Copyright© 1985-2001 PPGS-UFPb. Todos os Direitos Reservados. Nenhuma cópia deste artigo pode ser distribuída eletronicamente, em todo ou em parte, sem a permissão estrita da revista Política & Trabalho. Este modo revolucionário de publicação depende da confiança mútua entre o usuário e o editor. O conteúdo dos artigos publicados é de inteira responsabilidade de seus autores.


Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 16-32


INDIVIDUALISMO E CONFLITO
COMO FONTE DE SOFRIMENTO SOCIAL

Maria Cristina Rocha Barreto (1)


Introdução

O sofrimento sempre se apresentou como problema-tema para a filosofia e como farto material para a literatura. É senso comum dizer que ele faz parte da vida e esta é mesmo uma afirmação muito freqüente entre muitos pensadores. No entanto, dentro do campo das ciências sociais, o sofrimento não é um tema dos mais abordados. Mesmo assim, podemos encontrar a questão das emoções de forma periférica e abstrata na obra de muitos autores, dentre os quais podemos citar Norbert Elias (1993), Richard Sennett (1998) e Barrington Moore Jr. (1987), que mantêm uma estreita relação com a questão das emoções, uma vez que estas vêm entrelaçadas com valores e sentimentos do tipo dor, contentamento, honra, vergonha, humilhação, embaraço, orgulho, rejeição, medo, respeito, amor, inadequação, nojo, repugnância, raiva, pesar, etc.

O mérito desses autores reside em demonstrar que emoções e sentimentos se constroem e são o resultado de interações humanas, de suas instituições e relações de poder. Este é o pressuposto fundamental para a análise sociológica, ou melhor dizendo, o de nunca perder de vista que o sofrimento - assim como outras emoções - faz parte da experiência social. Ou, ainda ampliando a idéia de Scheff (1997) sobre a vergonha, que as emoções fazem parte de um sistema no qual o esforço para uma delicadeza civilizada resulta em uma cadeia sem fim de reações emocionais não reconhecidas.

O sofrimento, desse modo, está no bojo de uma série de problemas e emoções que têm suas origens e conseqüências nas injustiças que as forças sociais podem infligir na experiência humana. Resulta do que Paul Farmer (1997: 272-274) denominou de violência estrutural, isto é, do que o poder político, econômico e institucional faz ao povo e, reciprocamente, de como essas formas de poder influenciam respostas a problemas sociais. Incluídos sob a categoria de 'sofrimento social' estão condições que são quase sempre divididas em campos separados e que envolvem, simultaneamente, temas de saúde, bem-estar e temas legais, morais/ éticos e religiosos. Além disso, o sofrimento social, com freqüência, está associado às ações dos poderosos e tem sua visibilidade na esfera pública, contrastando com aquele sofrimento que se desenrola dentro da esfera privada e tem o indivíduo como seu principal sujeito. Fatores de gênero, etnicidade e status sócio-econômico podem ser solicitados, cada qual, a desempenhar um papel para levar indivíduos e grupos vulneráveis ao extremo sofrimento humano.

Como podemos observar, as emoções nos oferecem amplas possibilidades para uma abordagem sociológica. Todavia, nosso interesse no presente estudo [fim da página 16] é realizar uma discussão entre dois autores, a saber, Georg Simmel e Barrington Moore Jr., a respeito do conflito e do individualismo como fatores que, embora universais e até certo ponto necessários às relações humanas, são fontes de sofrimento para o homem moderno.

Conflito e estrutura do grupo

Simmel, assim como outros fundadores do campo de estudo sociológico, procurou refletir sobre que bases os indivíduos se constituem em sociedade e se mantêm coesos, tema aliás que dá título a um de seus escritos: Como a sociedade é possível? (1910). Sua filosofia/ sociologia se constrói a partir de basicamente três pressupostos expostos a seguir:

"Os indivíduos agem por diversos motivos - interesse, paixão, vontade de poder, etc. O indivíduo não se explica apenas por referência a si mesmo, mas também em relação à interação com os outros, seja influenciando-os ou sendo por eles influenciado.
E finalmente, as atividades humanas se desenvolvem em formas, dentro de configurações sociais (instituições) como o Estado, a Igreja ou a escola, ou segundo formas gerais como imitação, competição, conflito, estruturas hierárquicas etc."
(Freund, 1980: 217)

Essas formas são o resultado dos processos de interação entre os indivíduos, no processo mesmo do fazer social, para expressar o conteúdo de suas motivações, e cujas fontes podem ser também entendidas como emoções. Em outras palavras, é a maneira pela qual os conteúdos alcançam a realidade social e existem independentemente dos indivíduos, pois Estado, família, solidariedade, competição, são formas que os transcendem. A sociedade, então, seria uma criação dos homens, já que só existe quando diversos indivíduos interagem (Simmel, 1983: 61).

Se cada interação entre os homens é uma sociação, o conflito - uma das interações mais emblemáticas, já que não pode se desenvolver com apenas um indivíduo - deve certamente ser considerado uma sociação. Na verdade, Simmel considera mesmo como necessário para a existência da sociedade, a existência de discordâncias, conflitos e desacordos, e portanto as emoções que neles estão envolvidas, pois fazem parte de qualquer interação nas mais variadas esferas da vida humana. Em outras palavras, para ele o conflito causa e também modifica interesses de grupo, unificações e organizações, uma vez que afeta ambos os oponentes, tanto em sua relação um com o outro, mas também em relação ao próprio indivíduo, pois cada um deve concentrar suas energias em um objetivo, para que sejam usadas a qualquer momento (Simmel, 1987: 150). Podemos concluir daí que os conflitos, e os conseqüentes sofrimentos que sua resolução possam causar ao ser humano, são constantes que fazem parte do próprio fazer-se da sociedade.

E de fato, fatores dissociantes - ódio, inveja, necessidade, desejo - são causas de culpa e sofrimento; e surgem por causa de interesses discrepantes entre os indivíduos no desenvolvimento de sua vida em sociedade. O conflito é assim criado para resolver divergências; é uma maneira de realizar algum tipo de unidade, mesmo através da aniquilação de uma das partes conflitantes (Wolff, [fim da página 17] 1950: 13-17).

