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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 64-79


A TEORIA DO IMAGINÁRIO
E A PROPOSTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MICHEL MAFFESOLI

Lemuel Dourado Guerra (1)

Introdução

A prática da ciência sempre implicou num conjunto de pressupostos auto-evidentes, uma série de pontos de partida inquestionáveis, devendo-se incluir nesse conjunto uma articulação de mitos que orientam a relação entre as finalidades e a condições necessárias à produção de conhecimento rigoroso.

Neste artigo temos como objetivo discutir algumas das imagens típicas dessa articulação, elementos básicos do imaginário associado à produção do saber em geral e, especificamente, em relação às ciências sociais, e a interpretação das mesmas, de caráter contrapontístico, elaborada por Michel Maffesoli, misto de filósofo/ antropólogo/ sociólogo francês contemporâneo.

Uma dessas imagens típicas da articulação acima mencionada é a idéia ou a noção de utilidade da prática científica, da qual é caudatário o modelo da sociologia "curativa", presente nos primeiros momentos da história da sociologia. A constituição dessa relativamente recente ciência somente é possível a partir de uma visão que integre seu caráter de atividade intelectual e, portanto, especulativo, com o fato de que ela é também o reflexo das condições sócio-econômicas e históricas de uma determinada sociedade, num determinado espaço de tempo. Um olhar sobre o surgimento da sociologia já demonstra de que maneira a disciplina é marcada tanto pelo ambiente pós-revolução francesa, quanto pelas condições estruturais de sua introdução no ensino médio, bem como na universidade francesa.

Já naquele momento, Augusto Comte, Saint-Simon, Condorcet, Quetelet e, mais tardiamente o próprio Durkheim, atuaram como intérpretes das revoluções de 1789 e 1848 e como autores de questionamentos e de propostas de equacionamento do que eles consideravam problemas advindos da nova organização social inaugurada pela revolução política de 1789. Esse estilo, que originou a denominação de sociologia "curativa", marcou indelevelmente a prática dos intelectuais da área e a maneira pela qual o campo se constituiu.

Em Marx - que embora não fosse originalmente sociólogo, nem tivesse como preocupação importante a constituição de uma ciência da sociedade - vamos encontrar aquele traço intelectual que vai caracterizar a sociologia enquanto uma disciplina específica, a saber, a idéia de que a força propulsora da produção sociológica vai ser justamente a demanda do tempo presente nos quais se encontram os estudiosos das relações sociais. A sintonia de Karl Marx com sua época possibilitou que ele enxergasse como o principal problema do seu tempo, considerado também em suas perspectivas de desdobramentos [fim da página 64] futuros de extrema significância para a história universal, o sistema capitalista e todas as mudanças econômicas, políticas e sociais a ele ligadas.

Como um intérprete perspicaz do capitalismo e proponente de uma fórmula para o entendimento da possibilidade de sua superação, Marx inaugurou um modelo de sociologia que tinha como principal resultado a idéia de que o conhecimento e a produção intelectual referentes à explicação do mundo social e dos seus movimentos deveriam ser vistos não mais como meros produtos intelectuais destinados à discussão em círculos fechados e a se transformarem em objetos de teses acadêmicas para a mera titulação de professores. Tornou-se emblemática de sua posição a frase em que comentava a tarefa da nova forma de refletir sobre o mundo social, segundo a qual importava a partir dali em diante, junto com a função de explicar o mundo, a preocupação fundamental com sua transformação.

Em Weber, essa articulação do mundo das idéias com o mundo da práxis não adquiriu os contornos de uma proposta de organização popular para a superação do capitalismo como sistema de produção, nem como gerador de um imaginário poderoso, capaz de provocar novas maneiras de atribuição de sentido à ação dos indivíduos. Sua contribuição a esse debate se materializou nas reflexões muito famosas a respeito das relações entre os intelectuais e a política, com referência a sua caracterização da ética da convicção e da responsabilidade. De qualquer modo, podemos encontrar nesse que foi talvez o mais pessimista dos sociólogos clássicos, uma preocupação inegável com a interpretação da revolução científico-racionalizadora, e das possibilidades objetivas de seus desdobramentos, que se constituía provavelmente como um dos principais problemas de seu tempo, demandando dele uma interpretação ao mesmo tempo competente e capaz de apontar, em que pese seu pessimismo, pelo exercício crítico dele próprio ou de seus epígonos, para a construção de alternativas de seu enfrentamento.

A exigüidade de tempo não nos permite aqui fazer uma abordagem histórica da maneira pela qual a produção teórica pós-clássicos da sociologia se relaciona, por um lado, com essa necessidade de responder às condições concretas do tempo, e, por outro, como o reflexo da posição social e ideológica dos homens que teorizam sobre a sociedade, bem como dos determinantes ligados às condições institucionais em que a atividade intelectual é conduzida. De qualquer maneira, é nossa intenção fazer comentários a respeito de algumas das tendências principais do contexto da produção sociológica de nosso tempo. Esse contexto se diferencia substancialmente daquele em que ocorreu a produção dos clássicos, pelos menos em dois aspectos. Um deles, representado pela idéia de reflexividade; e um outro pelas modificações gerais em termos de institucionalização das profissões intelectuais em geral e da de sociólogo, em particular.

