

Ainda tratando este tema, Berger afirma adiante:

"(...) toda identidade exige ligações sociais especificas para sua sobrevivência...o individuo se localiza na sociedade dentro de sistema de controle social e cada um desses sistemas contém um dispositivo de geração de identidade (...) A transformação ou a manutenção da identidade se dá através de processos sociais." (1986: 116-117)

E ele acrescenta também que é através da teoria do papel social que se tem uma visão do homem baseada em sua existência na sociedade e que cada um dos papéis desempenhados na sociedade, configura uma determinada identidade (1986:118).

Na perspectiva de Berger, Comunidade e Sociedade são definidas historicamente, dependendo do nível de desenvolvimento de cada sociedade. Na sua visão, o emocional está mais ligado às sociedades tradicionais e o racional, ou o plano intelectual, mais ligado às sociedades modernas, condicionado pelos diversos papéis exercidos nestes tipos de sociedade.

Geertz, por sua vez, define o homem a partir do conceito de cultura, porque esta é formada por um conjunto de mecanismos simbólicos que controlam o comportamento e dão a unidade já referida:

"Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas." (1989: 64)

Miranda, ao analisar a dialética da identidade em Tönnies, a partir dos conceitos de Comunidade e Sociedade, sustenta:

"O que caracteriza o tipo-comunidade é a expressão da igualdade e o vigor dos fenômenos e valores identitários. Considerada não apenas a externalidade, mas também a introjeção nos agentes personalizados dos elementos da cultura. (...) Na sociedade, para cuja descrição a referência histórica é a troca (que implica a alteridade como princípio) e o desenvolvimento capitalista, os valores reforçam as diferenças, acentuam a individualidade e isolam o 'indivíduo'. (...) enquanto na comunidade-tipo a identidade dimensiona-se e se realiza...na sociedade-tipo, a 'natureza' identitária constitui apenas uma abstração." (1995: 65)

Cohen reelabora os significados de Gemeinschaft e Gesellschaft, onde procura não só quebrar esta dicotomia, mas também procura dar uma outra dimensão nas relações entre pesquisadores e objetos de estudo. Propõe a unidade das coisas através da Gemeinschaft, construindo uma nova sociologia, com uma concepção mais ampla e profunda de realidade onde o entendimento intelectual e a racionalidade se aliem à emocionalidade. Segundo ele:

"Para se usar um entendimento sociológico, nos modos de [fim da página 41] relacionamento do tipo Gemeinschaft, ou de estudo, há uma troca entre as pessoas, grupos, ou entre a pessoa e a coisa observada, o sociólogo e o assunto estudado. Proponho que essas trocas existam em mais níveis do que apenas o interpessoal, mas que incluam um universo mais amplo, como o faz a Gemeinschaft. Há uma reciprocidade de essência, de sentimento e, então de entendimento. Uma interação se desenvolve nos níveis abertos, mas também nos simbólicos de significado (interação simbólica)." (1995: 210-211)

Para Schmitz, existe uma superposição de significados para o conceito de Comunidade. Na linguagem inglesa ela tem um "sentido profundamente humano e íntimo, uma fascinante unidade" (1995: 179-180). Tanto no sentido normativo como geográfico, a palavra significa alguma coisa integral e concreta. No entanto, aponta a dificuldade de se encontrar este referencial nos centros urbanos e industriais da vida moderna, especificamente na América do Norte e na Europa. Schmitz considera importante a intersubjetividade (versão interiorizada de comunidade), para aqueles que procuram comunidade nesse contexto, mas isto para ele, não é em si comunidade.

Sociedade, por outro lado, pode designar um particular e mais ou menos estilizado modo de experiência (como em alta sociedade); uma particular associação organizada com objetivos ou determinados interesses, (como em sociedade internacional para metafísica); a estrutura básica da vida de uma nação, (como por exemplo, a sociedade canadense); ou, no seu termo mais geral, pode designar a total complexidade humana, não biologicamente, mas socialmente, em termos dos modos pelos quais as relações humanas são organizadas cultural, técnica, econômica e politicamente (Schmitz, 1995: 179).