O ponto de vista desenvolvido por Simmel a respeito do conflito é bem original e, embora reconhecendo que é fonte geradora de tensões e infelicidade para os indivíduos, não o encara exclusivamente como um fator dissociante de grupo, mas como um elemento possuidor de uma função unificadora, algo que faz parte da vida de todos. Os indivíduos, no entanto, não podem viver em constante conflito. Deve haver uma relativa "paz" social e o conflito existir apenas de forma ocasional na relação entre os indivíduos e grupos, mesmo que não seja raro. É nesse sentido que Moore Jr. reconhece a existência de um contrato social, muitas vezes implícito, através do qual "as pessoas que vivem em qualquer sociedade devem resolver os problemas da autoridade, da divisão do trabalho e da distribuição de bens e serviços" (1987: 25). Com esse fim é que são elaborados princípios de desigualdade social e criados mecanismos através dos quais as pessoas ensinam-se mutuamente, com níveis variáveis de sucesso, a aceitar e obedecer estes mesmos princípios. Segundo esse pensamento, pode-se afirmar com um grau considerável de certeza que o medo, a força, e a fraude - o conflito de um modo abrangente - também fazem parte das bases da sociedade humana. Dentro dessa perspectiva, a definição de sociedade de Moore Jr. que "diz respeito ao corpo mais amplo de habitantes num território específico que tem um sentido de identidade comum, vive sob um conjunto de arranjos sociais distintos e o faz, na maior parte do tempo, em um nível de conflito que exclui a guerra civil" (1987: 31), é perfeitamente compatível com a relevância dada por Simmel ao conflito como força associativa.

Fica claro, tanto em Simmel como em Moore Jr., um reconhecimento da necessidade do conflito até mesmo para que haja uma ordem social. As diferenças internas de um grupo podem ser minoradas, ou eliminadas mesmo temporariamente, na existência de um conflito com um adversário ou inimigo externo, aproximando pessoas do grupo que, de outra forma, não teriam nenhuma relação entre si, e eliminando com isso aqueles elementos que poderiam obscurecer a clareza dos limites com o inimigo. Fica evidente em seus diversos exemplos, no entanto, que a unidade do grupo sempre sai fortalecida diante de um conflito com um adversário externo e que pode se estender para além do período de luta, isto é, "o conflito é mais a oportunidade para as unificações exigidas internamente do que o propósito dessas unificações" (Simmel, 1987: 157 e 159).

O conflito em si mesmo resolve as tensões entre contrastes e o fato de que visa, em última instância, a paz, é apenas uma expressão de sua natureza, sintetizando elementos que trabalham ambos ao mesmo tempo contra e a favor um do outro. Esta natureza aparece mais claramente quando se percebe que ambas as formas de relação - a antitética e a convergente - são fundamentalmente distintas da mera indiferença de dois ou mais indivíduos ou grupos. Se implicar na rejeição ou no término da sociação, a indiferença é puramente negativa, cujo corolário é o homem blasé. Por contraste, o conflito, assim como o sofrimento e outras formas de sociação, apresenta ambos os aspectos de modo integrado e, embora possam ser separados conceitualmente, não o podem ser empiricamente.

Sendo assim, Simmel (1987: 154-55) afirma:

"(...) em condições de paz, o grupo pode permitir que membros [fim da página 18] antagônicos convivam em seu interior numa situação indeterminada, porque cada um deles pode seguir seu próprio caminho e evitar colisões. Uma condição de conflito, todavia, aproxima os membros tão estreitamente e os sujeita a um impulso tão uniforme que eles precisam concordar ou se repelir completamente. (¼) Por isso, em qualquer situação guerreira, os grupos não são tolerantes. Não podem se dar ao luxo de desvios individuais da unidade do princípio coordenador além de um grau definitivamente limitado."

Wolff (1950) observa ainda que o indivíduo não alcança a unidade de sua personalidade, exclusivamente por uma harmonização exaustiva dos conteúdos de sua personalidade, de acordo com normas lógicas, objetivas, religiosas e éticas. Pelo contrário, contradição e conflito não apenas precedem esta unidade, mas a influenciam em cada momento de sua existência. Desse modo, dificilmente se encontrará alguma unidade social na qual processos convergentes e divergentes entre seus membros não estejam inseparavelmente entretecidos.

Um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso, uma "unificação" pura não poderia se mostrar em nenhum processo da vida real. Segundo Wolff (1950), a sociedade precisa de "amor e ódio", de forças atrativas e repulsivas, ou seja, para ter qualquer forma, ou alcançar uma forma determinada, precisa alguma relação quantitativa de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. A sociedade, então, seria o resultado de ambas as categorias de interação. Este pensamento é, de certa forma, confirmado por Moore Jr. (1987: 25) quando ele afirma não haver possibilidade de existirem indivíduos completamente "sadios" - entendendo-se como indivíduos sem neuroses e completamente ajustados às normas sociais - e ainda haver sociedade, concluindo então que alguns aspectos da sociedade visariam prejudicar de alguma forma alguns indivíduos em benefício da totalidade social.

Além disso, existe, de acordo com Wolff (1950), um equívoco segundo o qual um destes dois tipos de interação destrói o que o outro constrói, resultando numa subtração dos dois; enquanto deveríamos pensar, em vez disso, em ter como resultado uma adição. Este engano provavelmente deriva dos desdobramentos do conceito de unidade. Designa-se como "unidade" o consenso e concordância de indivíduos atuantes, como também suas discordâncias, separações e desarmonias, numa visão um tanto maniqueísta do conceito. Mas também se chama "unidade" à síntese-grupo de pessoas, energias e formas, isto é, a totalidade, em última instância, daquele grupo, uma totalidade que reveste tanto relações estritas quanto relações dualísticas.