O primeiro dos aspectos citados foi discutido por Giddens (1990), argumentando que a modernidade inaugurou um tempo em que, pelas condições de circulação massiva de informações, a representação das coisas e do mundo, e as práticas nela referenciadas, são profundamente informadas pela contribuição das diversas ciências, inclusive a sociologia. A conseqüência básica disso, em nosso campo, é a idéia de que constituímos ativamente o objeto [fim da página 65] de estudo sobre o qual nos debruçamos. É claro que o poder que os sociólogos têm de moldar a sociedade que estudam depende das relações de forças no campo dos meios de comunicação mais geral, no qual concorrem com outros "formadores" do mundo, bem como das relações de poder dentro do campo específico da produção intelectual sociológica, o que implica em pensar nas estruturações do tipo centro-periferia dos conjuntos nacionais de departamentos, universidade e de outras instituições de pesquisa, quer seja em termos nacionais ou internacionais. De qualquer maneira, o reconhecimento das condições gerais da reflexividade da modernidade, e mesmo da pós-modernidade, deve nos levar a admitir que aumenta de maneira diretamente proporcional a possibilidade de que esse conhecimento específico ganhe em termos de significado social e a necessidade de pensar na construção de uma participação responsável e ética nos processos sociais.

O segundo aspecto se refere ao grau de institucionalização das profissões intelectuais em geral e da de sociólogo em particular. Alguns pontos sobre os quais os estudos a respeito dos reflexos de uma crescente profissionalização do campo intelectual dos sociólogos sobre o caráter da recente produção na área têm se concentrado são: 1) a maneira pela qual a carreira de sociólogo-professor-pesquisador se constitui e suas conseqüências sobre a produção intelectual na área; 2) as pressões existentes no mercado, quer seja em termos editoriais, quer seja no campo dos financiamentos, sobre a escolha dos temas de pesquisas, das teses acadêmicas na área e da reflexão sociológica de modo geral; 3) o significado da concepção do papel do sociólogo/ professor/ pesquisador, em que a de intelectual vai aos poucos prevalecendo, se a atividade intelectual se constitui crescentemente desligada das demandas da sociedade, sendo exemplos emblemáticos da mesma os congressos da categoria, organizados mais em termos de legitimação profissional do que de oportunização de um debate substancial de idéias.

Como pudemos ver acima, em temos do caráter do qual se reveste a produção dos sociólogos contemporâneos, temos duas correntes. Uma, a corrente crítica e a outra aquela que chamaremos aqui de "profissionalizada". Como emblema da primeira linha, inspirada pelo modelo marxista, encontramos a sociologia de Pierre Bourdieu, um crítico implacável dos privilégios garantidos e transmitidos por instituições, inclusive aquelas ligadas ao "poder universitário" (2), que estabelece os critérios para a reprodução dos corpos docentes e mesmo do campo científico como um todo. Para Bourdieu, que tem se destacado ultimamente como um dos principais sociólogos críticos do neoliberalismo - o que tem lhe valido, inclusive, a pecha de "populista" - o papel que cabe ao sociólogo é o de destruir os mitos dos seus contemporâneos. Sem querer entrar no mérito da discussão feita por Bourdieu, limitamo-nos aqui a destacar, em, sua produção, aquela mesma pretensão, presente nos clássicos, de fornecer respostas aos desafios propostos pelo seu tempo, que [fim da página 66] muitos poderão chamar de tendência a um certo presentismo, e outros, como Sombart, do exercício fundamental da tarefa que caberia às ciências sociais em geral e particularmente à sociologia: a de dar sentido à história.

Uma outra imagem fundante da prática científica é aquela do sábio guardião dos conceitos, que não dormita e não descuida da atividade incessante de resguardar a teoria dos ataques profanadores dos empiristas profissionais. A idéia da necessidade de assegurar a pureza dos conceitos também tem exercido um importante papel no exercício da ciência, produzindo uma casta de orientadores, de chefes de departamentos, enfim, de especialistas na manutenção e difusão da sã doutrina, que não hesitam em mandar para a fogueira - a do esquecimento acadêmico, a da reprovação nos concursos, a da localização em setores de menor importância na academia, a da não recomendação para a publicação - os rebeldes produtores de ecletismos teóricos, os misturadores de paradigmas.

Ainda fazendo parte do conjunto de elementos que determinam, a cada momento, em cada comunidade acadêmica, a legitimidade da prática científica, estão as regras de demarcação das fronteiras entre o teórico e o infra-teórico. No que se refere às ciências sociais, são muitos os exemplos históricos de momentos em que se estabelecem os critérios de dignidade teórica de ausência desta para os diversos temas e objetos de estudo.