Os relacionamentos intersubjetivos são, nesse sentido, aqueles de amizade, familiaridade, mas para ele isto não é Comunidade. Nessa perspectiva, as relações interpessoais são consideradas importante fator dentro de uma comunidade, pois são experiências de indivíduos, e a comunidade é feita de indivíduos. Mas uma Comunidade não é meramente a reciprocidade de seus indivíduos nem, tampouco, suas relações recíprocas internas ou externas. O indivíduo não faz uma Comunidade através de suas relações individuais com os outros: tais relações compreendem uma coletividade.

Há divergências entre Cohen e Schmitz quanto às interpretações dos conceitos de Gemeischaft e Gesellschaft desenvolvidos por Tönnies, e tais divergências, conseqüentemente, indicam caminhos diferentes para a pesquisa em Ciências Sociais.

Enquanto Cohen propõe uma fusão entre as relações emocionais e a intelectualidade/ racionalidade - elementos da Comunidade e Sociedade respectivamente - para Schmitz, a comunidade não deve ser confundida com as relações interpessoais, pois estas não constituem sua identidade. Para ele, o sujeito da Comunidade é ela própria, que inclusive é anterior ao indivíduo.(Schmitz, 1995: 181-182).

Uma outra abordagem é apresentada por Burkitt, que vai no sentido de defender a corrente sociológica que diz que biologia e sociabilidade na espécie humana são inseparáveis. Nesta perspectiva, as emoções podem ser vistas como construídas socialmente, enquanto tendo também componentes corporais que [fim da página 42] são necessárias à experiência dessas emoções. O componente físico de uma emoção é vital para conhecê-la. A emoção pode ter um padrão psicologicamente familiar, a ela reconhecível de alguma maneira através da cultura, enquanto ao mesmo tempo pode ser, em sua expressão completa, construída culturalmente e, portanto, particular (Burkitt, 1997:43).

Wittgenstein, citado por Burkitt, acrescenta que os indivíduos são treinados em hábitos emocionais desde a infância e através deles desenvolvem disposições emocionais que podem ser expressas em certos contextos através da vida pessoal. Emoções então são cognitivas e pré-cognitivas: elas envolvem interpretação cultural, mas também disposições corporais colocadas através de práticas sociais. Essas condições não são encontradas nas pessoas, mas são aspectos das condições de vida das quais as pessoas existem (1997: 43-44).

Para Boudon (1989: 95-105), os atores socialmente situados, por suas disposições, ainda que tenham as mesmas posições, poderão interpretar a realidade de maneira diferente. Para ele, o efeito de disposição do tipo cognitivo dificulta a compreensão de um fenômeno social pela ausência ou insuficiência do saber de que dispõe. E acrescenta:

"(...) os agentes sociais são socialmente situados, o que quer dizer que têm papéis sociais, que pertencem a certos meios sociais e a certas sociedades, que dispõem de certos recursos (notadamente cognitivos), e que, em razão dos processos de socialização aos quais foram expostos, interiorizaram um certo número de saberes e de representações. Por estas razões estão sujeitos ao que chamamos de efeitos de situação (efeitos de posição e de disposição) (...)." (1989: 122)

Neste sentido, para Boudon a compreensão e a explicação de certas questões empreendidas pelos indivíduos, não podem ser caracterizadas como insensatas ou irracionais, mas devem ser entendidas como efetuadas a partir da noção de sentido. Daí a sua divergência com Bourdieu e a sociologia francesa de maneira geral, onde a explicação se dá a partir de seus efeitos macro-sociais.