Esta imprecisão é acrescida pelo correspondente desdobramento das noções de "discórdia" ou "oposição". Já que a discórdia desvela seu caráter negativo e destrutivo entre indivíduos particulares, concluímos imediatamente que deve ter o mesmo efeito no grupo como um todo. Na realidade, algo que é negativo e nocivo entre indivíduos, se é considerado isoladamente e visando um alvo particular, não necessariamente tem o mesmo efeito dentro da relação total destes indivíduos. Assim, um quadro muito diferente emerge quando vemos o conflito em conjunção com outras interações não afetadas por ele. Estes elementos negativos e dualísticos desempenham um papel inteiramente diferente neste quadro mais compreensivo, a despeito da destruição que eles [fim da página 19] possam fazer em relações particulares. Tudo isto é muito evidente na competição de indivíduos dentro de uma unidade econômica, ou mesmo numa sociedade cujas regras são determinadas pela economia monetária, para usar uma expressão de Simmel.

Conflito e autoridade

Até aqui procuramos mostrar, apoiados principalmente em Simmel e Moore Jr., que o conflito não é algo por si só negativo, mas mesmo necessário para que exista sociedade. No entanto, a resolução de situações conflituosas sempre provoca dor e sofrimento, dos mais variados graus, nos indivíduos. E, apesar do ser humano ser bastante flexível em sua capacidade para suportar e também proporcionar o sofrimento e o abuso, tais situações não devem ser muito prolongadas com o risco de desagregação social.

De acordo com Moore Jr. (1987: 36), três elementos são fundamentais para a produção da sociedade: a autoridade, a instituição de mercado e o costume. A autoridade é necessária para coordenar as atividades de um grande número de pessoas e se estende a todas as esferas da vida social, sendo empregada em todas as sociedades conhecidas, mesmo naquelas onde não há a figura de um chefe. Porém, ela não é a única forma utilizada para produzir a sociedade. Existe também a coerção, que se distingue da autoridade pela falta de dever moral de obediência. É rara em sua forma pura e, assim como a autoridade, depende de um senso de dever por parte de quem obedece. A instituição de mercado, principalmente na atualidade, coordena a produção e a distribuição de bens e serviços entre um número ilimitado de pessoas que não têm entre si a menor relação direta. Moore Jr. chama a atenção para os resultados dessa coordenação que são quase sempre moralmente abusivos, notadamente para os grupos recém-introduzidos nas suas relações. E finalmente há o costume, que faz com que um grupo limitado de pessoas formule normas para si mesmo, vivendo mais ou menos de acordo com elas. "A regularidade e a ordem porventura existentes em tal comportamento provêm da sanção e da vigilância mútuas, sem que nenhuma pessoa ou grupo conquiste suficiente vantagem, a ponto de ser capaz de dominar ou controlar os outros".

Antes que esta última afirmação gere qualquer mal entendido, é preciso dizer que este autor considera o contrato social implícito como um traço fundamental na tentativa de explicar idéias e comportamentos recorrentes sobre o abuso de autoridade. Obviamente existe em todas as sociedades, mesmo naquelas aparentemente igualitárias, uma parcela da população que se apropria de uma parte do excedente produzido coletivamente e que ela influencia, em grande medida, os padrões de comportamento, de consumo e mesmo os aparelhos formadores de opinião. Todavia, mesmo assim, existe uma parcela de autonomia dos "dominados".

Segundo Moore Jr.:

"Mesmo naquelas [sociedades] que possuem autoridade política, é impossível recorrer a ela a não ser em uma parcela de atritos e disputas que são partes da vida cotidiana, onde quer que existam seres humanos vivendo em comum. (¼) Até um certo ponto, é possível mantê-las dentro de limites, por meio de uma variedade de [fim da página 20] artifícios sociais, como a repreensão, o opróbrio ou o isolamento temporário das pessoas que ameacem tornar-se destrutivas." (1987: 37)

Por outro lado, mesmo existindo paz e ordem aparentes, elas são bem precárias, sendo suficiente abrir um jornal para observar os altos índices de criminalidade, corrupção e discórdias em nossa própria sociedade. A ira pode fazer com que um indivíduo ou um grupo deles mate, ou machuque, outras pessoas e provavelmente tal ato terá como resultado o desejo de vingança. Este desejo, reprimido ou elaborado, tem amplos exemplos na história humana, e significa retaliação e mesmo uma "reafirmação da dignidade e do valor humanos após a injúria ou o dano" que são sentimentos subjacentes à ira moral e ao sentimento de injustiça. No exemplo mais clássico de vingança - a rixa entre famílias - a inimizade tradicional se perpetua "porque não há autoridade para eliminá-las e para fornecer outras soluções ao problema da ordem social" (Moore Jr., 1987: 38).

Nesse ponto, Simmel (1987: 142) questiona se há relação entre a estrutura de cada grupo social e o quanto de hostilidade pode permitir entre seus membros. Ele afirma que na sociedade política, o código criminal muitas vezes indica o limite além do qual a rixa, a vingança, a violência e a exploração ameaçariam a manutenção do grupo. Num grupo unido, a hostilidade entre seus membros pode ter conseqüências bem opostas. Ou seja, o grupo pode tolerar antagonismos internos justamente por causa de sua intimidade, desde que o vigor das forças que o mantém coeso possa competir com o vigor das suas antíteses. Por outro lado, este pode se ver ameaçado por cada conflito interno. Nos grupos pequenos e uniões estreitas, como o casamento, as duas coisas se dão ao mesmo tempo. Já em grupos grandes, duas estruturas aparentemente opostas podem se permitir uma dose de hostilidade.

Segundo ele, existem dois métodos de resolver os conflitos: a solidariedade orgânica, onde o todo supre os danos de conflitos parciais e o isolamento, onde o todo se preserva de tais danos, deixando às partes a tarefa de resolvê-los e também de sofrer as conseqüências, desde que não prejudique a existência da totalidade. Quanto maior o grupo, maior a possibilidade de combinação dos dois métodos. As partes devem estabelecer as vantagens e desvantagens primárias resultantes de seus conflitos, enquanto que as conseqüências secundárias seriam absorvidas pelo todo.