Outras imagens, idéias, metáforas, que têm animado a prática científica poderiam ser apresentadas, mas nosso objetivo mais central é apresentar, criticamente, alguns temas associados à teoria maffesoliana do imaginário, bem como algumas de suas propostas metodológicas para as ciências sociais, a partir, basicamente, de dois de seus livros, a saber, A contemplação do mundo (1995) e No fundo das aparências (1996).

Alguns temas da teoria maffesoliana do imaginário

No que concerne à obra de Maffesoli, chamamos de Teoria do Imaginário sua tentativa de elaborar uma interpretação sistematizada das mudanças ocorridas no âmbito da socialidade pós-moderna, que resulta num corpo de sugestões metodológicas apresentadas pelo autor mencionado, que incluem, ao nosso ver, a adoção de idéias e o uso de imagens relativas à natureza da reflexão sociológica, e da prática dos cientistas sociais em geral, marcadamente diferentes daquelas predominantes na produção dos sociólogos da modernidade.

Para Maffesoli, essas modificações na definição do exercício intelectual dos sociólogos, particularmente, decorrem imediatamente das modificações no nível da própria organização dos sistemas sociais no ocidente. Tratar-se-ia, seguindo ao autor, de uma proposta de adequação de conceitos e das metodologias dos cientistas sociais, imprescindíveis à construção de uma mais clara compreensão do mundo atual.

Agruparemos nossa exposição da teoria do imaginário de Maffesoli em três partes: na primeira, apresentamos alguns pontos relativos à visão do autor a respeito da conjuntura atual; na segunda, tratamos de algumas de suas sugestões metodológicas que, segundo ao autor, são imprescindíveis para tornar possível uma interpretação adequada da sociedade contemporânea; na última [fim da página 67] seção, fazemos algumas críticas à contribuição do autor em questão.

Maffesoli e a interpretação da conjuntura atual

Diferentemente das visões de alguns dos principais teóricos da pós-modernidade, tais como Baudrillard e Lyotard, que vêem a conjuntura atual como um momento de crise e de instalação de sintaxes desestabilizadoras, no que se refere às transformações dos arranjos das relações sociais, Maffesoli tem uma visão positiva do mundo contemporâneo. Destacamos a seguir alguns dos temas de sua produção teórica a respeito do presente, que sinalizam para seu olhar otimista e esperançoso.

Ideal democrático X Ideal comunitário

A modernidade caracterizou-se, entre outras coisas, pela emergência da idéia de projeto racional-coletivo-político a longo prazo, o que Maffesoli chama de manifestação do Ideal Democrático. Segundo ele, esse tipo de utopia estaria sendo substituído pela do Ideal Comunitário, baseada numa proposta de efetiva condensação do tempo - ênfase no agora, no presente, que teria como uma das marcas principais o fortalecimento do sentimento e do desejo de estar junto, manifestado com base no pertencimento ao mesmo território físico, ou simbólico. Esse presenteísmo absoluto ocorreria, para Maffesoli, portanto, junto com o revival da idéia de tribo, com o elemento novo da possibilidade de identificação não só pelo sangue, mas também pelas afinidades eletivas - preferências musicais, estilo de vestir, cultura religiosa, dentre muitas outras capazes de catalisar o agrupamento (Maffesoli, 1993).

Dentre os sinais da ascensão do tribalismo/comunitarismo, o autor destaca: 1) a emergência dos fanatismos religiosos; 2) a efervescência contemporânea dos nacionalismo étnicos; 3) o fenômeno das reivindicações particularistas relativas ao campo lingüístico; 4) a proliferação de grandes celebrações profano-religiosas, tais como concertos de rock, competições esportivas e eventos de massa em geral.

O correspondente declínio das utopias longínquas em favor de ações coletivas voltadas à organização e desfrute do presente é acompanhado, segundo Maffesoli, por um processo gradual de obsolescência de todo um conjunto de valores ligados à racionalidade moderna, tais como o utilitarismo e a atitude contratualista. Estaríamos assistindo, atualmente, a um intenso ressurgimento da cultura do sentimento, o que se manifestaria na predominância de relações sociais que se organizam sob a ordem da proximidade e são animadas pelas experiências do cotidiano, transformando o laço social em laço emocional (Maffesoli, 1996: 12).

O retorno do recalcado: a retomada das imagens

Para Maffesoli, outro dado fundamental para o correto entendimento da atual conjuntura seria o que ele chama de retorno do recalcado da imagem. Para o autor, é preciso que os cientistas sociais encarem com seriedade a inescapabilidade da tarefa de analisar o mundo imaginal, formado por um conjunto complexo de elementos, no qual as diversas manifestações da imagem, do imaginário, do simbólico, ocupam, em todos os domínios, um lugar de crescente primazia.