Para Burkitt, as experiências emocionais incorporadas podem fluir no contexto social em que as pessoas estão imersas e ainda assim ser contra algumas normas gerais prescritas. Ainda que as pessoas possam perceber um conflito de emoções contrárias a uma situação particular, como por exemplo, um grupo de pessoas com caracterísitcas similares podem ter reações diferentes com uma mesma notícia. Por outro lado, ele afirma que conflito emocional não nasce de estados interiores de ambivalência, mas de contextos sociais os quais são eles próprios inerentemente ambivalentes ou preenchidos com conflito. Em tais circunstâncias, uma pessoa pode pensar as emoções de uma maneira e isso ter sido criado e ter um significado somente naquele contexto; de outro modo, a emoção não poderia ser identificável ou inteligível (1997: 44).

Citando Elias, Burkitt ainda acrescenta que as relações entre as pessoas e os sentimentos associados com elas são parte e parcela de interação a qual é composta de gestos, sinais e movimentos corporais. Todas essas coisas são parte do mesmo processo comunicativo, com relações, experiências e sentimentos, todos interligados (1997: 45).

Por fim, constatamos que a identidade não se constrói a partir da [fim da página 43] subjetividade, mas em contextos culturais e sociais específicos. É na relação com os outros que ela constrói o seu eu por inteiro, tanto em Comunidades, como em Sociedades, considerando as diversas definições aqui apresentadas.

Considerações Finais

Neste trabalho tentou-se argumentar, através das teses de alguns autores, a indissociabilidade do emocional e do racional em contextos culturais determinados. Através dos conceitos de Comunidade e Sociedade procurou-se demonstrar que, apesar da aparente dicotomia existente no plano teórico-metodológico e das posições divergentes de alguns autores, a abordagem relacional, aqui priorizada, mostra a viabilidade dessa relação.

Os conceitos de Gemeinschaft e Gesellschaft, desenvolvidos por Tönnies há mais de um século, se tornaram instrumentos teóricos consideráveis para análises sociológicas que buscam esta perspectiva. No dizer de Dombrowsky, a importância desse autor se deve, sobretudo, em meio à "crise dos significados" da sociedade, à ênfase dada por ele às vontades humanas e ao fato de ele trabalhar com o conceito de socialidade, que diz respeito à afirmação do outro(1995: 104).

Embora estes conceitos se refiram à formas ideais de relações sociais, escreve Tönnies, citado por Töttö (1995: 50): "Não conheço nenhum estado de cultura ou sociedade em que elementos da Gemeinschaft e da Gesellschaft não estejam simultaneamente presentes, isto é, misturados".

No nosso entender, essa afirmação de Tönnies confirma a dialética inserida na sua abordagem e, certamente, vem reforçar a inter-relação existente entre os elementos de Comunidade e Sociedade existentes em contextos sociais e culturais específicos.

Referências Bibliográficas

Notas

1) Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa). Mestre em Ciências Sociais, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

2) Comunidade e Sociedade.

3) Conferência sobre o Imaginário realizada em Recife (abr./1999).


RESUMO
A EMOÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO SOCIAL


Este trabalho procura enfocar a emoção como categoria central no estudo de contextos culturais e sociais específicos, a partir dos conceitos de Comunidade e Sociedade, tomando por base as definições estabelecidas por Tönnies. Este texto mostra ainda que os autores tomados como referência defendem, em suas análises, a superação da dicotomia entre os elementos da Comunidade e da Sociedade, confirmando a inter-relação entre eles.
PALAVRAS-CHAVE: Comunidade; Sociedade; Emoção.

ABSTRACT
THE EMOTION AND THE BUILDING OF THE SOCIAL


This work looks for to focus the emotion as central category in the study of specific cultural and social contexts, from the concepts of Community and Society, taking for start the definitions established for Tönnies. This text sample still that the taken authors as reference, defend in its analyses the overcoming of the dichotomy between the Community's and Society's elements, confirming the interrelation between them.
KEYWORDS: Community; Society; Emotion.





Índice Principal  |   Normas Para Publicação
Número 17 - set/2001  |   Universidade Federal da Paraíba  |   Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi criado em fevereiro de 1998 e
modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

This page hosted by


Get Your Own Free Home Page