A noção de autoridade, colocada por Moore Jr. (1987: 38), ajuda a entender a noção de pacto social implícito, pois ela seria como que uma instância superior à qual os conflitos provocados por interesses diversos teriam que se curvar. A autoridade é um reflexo do fato de que a sociedade humana funciona através de um conjunto de arranjos, sejam eles o código criminal ou o costume, através dos quais alguns homens procuram extrair um excedente econômico de outros, transformando-o em cultura. Ela implica também que a obediência é conseguida por outros motivos que não apenas o temor e a coerção e indica, além disso, que existem outras coisas nas sociedades humanas além da extração de um excedente e não é esta a única fonte de cultura.

As teorias sobre o contrato social contêm um aspecto relevante: "em qualquer sociedade estratificada (¼), existe um conjunto de limites sobre aquilo que [fim da página 21] tanto os governantes como os súditos, os grupos dominantes e os subordinados, podem fazer. Há também um conjunto de obrigações mútuas que mantém unidos os dois grupos" (Moore Jr., 1987: 39). Estes limites não estão necessariamente formalmente redigidos, mas contidos nesse pacto social implícito.

Existe uma constante sondagem e negociação entre os dominantes e os subordinados para descobrir o que eles podem realizar impunemente, para testar e descobrir os limites da obediência e da desobediência. Esses limites não estão perfeitamente estabelecidos e claros, embora se possa prever com uma margem razoável de acerto onde se localizam. Eles podem se reduzir ou se estender dependendo se a sociedade em questão for mais ou menos estável. Mas eles existem, ou não existiria sociedade. Em épocas de transição, como foi o século XIX, quando o repentino crescimento das metrópoles provocou mudanças drásticas nos padrões de vida, de moralidade e de relacionamento, estas negociações tiveram necessariamente que estar na ordem do dia. Estranhos povoavam a metrópole. Estranhos no sentido atribuído por Sennett (1998: 69) a um novo grupo social que ainda não possuía um rótulo e que não poderia ser meramente reduzido às categorias de burguesia e proletariado. Trata-se de uma camada social formada por pessoas 'inclassificáveis' - "materialmente semelhantes, mas ignorantes de sua semelhança" - e pelo afrouxamento das posições sociais tradicionais. É desses indivíduos e do meio amorfo em que viviam que vamos falar na próxima seção.

Individualismos e a tragédia da cultura

Grande parte do trabalho de Simmel é uma crítica à cultura da economia monetária, e em como essas transformações afetaram as relações entre os indivíduos. Especialmente no texto O dinheiro na cultura moderna (1896), Simmel destaca a interposição do dinheiro nos laços existentes entre os indivíduos e sua comunidade, quebrando os vínculos locais e pessoais, mediando a relação pessoa/ posse. Além disso, alega que o dinheiro foi o fator principal que levou o homem moderno a privilegiar associações que têm como objetivo o lucro ou que nada mais exigem do indivíduo a não ser o seu dinheiro.

Ele quer mostrar como, a partir da idade moderna, surgiu um indivíduo que tem prerrogativa sobre a sociedade e "evoca um contrato pelo qual os indivíduos componentes se 'associaram' numa sociedade" (Dumont, 1993: 88). Todavia, emergem, em diversos textos de sua autoria, mais evidentemente em O Indivíduo e a Liberdade (1998) e em A Metrópole e a vida mental (1979), dois tipos de individualismos.

O primeiro é o que Simmel denomina de "individualismo quantitativo" e se refere à "independência individual" ou "liberdade individual" como um desdobramento político da livre concorrência liberal (Waizbort, 2000: 492). É o sujeito do Iluminismo baseado numa concepção de pessoa humana, um ser único completamente centrado, e dotado da Razão, "de consciência e de ação, cujo centro era formado por um núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo o mesmo (¼) ao longo da existência do indivíduo" (Hall, 1997: 11). Ao mesmo tempo, tinha como fundamento a igualdade natural dos indivíduos, a despeito das opressões ocasionadas pelas desigualdades artificialmente produzidas. O valor desse [fim da página 22] homem genérico/ abstrato tinha seu fundamento no próprio indivíduo, na sua auto-responsabilidade, portanto, no que ele tinha em comum com todos, sua igualdade universal (Simmel, 1998: 112).

O outro individualismo seria aquele surgido no século XIX, pelo qual os indivíduos buscam autonomia, e embora sendo iguais entre si por princípio, desejam distinguir-se uns dos outros. Estão livres dos laços históricos que os ligavam a instituições como a corporação, ao estamento por nascimento e à Igreja. Segundo Dumont (1993: 87 e 90), este ser unificado, autônomo e independente de qualquer vínculo social ou político é uma influência do individualismo cristão e estóico e exprime a unidade do grupo social e político, estabelecendo a sociedade ou o Estado ideal a partir do isolamento do indivíduo. Esta concepção assume uma configuração de "individualismo qualitativo", que diz respeito à diferença e à distinção do indivíduo. Desenvolve-se a partir da emergência do estilo de vida característico da metrópole e da crescente divisão do trabalho, que tornou as relações despersonalizadas, suscitando nos indivíduos o culto à originalidade ou mesmo à excentricidade como forma de proteger sua individualidade (Barros, 2000). Suas relações com os outros serviriam apenas para auxiliar a busca de si mesmo, de modo que os outros propiciariam um termo de comparação e o realce da singularidade e individualidade de seu próprio mundo (Simmel, 1998: 114).

Estes dois tipos de individualismo estão em permanente tensão, determinando o papel dos sujeitos dentro da totalidade. No século XIX esses dois princípios, ou individualismos, foram unidos, sendo que "a teoria da liberdade e igualdade é o fundamento da livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é fundamento da divisão do trabalho" (Simmel, 1998: 117).