[fim da página 68]

Esse dado da proliferação e do crescente poder da imagem nos atuais sistemas sociais se contraporia à situação histórica anterior, onde era possível observar uma redução (repressão) da importância do imaginário, graças ao predomínio de um processo gradual, e, então, considerado inexorável, de racionalização de todas as esferas da vida em sociedade. A tendência apontada por Weber, traduzida em sua metáfora da jaula de ferro, estaria então sendo abalada por um movimento de re-enchantement du monde, sendo emblemáticos deste a presença obsedante dos objetos, totens aos quais nos agregamos, numa espécie de culto materialista ao consumo, e a centralidade crescente dos jogos da aparência, dos quais é exemplo notável a crescente teatralização dos corpos.

O ressurgimento do mundo imaginal, uma das manifestações do fenômeno acima apontado, deve, para Maffesoli, ser motivo para uma re-elaboração teórica no âmbito das ciências sociais, na medida em que ele se fundamenta não no linearismo regular proposto pelo historicismo moderno, do qual é caudatária, inclusive, a maior parte da sociologia clássica, mas em dois fundamentos básicos: 1) a retomada dos elementos arcaicos - os arquétipos, os mitos -, que são, por sua vez, re-intepretados, distorcidos, relidos; 2) a aceitação das coisas como são, o que implica na ênfase na aparência, no caráter epifenomênico da experiência cognoscente, resultando na proposta de adoção de perspectivas fundamentalmente relativizadoras (Maffesoli, 1995: 110). É a partir dessas bases que ocorre a construção do imaginário, que, ao ser partilhado pelos homens oferece um terreno para a constituição de uma rede de "comunhões".

Para o autor, a imagem teria como função básica, em nossos dias, a produção da comunhão, da coesão social. Graças ao seu forte poder de produzir intensos sentimentos coletivos, o cimento do bloco social seria fornecido pela partilha das imagens - que produzirias um religare societal - possibilitada pelos diversos meios de comunicação em ação nas sociedades.

Assim, os indivíduos se manteriam juntos não mais graças à diferença, nem com base no estabelecimento de contratos com os outros, mas, principalmente, porque se "empatizam". Nesse processo de mútuo reconhecimento atuariam como mediadores privilegiados os processos de propagação de idéias coletivas e seus conseqüentes ativadores da partilha de emoções ligadas ao consumo voraz de imagens de todo os tipos. O mundo imaginal - as idéias coletivas, as emoções comuns, as imagens partilhadas - favoreceria, de acordo com Maffesoli, através da empatia produzida pelas imagens, a correspondência entre indivíduos, a constituições de redes de socialidade.

A partir dessa concepção funcional da imagem, a tela de TV, as salas de bate-papo na Internet, por exemplo, favoreceriam o surgimento de uma espécie de comunidade, ao mesmo tempo distanciada do mundo da política, da crítica social, e, portanto, passiva e resignada em referência a esse campo (3)  e, ao mesmo tempo, intensamente participativa e apaixonada, o que poderia indicar a [fim da página 69] transfiguração do "político" no "doméstico".

O novo estilo do social

Para Maffesoli, a pós-modernidade - indicada como o período em que estaríamos, sem que seja apresentada uma caracterização mais aprofundada do mesmo - seria um momento em que o estilo do social passa por transformações profundas, observando-se o que o autor chama de "nova forma de sensibilidade" (Maffesoli, 1995).

Seriam caraterísticas desse novo estilo:

1) A valorização e a defesa de territórios, quer seja em termos físicos, quer seja no plano simbólico, o que é chamado pelo autor de tribalismo;

2) A ênfase na cultura dos sentimentos, observando-se uma forte centralidade das atividades que promovem encontros de pessoas, com o objetivo de se sentirem juntos, pela mediação do consumo de imagens comuns;

3) A estetização da vida, revelada numa preocupação acentuada dos indivíduos com a imagem em todos os setores da existência em sociedade;

4) A intensificação da busca do supérfluo, o aumento da preocupação com o inútil e a ênfase acentuada na busca do qualitativo;

5) A ênfase no estilo, que se institui enquanto linguagem, que por sua vez funciona como protocolo de agregação dos indivíduos a outros territórios e tribos diferentes dos de sua origem.

Como podemos ver, esse novo estilo, como apresentado por Maffesoli, aponta para uma vida social contemporânea desenvolvida bem ao largo dos imperativos político-econômicos, a partir dos segredos dos micro-grupos, da sociabilidade de vizinhanças, dos ambientes afetuosos das amizades, na viscosidade das aderências religiosas, sexuais, culturais, tudo isso ocorrendo pela mediação das imagens, que atuariam como catalisadores dos processos de constituição das redes de sociabilidade.

Esse novo desenho da vida em sociedade exigiria do cientista social algumas mudanças em termos de epistemologia, sem as quais, segundo Maffesoli, é impossível um entendimento claro da nova conjuntura. Dentre suas sugestões de transformação da metodologia dos cientistas da sociedade selecionamos algumas, que passamos a apresentar.