A cidade seria o locus desse conflito - pois seria também o centro monetário do mundo moderno - e da autonomia do indivíduo. Existiria uma relação entre o dinheiro, a intelectualidade e a lei universalizante do direito, pois esta última iguala todos os homens ("todos os homens são iguais perante a lei"), embora o desenvolvimento da economia monetária tenha propiciado o acirramento das diferenças.

A economia do dinheiro tornou, de um lado, todas as relações econômicas impessoais, e de outro, libertou o indivíduo dos laços constrangedores da comunidade, pois ele agora se liga ao todo apenas pela doação e recepção de dinheiro. Desse modo o dinheiro se imiscuiu entre a "totalidade objetiva da associação" e a "totalidade subjetiva da personalidade" (Simmel, 1998: 24), tornando-as autônomas uma da outra e propiciando a ambas a chance de desenvolvimento.

Essa separação/ divisão do homem moderno gera inquietude, uma necessidade de buscar a si mesmo e de tentar se diferenciar dentro da própria individualidade (Waizbort, 2000: 491-92). Isto confirma o que disse Barros (2000) a respeito das esculturas de Rodin analisadas por Simmel: "o que Rodin procura mostrar em suas esculturas não é a plástica de seus modelos, mas a interioridade de seus sujeitos, a inquietude do homem moderno". Essa busca do eu e essa inquietude não garante uma "autonomia moral" ao homem moderno, no sentido que lhe dá Moore Jr. (1987: 131), de resistir às pressões e coações sociais, pois estas são necessárias ao homem que vive em sociedade e, um homem que se submete a elas, dificilmente poderia ser chamado de autônomo.

[fim da página 23]

O que encadeia todos os homens a partir desse momento é a divisão do trabalho, não mais os laços comunitários. E cada um pode ter acesso ao trabalho de outrem através do dinheiro e "somente o trabalho de todos gera a união econômica abrangente que completa os desempenhos unilaterais do indivíduo" (Simmel, 1998: 27).

Nesse ponto, Moore Jr. (1987: 57-58) coloca em discussão uma perspectiva interessante. Ele afirma que não existe sociedade humana que tenha uma divisão do trabalho satisfatória para todos os seus membros e toma-a como um contrato social que regulamenta conflitos, de variadas intensidades, que possam surgir entre os indivíduos. E acrescenta:

"Não existe apenas um conflito de interesses entre o indivíduo e as exigências da ordem social adicionadas às da classe dominante. Há também um certo grau de harmonia, sem o que é improvável que o contrato social funcione. Com efeito, alguns dos instrumentos sociais mais eficazes são aqueles através dos quais a sociedade mais ampla procura fazer com que os indivíduos moldem e definam seus próprios interesses de tal maneira que se tornem congruentes com a ordem social; que aceitem com prazer [sic!] sua parte na barganha do contrato social, quando as compensações diretamente materiais são muito frágeis."

Não diríamos que os indivíduos aceitem "com prazer" sua parte do contrato social, principalmente quando esta parte envolve crescentes e significativas desigualdades sociais. Porém, de um modo geral, o indivíduo comum aceita, embora com queixas e reclamações, suas poucas recompensas materiais na realização de tarefas socialmente desvalorizadas. O que gostaríamos de enfatizar aqui é que a divisão do trabalho em funções positiva e negativamente valorizadas pela sociedade - como é o caso do trabalho intelectual e do braçal, ou que não exija muitas capacidades intelectuais - gera sofrimento no indivíduo, e podemos nos apoiar na história para mostrar como essa divisão foi utilizada como castigo para transgressões a normas sociais. Moore Jr. afirma, na verdade, que ninguém realmente gostaria de executar tarefas que não são bem aceitas em seu meio social e que elas violam de alguma forma o que os seres humanos pretendem ser:

"O motivo central de tal suspeita é que os seres humanos geralmente evitam essas funções, quando podem, e apenas as desempenham sob alguma forma de compulsão. Ao mesmo tempo, tais funções têm sido 'socialmente necessárias', numa extensa série de sociedades e não houve o mínimo grau de concordância 'voluntária'." (1987: 60-61)

Esse é o princípio da humilhação como processo social de que fala Lindner (1999 e 2000), e que se tornou, no século XX, uma força potente nas políticas domésticas de vários Estados nacionais e também de relações entre diferentes Estados em nível internacional.

O estilo de vida das grandes cidades estabeleceu um maior contraste nessas diferenças, além de estabelecer uma nova e característica forma de interação, [fim da página 24] que implica em relações anônimas e o desinteresse pela personalidade alheia. Implica também em aceitar uma ordem social injusta, através das diversas coerções sociais nem sempre evidentes, mas que dão origem a um processo de submissão que produz, quase sempre, uma atitude humilde, mesmo que mesclada de ressentimentos, naqueles que constituem a camada subordinada em uma determinada sociedade (Lindner, 1999).

Esse tipo de relação, segundo Simmel (1998: 29-30), característico da cultura moderna, alija a esfera de relações externas da individualidade, marcada por ações econômicas. O indivíduo, como ser único, praticamente se recolhe a suas esferas mais íntimas. É esta a grande transformação trazida pela cultura da economia monetária, que se, por um lado alarga os círculos sociais, estabelecendo ligações relativamente igualitárias e mediatizadas pelo dinheiro entre indivíduos geograficamente distantes; por outro, propicia uma maior autonomia na formação da pessoa, uma maior individualização e liberdade. Essa liberdade adquirida pode significar "uma ausência de conteúdos da vida e um afrouxamento da sua substância". Esta, conforme Simmel, seria a razão da infelicidade e insatisfação do homem moderno, ou seja, a subordinação do lado qualitativo ao quantitativo.