Algumas sugestões metodológicas para a explicação
Sociológica da sociedade contemporânea


Para a elaboração de suas propostas metodológicas para a sociologia, Maffesoli parte da idéia de pregnância do não-racional e do não-lógico no seio da sociedade. Para ele isso não significa um ressurgimento de manifestações do obscurantismo, nem tampouco de uma apologia do irracionalismo. Trata-se, ao seu ver, da necessidade de reconhecer o vasto domínio do imaginário coletivo, que desempenha um papel decisivo enquanto determinante da vida social. Essa concepção da centralidade do imaginário, amplamente desenvolvida em alguns dos seus trabalhos, é expressa logo na epígrafe de um dos capítulos do A contemplação do mundo, em que Maffesoli cita Bakunin:

[fim da página 70]

"Em toda a história, há um quarto de realidade, pelo menos três quartos de imaginação e (...) não é de maneira alguma sua parte imaginária que, em todos os tempos, agiu menos poderosamente sobre os homens." (Bakunin, apud Maffesoli, 1995: 12)

Como vemos, há um reconhecimento enfático da importância de considerar, nas explicações do mundo da cultura, o imaginário das sociedades, como já anteriormente definido por Maffesoli, que teria um papel de profunda importância na moldagem dos arranjos sociais sob os quais os indivíduos interagiriam.

Para habilitar-se à análise do vasto campo do imaginário, na qual a razão instrumental triunfante da modernidade pouco ou quase nada pode ajudar, seria necessário, segundo Maffesoli, uma verdadeira iniciação dos cientistas sociais. No lugar de produzir ou desvelar verdades já dadas, ou, ainda, fornecer receitas prontas para resolver problemas que atingem as sociedades em constante mutação, a sociologia deve preocupar-se mais em aprender a colocar problemas do que lhe dar soluções (1995: 12).

Assim, Maffesoli apresenta suas idéias a respeito dos limites da explicação científica referentes ao campo do social contemporâneo, que por ter seus limites determinados pela época, por uma determinada história,

"(...) só pode ser objeto de um discurso contrapontístico, feito de variações perpétuas, em torno de um objeto que não é, jamais, explicável em sua totalidade, e cuja ambição é extrair-lhe as características essenciais, delimitar-lhe os contornos e mostrar suas conseqüências no aqui e agora." (Maffesoli, 1995: 13)

É possível inferir, a partir da análise das obras de Maffesoli, os contornos de uma proposta de sociologia descritiva, que questiona radicalmente a idéia de ciência social comprometida, da qual é emblemática aquela de inspiração marxista, bem como as correntes caudatárias da influência comtiana e durkheimiana, que tomam para si a tarefa de fornecer remédios para as "patologias" da sociedade.

A defesa do infra-teórico

Para dar conta de uma socialidade forjada a partir da interação de todos os minúsculos elementos da vida social e produzida pelos efeitos do vasto domínio do imaginário coletivo que, apesar de não ser conscientemente pensado, é amplamente vivido e eficaz, Maffesoli propõe uma sociologia barroca, ou, em outras palavras, uma ciência social das pequenas coisas, que entram em interação, resultando na sociedade complexa que conhecemos. Nesse sentido, ele ressalta:

"É importante notar que essa sociedade complexa repousa sobre um conjunto de valores que, não tendo direito à cidade na vida social, quando muito são acantonados na ordem do privado. Além disso, não se lhes confere nenhuma dignidade acadêmica. Esse era o caso daquilo que se relaciona com o ‘comunitarismo’, com o cotidiano, com o localismo, com o presente, com o passado, e, evidentemente, certamente com o imaginário, sob suas diversas modulações." [fim da página 71] (Maffesoli, 1995: 14)

Assim, um amplo campo de questões e temas - considerados pela sociologia tradicional como indignos de teorização, como se estivesses fora do âmbito da reflexão científica -, passa a ser o lugar privilegiado para a análise sociológica, sendo o método maffesoliano uma proposta de exercício de especial atenção ao anódino, ao que não é (ou é pouco) analisado (Maffesoli, 1995: 112). O banal, o marginal, o infrateórico, são defendidos pelo autor como a parte nobre da realidade, que necessita ser olhada, sendo reabilitados temas ligados ao cotidiano, o elementos constitutivos do imaginário, as coisas presentes, as redes que compõem o local, as dobras infinitas da comunidade (4).

A sociologia da imagem

Para Maffesoli, a crescente importância da imagem na sociedade contemporânea exige dos cientistas sociais algumas posturas diferentes das assumidas tradicionalmente. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer a pregnância da imagem no social; em segundo lugar, é necessário abandonar os preconceitos quanto à imagem, ao imaginário, ao imaginal; em terceiro lugar, é imperativo abandonar qualquer análise baseada em categorias clássicas tais como modo de produção, classe social, partido político e outras dessa natureza.