Essa perda de valor, essa vulgarização das coisas marca o homem moderno, transformando-o no que Simmel chamou, em seu artigo A metrópole e a vida mental, de homem blasé (Simmel, 1979). Esse tipo é característico das metrópoles quanto a sua atitude de perseguição ininterrupta ao prazer, aos estímulos cada vez mais fortes e que muda rapidamente suas atitudes, muitas vezes contradizendo uma a outra. Essa busca crescente torna o indivíduo incapaz de reagir a novas sensações, transforma-se em alguém indiferente, não se surpreendendo com nada que aconteça. Simmel denomina essa atitude de "embotamento do poder de discriminar" e atribui o seu surgimento também à economia do dinheiro, pois arranca a individualidade das coisas, seu valor específico, sua incomparabilidade. Waizbort (2000: 498) observa que essa atitude poderia ser interpretada como uma recusa do individualismo qualitativo - romântico - à realidade exterior impregnada pelo dinheiro, havendo portanto uma relação entre ele e o refúgio na interioridade. Por outro lado, também podemos observar que, em uma sociedade em transformação vertiginosa como a do século XIX, ações e comportamentos determinados pela tradição perderiam o sentido. Na ausência de uma "etiqueta social" cristalizada, ou seja, um repertório de práticas comuns esperadas e/ ou desejadas pelos indivíduos em interação e de regras que coordenem a distribuição de sentimentos (Koury, 1999) que podem/ devem ser externados no espaço público, esse embotamento, essa indiferença e essa apatia, em uma só palavra a atitude blasé, teriam farto terreno para se desenvolver em cada personalidade.

No crescente domínio da economia do dinheiro não mais se percebe que este é um meio para se conseguir outros bens, mas considerado como algo autônomo, um objetivo em si mesmo, um alvo último. O ganho de dinheiro passou a ser, na época moderna, praticamente a motivação do homem, como se ele em si satisfizesse todas as necessidades humanas. A perseguição desse objetivo freqüentemente se revela vazia quando o indivíduo o alcança. De acordo com o exemplo dado pelo autor, o homem que passa toda sua vida acumulando [fim da página 25] riquezas para desfrutá-las na aposentadoria descobre, em muitos casos, que o dinheiro revela nesse momento sua verdadeira natureza de meio, mostrando-se inútil e insatisfatório se o indivíduo não tem outras metas.

Simmel atribui a confusão entre fins e meios à cultura moderna, própria das sociedades complexas, pois os propósitos dos homens não são mais alcançáveis de forma imediata. Exigem cada vez mais mediações, meios e instrumentos, tornando intermináveis os passos necessários para alcançá-los. É então que o indivíduo corre o risco de se perder no labirinto de meios e de esquecer qual o seu fim (Simmel, 1998: 34). A vida moderna passa a ser estruturada em torno de objetivos provisórios, superficiais que são confundidos com os fins. O indivíduo vive pressionado, tenso, esperando algo que nunca parece chegar e suas finalidades últimas se perdem no horizonte.

O dinheiro se coloca entre o homem e o que ele quer, como se fosse um facilitador, criando a ilusão de que tudo pode ser alcançado através dele. A felicidade se confunde e se alimenta com o poder e com o dinheiro que concentra tudo. É o frenesi, a necessidade de constante movimento e ação, cujo motor é o dinheiro que nunca dá trégua ou faz pausas e está sempre presente.

O consumo alimentado pela economia do dinheiro estimula a ansiedade, reproduzindo a ilusão que aquilo que vai dar-lhe trégua pode ser obtido facilmente na posse de uma determinada quantia. As propagandas são exemplos que parecem ser bem apropriados. Elas exploram o universo simbólico dos consumidores sempre de forma hiperbólica, pois talvez do contrário, sem este estímulo adicional, não obtivessem o resultado desejado. Esses estímulos adicionais que se encontram a cada momento do cotidiano são razões infinitas para transformar cada indivíduo em mais um blasé da metrópole.

O desenvolvimento da individualidade deixa o sujeito à própria mercê para resolver seus conflitos interiores que o modo de vida na metrópole traz. Simmel apresenta como forma de autodefesa e autopreservação de algumas personalidades a desvalorização do mundo objetivo que leva o sujeito a uma sensação de inutilidade e/ou, por outro lado, de reserva. Quanto a essa atitude mental Simmel diz:

"(...) se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável." (1979: 17)

O ritmo frenético das cidades grandes não permite essa aproximação, ou as pessoas não se mostram dispostas a gastar a energia de seu parco tempo livre estabelecendo relações e compromissos mais intensos e exigentes. De qualquer modo, deve-se a essa reserva uma das queixas do homem moderno a respeito da cidade grande, mas que cotidianamente não se vêem (ou não são possíveis) esforços para uma aproximação. Essa quase repulsão, ao invés de ser observada como "força dissolvente" é, ao contrário, uma das formas elementares de socialização da grande metrópole.

O que Simmel denominou "tragédia da cultura" está relacionado com estes [fim da página 26] individualismos e com o fato de que estas duas tendências estão em permanente conflito, na cidade grande e, podemos dizer, também na personalidade, uma vez que existe um paradoxo entre liberdade e individualidade. Pode-se dizer que a individualidade está sempre sofrendo com as tensões geradas pelas coerções da vida social e, de fato, um dos grandes problemas do homem moderno seria a luta incessante contra seu nivelamento e utilização pelos mecanismos técnico-burocráticos da sociedade industrial.

Todavia, tem-se observado a partir dos últimos dois séculos uma tendência na vida moderna, e especialmente na vida da cidade grande, para a substituição das coisas concretas e mesmo das abstratas por dinheiro. E que, na maioria das vezes, os indivíduos se esquecem de que existem aspectos tanto nas coisas quanto nas pessoas que não podem ser expressos monetariamente. É a subordinação do lado qualitativo ao quantitativo, que não é levada em consideração e que é a causa da infelicidade e insatisfação da vida contemporânea.

Apesar das mudanças positivas, enumeradas por Simmel, advindas da economia monetária, ele observa por outro lado que "o dinheiro é uma coisa 'vulgar' porque é o equivalente para tudo e para todos; somente o individual é nobre; o que corresponde a muitas coisas corresponde ao mais baixo entre elas e reduz, por isso, também o mais alto para o nível do mais baixo" (Simmel, 1998: 31).