Essa proposta de programa mínimo para o exercício competente da análise social em geral e sociológica, em particular requer um esforço adaptativo significativo. Os cientistas sociais, acostumados à rejeição do não-consciente, do não-racional, do domínio da comunicação não-verbal, são chamados, nesta proposta maffesoliana, a treinar um novo tipo de olhar sobre o social, fundamentado na consideração corajosa da aparência, do visual, do nível epifenômenico, todos esses dados do mundo real contemporâneo. Assim, a realidade a ser estudada pelos cientistas da sociedade é constituída pelo onírico, pelo lúdico, pelas fantasias, que, segundo Maffesoli, agem profundamente sobre o social.

A partir das idéias de que o fundamento principal da coletividade, do vínculo social, do estar-junto em sociedade e a imagem, Maffesoli crê que a [fim da página 72] desconfiança diante do mundo imaginal (= imagem + simbólico + imaginário + imaginação), que foi um importante trunfo para a hegemonização da racionalidade moderna, seria totalmente inadequada para apreender o atual momento pós-moderno que vivemos. Em sua visão, a imagem, a aparência, o epifenômeno, todos são suficientemente eficazes na expressão da hiper-racionalidade pós-moderna, feita de sonhos, do lúdico, do onírico e de fantasias (Maffesoli, 1995: 94).

Como alternativa metodológica à ciência social moderna, Maffesoli sugere a união do rigor científico com a sensibilidade colhida na vivência do cotidiano, proposta nos trabalhos de Tacussel; o método da Mitanálise, de Gilbert Durand, elaborando uma proposta de análise sociológica que: 1) parta da tomada de consciência da pluralidade do real; 2) que substitua a análise das mudanças sociais atuais baseadas no econômico e no político, por análises que enfatizem o poder da imagem viva; 3) que defenda a ilustração e leve a sério o jogo das imagens, tudo como forma de restabelecer a antiga globalidade, onde não estavam separadas as palavras e as coisas, a natureza e a cultura, o corpo do espírito, a razão do sentimento (Maffesoli, 1995: 96).

A imagem e sua pregnância no social seriam então o objeto por excelência da sociologia: a imagem isolada; a imagem em decomposição; a imagem tradicional; a imagem "tecnologizada". Todos esses matizes funcionariam como índices de tendências sociais, não analisáveis através dos instrumentos da sociologia tradicional.

Por uma sociologia polissêmica

Para Maffesoli, o tempo dos grandes sistemas teóricos acabou. Assim, como a socialidade pós-moderna é ambígua, a reflexão científica a seu respeito também deve sê-lo, sendo freqüentemente mais "mostrativa" do que explicativa, mais digressiva do que objetiva, sendo construída de maneira polissêmica.

Três seriam os elementos básicos dessa nova proposta de sociologia: 1) é produzida a partir da consideração do jogo das imagens; 2) defende e utiliza o mecanismo da ilustração - em oposição ao de verificação; 3) produz descrições, nomeia, sem produzir sistemas de conceitos e teorias.

Maffesoli sugere também que, no lugar dos julgamentos de valor, a ciência social deve produzir "julgamentos de existência", que seriam matizados, temperados, relativos e frágeis, tais como os fenômenos por eles descritos (Maffesoli, 1996: 11). As análises clássicas dos objetos de estudo devem ser substituídas pela prática de elaborar cenários, descrevendo ambientes onde ocorre os fenômenos estudados, construídos sempre a partir da escuta da voz do objeto, que vai induzir as escolha dos ângulos a serem focalizados pelo cientista.

Essa proposta de analítica sociológica de base fenomenológica e polissêmica parte do pressuposto da confiabilidade das evidências do objeto - o que se deixa ver e o fato de ver seriam suficientes - , da profundidade da aparência (Maffesoli, 1996).

[fim da página 73]

Pontos críticos

O neopositivismo pós-moderno de Maffesoli
e o apagamento das relações de poder


Fazendo um pouco da genealogia das propostas de Maffesoli é possível localizar, como matriz principal de sua abordagem do mundo contemporâneo, as idéias e pressupostos do positivismo. Sua preocupação com o equilíbrio, com a coesão social, com a explicação das formas pelas quais as sociedades contemporâneas construiriam a vinculação entre os indivíduos, o cimento do laço social, a consistência do vínculo social. Bebendo nessa fonte, Maffesoli trilha, obrigatoriamente, os passos da reflexão durkheimiana, ao mesmo tempo em que não pode evitar um saudosismo desbragado pelo velho comunitarismo. É claro que há nuanças que podem sinalizar para tentativas de "modernização" - ou diríamos "pós-modernização" - da idéia: não é mais o baixo nível de diferenciação social que dá a base para a solidariedade mecânica entre os homens. A aproximação, o estar junto depende agora de mecanismo de identificação estilística, sendo a própria solidariedade considerada mais em termos regionais do que macro-sociais.