A metrópole excita os sentidos, devido ao burburinho que lhe é próprio, ao forte ritmo, ao excesso de compromissos, tarefas e ocupações, à competição econômica e, por extensão, à competição profissional e assim por diante. Nela se produzem constantemente sensações em ritmo mais acelerado que no meio rural, por isso, conclui Simmel, existiria na cidade grande um intelectualismo mais sofisticado, racional e superficial. Essa é a racionalidade do homem metropolitano que tem sua origem e locus na economia monetária. A ambos importam relações impessoais e contratuais, desprezando a individualidade e a singularidade, pois estas não se contentam e não são realizáveis através da lógica racional, nem são quantificáveis em termos de dinheiro (Simmel, 1979: 16).

Sennett (1998: 27 e 32) descreve estas modificações das relações no espaço público como um crescente esvaziamento de sentido do mesmo, através de um paradoxo do isolamento em meio à visibilidade que se reflete inclusive nas configurações urbanas e nas edificações das principais cidades do século XIX. Ao mesmo tempo em que se constroem espaços privados amplos e protegidos do burburinho das ruas, estes são apenas áreas de passagem, não de permanência e convivência. O espaço público morre, torna-se somente uma derivação do movimento e as ruas se transformam para permitir a livre movimentação. Se o movimento é impedido por qualquer motivo, isso é razão para ansiedade, pois a ausência de restrições à circulação de indivíduos e automóveis tornou-se um direito absoluto na sociedade moderna. Por outro lado, o espaço público tornou-se sinônimo de uma vida alijada da esfera familiar, onde grupos complexos e díspares entram em contato e onde os sentimentos não devem ser externados para que não sejam "lidos" pelos outros.

"Nessa sociedade a caminho de se tornar íntima - na qual a personalidade era expressa para além do controle da vontade, o privado [fim da página 27] se sobrepunha ao público, a defesa contra a leitura pelos outros era a retenção do sentimento - o comportamento em público se tornou o único modo pelo qual se poderia experimentar a vida pública, especialmente a vida nas ruas, sem se sentir esmagado. [¼] Cresceu a noção de que estranhos não tinham o direito de falar, de que todo homem possuía como um direito público um escudo invisível, um direito de ser deixado em paz." (Sennett, 1998: 43)

A metrópole moderna transforma-se em um ambiente artificial, dominada pelo dinheiro e pela lógica contratual, cuja vida e produção é voltada para o mercado, composto de personagens, na maioria das vezes desconhecidos uns dos outros, cujos únicos laços que os mantém juntos são os interesses econômicos. O homem da metrópole é anônimo, distanciado de suas realizações e de seus vizinhos. É então que Simmel fala de egoísmos econômicos, em cujas relações os indivíduos não precisam temer falhas devido aos "imponderáveis das relações pessoais". A essa maneira de se relacionar intimamente ligada à economia monetária, em que os que estão próximos são indiferentes uns aos outros, em que as relações são meros reflexos de contratos de trabalho e de troca de mercadorias, Simmel chamou de "atitude prosaicista".

No estilo de vida que aí se desenvolveu, tudo se calcula, tudo se transforma em um problema aritmético, reduzindo o subjetivo ao objetivo. Mais ainda, de acordo com esse ethos, novas identidades e costumes se configuram, como é o caso do exemplo citado pelo autor da difusão do relógio de bolso. Essas características são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da vida na metrópole, pois os indivíduos que aí residem são tão cheios de tarefas e afazeres de diferentes graus de complexidade, com interesses tão variados que têm necessariamente de funcionar de forma integrada, e sem o desenvolvimento da pontualidade nos compromissos e serviços a estrutura sobre a qual a sociedade metropolitana se organiza seria posta em risco.

Na metrópole, podemos concluir, não há lugar para o imponderável, para o irracional e impulsos espontâneos. Os indivíduos que assim agem podem desenvolver uma forte aversão ao estilo de vida metropolitano e à economia do dinheiro. No entanto, o sujeito que está exposto a este modo de vida pode desenvolver uma atitude blasé, como conseqüência do excesso de impulsos e estímulos, às rápidas mudanças a que a mente humana está sujeita. O indivíduo procura sua realização na aquisição de bens e coisas, numa infindável criação e recriação de necessidades, sem nunca alcançar a substância, o seu objetivo que, em meio à pressa do dia a dia, nem ele sabe mais qual é. Muita energia mental é então gasta tentando acompanhar esse frenesi da vida metropolitana que a pessoa torna-se incapaz de reagir a novas reações com o mesmo vigor.

A vida social na metrópole segue, então, duas tendências. Pelo fato de a esfera pública ter-se tornado sem sentido, impessoal, agressiva em virtude da competição, as pessoas procuraram "encontrar nos domínios privados da vida, principalmente na família, algum princípio de ordem na percepção da personalidade" (Sennett, 1998: 318). Isso resultou na existência de círculos pequenos, relativamente fechados contra vizinhos, estranhos ou antagônicos que seriam os grupos políticos, de parentesco, religiosos e, contemporaneamente, podemos citar as inúmeras "tribos" e grupos de interesse que se formam, quer tenham [fim da página 28] um caráter momentâneo ou não. Esses grupos, para se autopreservar, não permitem grande liberdade individual e o desenvolvimento autônomo da personalidade e o medo da impessoalidade torna a comunidade cada vez mais restrita.

Com o crescimento do grupo, seja em termos numéricos ou em diversidade de opiniões e projetos de vida diferenciados, a rigidez que marcava a unidade original relaxa e o grupo se torna mais flexível a elementos externos. Uma maior divisão do trabalho também propicia mais oportunidades de desenvolvimento autônomo das personalidades, embora isso não necessariamente ocorra. A conclusão a que Simmel chega nesse momento mostra uma grande semelhança aos trabalhos de Durkheim, no que se refere aos estudos sobre a solidariedade mecânica e aos poderes coercitivos da vida em grupos pequenos:

"(...) quanto menor é o círculo que forma nosso meio e quanto mais restritas aquelas relações com os outros que dissolvem os limites do individual, tanto mais ansiosamente o círculo guarda as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo e tanto mais prontamente uma especialização quantitativa e qualitativa romperia a estrutura de todo o pequeno círculo." (Simmel, 1979: 19)

Em breves palavras, os círculos menores tendem a ser mais conservadores do que aqueles formados nas metrópoles e que desenvolvem laços emotivos e sociais mais frouxos.

Essa liberdade de que fala Simmel, e sua tragédia, é sentida na multidão, pois apesar da proximidade física e de estarem rodeada de outras, as pessoas não se aproximam nem mental nem emocionalmente. O indivíduo está 'sozinho na multidão', como se diz muito freqüentemente. O homem da metrópole tem a opção de se tornar o que quiser, ninguém o impede, mas é justamente aí, onde a indiferença do outro lhe alcança, que o homem contemporâneo, em particular, se dá conta de sua solidão. Ser livre para quê e para quem, essa é uma questão importante.

Não só as metrópoles crescem cada vez mais em tamanho, como envolvem as outras menores com seus atrativos e facilidades. Divulgam seu modo de vida, sua intelectualidade na medida em que sua riqueza se expande. Alargam-se os círculos das relações econômicas, pessoais e intelectuais de sua população sobre as áreas rurais ou semi-rurais. Vemos isso se acelerar com o acesso de maiores círculos de pessoas aos meios de comunicação, levando a metrópole para além de seus limites físicos.

O grande número e variedade de serviços levam o homem metropolitano a buscar uma maior especialização, diferenciação e singularidade naquilo que ele oferece, com o risco de que se ele não se destacar da multidão sua sobrevivência se torna ameaçada. Há uma maior pressão para se atender a necessidades novas e cada vez mais específicas dos consumidores e explorar os nichos de mercado - para usar uma terminologia bem atual, cara aos defensores da livre iniciativa e dos profissionais de marketing. É preciso ser diferente, chamar atenção para o seu empreendimento para que ele sobreviva aos anos. Isso se torna mais evidente quando o negócio e a mercadoria oferecida é o próprio indivíduo, como acontece com as modelos e pessoas do meio artístico, onde se [fim da página 29] exibe um verdadeiro espetáculo das idiossincrasias humanas - ser excêntrico é ser in e vende mais.

Conclusão

Todos os fenômenos aqui apresentados foram observados por Simmel como sendo característicos da metrópole, onde o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pelo predomínio do "espírito objetivo" sobre o "subjetivo". A divisão do trabalho exige do indivíduo essa especialização, essa diferenciação de forma sempre unilateral, desenvolvendo apenas alguns aspectos de sua personalidade e tornando-se apenas um elo na cadeia de dependências que parece sempre crescer no modo de vida urbano. Ao mesmo tempo, o espaço público de atuação se torna cada vez mais esvaziado de sentido, pois as relações que aí se travam tem o caráter quase que exclusivamente econômico, onde se oculta toda e qualquer referência ao pessoal, ao particular e ao privado.

O conflito e o sofrimento devem ser vistos, então, como sociabilidades geradas por esta hipertrofia do espaço público sobre o privado, ao mesmo tempo em que ocorre o esvaziamento de sentido da vida pública. O espaço da individualidade fica então disperso e fechado, aumentando o espaço do individualismo, enquanto sofrimento socialmente expresso e o indivíduo, como ser único, praticamente se recolhe a suas esferas mais íntimas.

Desse modo, o que Simmel observou na vida da metrópole de fins do século XIX, tem se tornado crônico hoje em dia. De um lado, um mundo de possibilidades, facilidades, oportunidades e serviços. De outro, o risco muito presente do indivíduo se perder em meio a essas máscaras sociais, objetivos temporários e supérfluos. Para se reconhecer como ser singular e preservar sua essência pessoal nesse mundo de opções infinitas precisa apelar para os extremos de exclusividade e particularização. Essa hipertrofia da cultura objetiva reforça a reserva, a indiferença e o individualismo, pois dificulta o encontro do sujeito com os outros e demonstra a falta de motivos de identificação para a construção de laços mais duradouros na esfera pública, laços estes que Simmel identificava, em sua época, ainda na vida das pequenas cidades.

Referências Bibliográficas

[fim da página 31]

Nota

1) Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Ciências Sociais e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).


[início da página 32]


RESUMO
INDIVIDUALISMO E CONFLITO
COMO FONTE DE SOFRIMENTO SOCIAL


Este trabalho tem como objetivo discutir como o individualismo, princípio da sociedade moderna, e o conflito são fontes geradoras de sofrimento social. Ao longo do texto procuraremos demonstrar como o sofrimento mantém uma estreita relação com a questão das emoções e que, mesmo sendo estas um tema fundamental da filosofia e literatura, também se colocam como objeto de estudo das ciências sociais, uma vez que são o resultado de interações humanas, de suas instituições e das relações de poder. Apresentamos pois, o sofrimento e o conflito como sociabilidades necessárias para que haja uma ordem social e mesmo fundamental para a existência da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Sociologia da Emoção; Sofrimento Social; Individua-lismo.

ABSTRACT
INDIVIDUALISM AND CONFLICT
AS SOURCES OF SOCIAL SUFFERING


This essay aims to discuss how individualism, a modern society principle, and conflict produce social suffering. All the text long we try to show how suffering keeps a close relationship with the emotional issue and that, even emotions being fundamental to Philosophy and Literature, they are put as subject of social sciences, since they are result of human interactions, institutions and power relationships. So, we present suffering and conflict here as sociabilities that are needed to social order and even for the existence of the society.
KEYWORDS: Sociology of Emotions; Social Suffering; Individualism.





Índice Principal  |   Normas Para Publicação
Número 17 - set/2001  |   Universidade Federal da Paraíba  |   Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi criado em fevereiro de 1998 e
modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

This page hosted by


Get Your Own Free Home Page