Esse neopositivismo pós-moderno, como poderíamos classificar a proposta de análise de Maffesoli, mantém da proposta original dos positivistas franceses a secundarização do político e do econômico, quando se trata de construir reflexões sobre o mundo das relações sociais. Na discussão a respeito dos processos de coesão e de separação social, Maffesoli, assim como Durkheim e Comte faziam, não leva em consideração a influência do capital e do mercado, mesmo que sua lógica inexorável prevaleça de maneira tão totalizante em todos os setores da vida social, fazendo uma sociologia que ignora as implicações das relações de poder estabelecidas entre os homens. Isso pode contribuir para a hegemonia de uma visão conservadora da sociedade, caudatária das correntes funcionalistas.

Essa ausência básica - a da questão do poder -, produz uma análise da sociedade da imagem que parece ignorar as questões relativas às condições históricas em que se inscrevem a produção e a circulação do/ no mundo imaginal que, e aqui concordamos com Maffesoli, determina a maior parte da vida social contemporânea. É, sim, tarefa da sociologia debruçar-se sobre o crescente poder das imagens na constituição do mundo atual, tanto em referência à multiplicação e à velocidade com que se aperfeiçoam, em termos de tecnologia, os meios de comunicação, questionando as relações de produção e de circulação das imagens, colocando em discussão categorias como as de acessibilidade, conflito de interesses, ideologia, e outras relacionadas aos jogos de poder nos sistemas sociais.

Essa miopia em relação à questão do poder e de suas implicações nas relações sociais, impede Maffesoli de enxergar as possibilidades "disfuncionais" da imagem, se quiser nos manter nos limites da argumentação funcionalista. Junto com a função "religiosa" das imagens, mencionada acima, poderíamos discutir, por exemplo, fenômenos tais como o da produção concomitante da separação social, da exclusão, da discriminação e da geração, inclusive, de diversos tipos de particularismos.

Na ânsia de celebrar a imagem e sua função integrativa, Maffesoli opera [fim da página 74] como que uma "repressão", um "recalque" dos possíveis aspectos duvidosos do funcionamento do mundo "imaginal". De maneira, ao nosso ver, contraditória, por exemplo, afirma, no seu A Contemplação do Mundo, que não importando o conteúdo da imagem, ela sempre seria um vetor de produção da comunhão, já que funcionaria como meio para o compartilhar das emoções (Maffesoli, 1995: 93), ao mesmo tempo em que cita, falando a respeito do período de colonização espanhola no México: "Os colonizadores se dão conta de que sua vitória não seria total, ou simplesmente real, a não ser no momento em que suas imagens substituíssem aquelas honradas localmente" (1995: 93).

Outras visões do mesmo objeto estabelecem como ponto básico da contemporaneidade o fenômeno da explosão da visualidade, sem, no entanto, esquecer de incluir variáveis relativas ao exercício do poder na sociedade. Na visão de Jameson (1995; 1996), por exemplo, que também analisa a força da imagem na atualidade, a única maneira de entender adequadamente este momento pós-moderno, onde reina o visual, é considerando as condições históricas da emergência e prevalecimento desse novo regime. Em sua interpretação da pregnância da imagem nas sociedades contemporâneas, ele não hesita em focalizar categorias como as de alienação e dominação (5).

Na visão de Baudrillard (1994), outro autor que analisa o atual regime das imagens, a questão do poder se coloca de maneira significativa, na medida em que está associada à capacidade que grupos sociais proprietários de cadeias mundiais de meios de comunicação têm de estabelecer o hiper-real, um real descolado de qualquer substrato objetivo, sempre em relação à disseminação de versões do mundo, e do desenrolar da dinâmica das relações entre o os indivíduos, favoráveis à manutenção de estruturas de poder e de interesses (6).

A redução do escopo da sociologia

Um outro ponto bastante controverso da teoria e metodologia propostas por Maffesoli é sua concepção do escopo da sociologia. Segundo o autor, a atividade de reflexão sobre o social deveria reduzir-se ao fornecimento de descrições dos ambientes, dos cenários sociais, sempre em termos micro localizados. A concepção da sociologia como uma ciência capaz de formular interpretações mais gerais, com o intuito de dar conta das regularidades relativas à morfologia dos sistemas sociais, é substituída por uma proposta estética de [fim da página 75] ciência do social, preocupada em registrar, mais do que em explicar, o estilo das vivências dos indivíduos e coletividades (Maffesoli, 1998).

A proposta de abandonar a prática moderna da representação do mundo, bem como a estratégia racionalista de conceitualização e de construção de esquemas explicativos dos fenômenos, tanto em termos dos equilíbrios momentâneos, quanto em seus desenvolvimentos diacrônicos, elaborada por Maffesoli desde o seu O conhecimento ordinário, é acompanhada por um vocabulário que mistura um estilo místico-esotérico, propondo uma epistemologia impregnada de programas somente aparentemente revolucionários e inovadores.

Para exemplificar, citamos aqui duas sugestões pseudo-radicais que aparecem no seu Elogio da razão sensível (1998), e que, se examinadas mais detidamente, representam jóias de falso brilho, elementos ultraconservadores. A primeira delas, a proposta de resgatar a vivência como sendo um lugar de extremo dinamismo do social, em que a apresentação das coisas se empenharia em fazer sobressair a riqueza e a vitalidade. Isso é apresentado como um programa oposto ao executado pela sociologia clássica/tradicional, preocupada com a produção de uma reflexão racionalista e conceitual a respeito das estruturas sociais, das unidades sociais históricas, eventualmente com um caráter programático ou preditivo.

Ao nosso ver, a própria sociologia clássica está repleta de exemplos de valorização da vivência dos indivíduos, do cotidiano dos grupos sociais, inclusive como um lugar de observação privilegiado para a construção de conjuntos de conceitos e teorias a respeito do sistema social. Marx, por exemplo, parte da observação das condições em que viviam os operários para refletir sobre os traços da então recém surgida ordem capitalista de produção. Em Weber (1981), também encontramos a preocupação de entender de que maneira a relação dos indivíduos com determinados sistemas de valores se refletiam na adoção de certas práticas e vivências cotidianas.

Uma diferença básica, esta realmente relevante, é que, ao invés de adotar uma postura reducionista, revelada numa abordagem que recorta as vivências e o cotidiano como instâncias estanques da vida social, presas em suas próprias particularidades, como circunscrições autodeterminantes, os sociólogos clássicos eram capazes de produzir painéis amplos e profundos, no âmbito dos quais se localizavam e eram compreendidas as vivências e socialidades cotidianas (7). Longe de significar um desprezo pelo micro-espaço, pelas subjetividades, pela riqueza das experiências do dia-a-dia, a prática dos clássicos era o resultado da necessidade de entender a lógica que fundava, de maneira inescapável, a organização desse nível do sistema social, sem desconsiderar a importância da [fim da página 76] força das ações nessa instância, inclusive, para a reprodução ou eventual transformação dos aspectos estruturais da organização das sociedades.

A segunda proposta apenas aparentemente radical feita por Maffesoli, aqui brevemente considerada é aquela de "não transcender o que é manifesto, não aspirar a um além, mas, isto sim, de remeter-se às aparências, às formas que caem sob os sentidos" (Maffesoli, 2000: 20). Essa defesa da profundidade das aparências se traduz na condenação à estratégia proposta por Marx, de transcendência da aparência, do real abstrato e também numa crítica à psicanálise freudiana e lacaniana, em suas estratégias de escavação do sentido, através da transcendência das motivações aparentes pela pesquisa do inconsciente (Freud), e do não-dito (Lacan).

O que Maffesoli propõe, embora seja aparentemente revolucionário, quando considerado em termos epistemológicos, revela uma fragilidade evidente, na medida em que coloca em questão toda a base da atividade científica, que se fundamenta, em qualquer corrente teórica da reflexão sobre a produção do conhecimento rigoroso, num esforço da razão em uma polêmica incessante contra o erro, na intenção do desvendamento da opacidade do real, inclusive enquanto aparência cintilante. Mesmo no âmbito da fenomenologia, que privilegia o caráter epifenomenal da realidade, o esforço é no sentido de submeter as primeiras impressões, surgidas da projeção mental de dados que se originariam do contato com as superfícies dos fenômenos, com suas formas de aparecer aos sentidos dos sujeitos interpretadores do mundo e das coisas.

O reconhecimento do prevalecimento crescente da imagem na sociedade contemporânea, que em Maffesoli dá origem a uma série de reflexões no sentido da construção de sua divinização e hipervalorização, deve se constituir, para os interessados na interpretação dos tempos presentes, num objeto de intensa pesquisa e análise, com o objetivo de fornecer explicações capazes de desvendar os mecanismos e estratégias de poder acionados nesse regime do visual pelos diversos grupos sociais. Nesse sentido, uma abordagem interessante, que não descarta as variáveis relativas ao exercício do poder nas sociedades contemporâneas, é a de Fredric Jameson (1996), em seus estudos sobre o boom da cultura, tanto no que concerne ao mundo real, com o crescente espaço ocupado pelos meios de comunicação de massa no cotidiano das pessoas, o que transformaria, inclusive, a relação entre a infra-estrutura e superestrutura, a primeira sendo engolida pela segunda e transformada num produto para consumo como outro qualquer, quanto em termos da produção científica sobre a sociedade. Para ele, uma primeira providência a ser tomada pelos que se interessam em fornecer explicações teóricas sobre o reino das imagens, do visual seria uma abordagem referente às condições históricas de sua emergência, com a força que lhe é atribuída. Ele defende a idéia de que "a única maneira de pensar o visual, de inteirar-se de uma situação em que a visualidade é uma tendência cada vez mais abrangente, generalizada e difundida é compreender sua emergência histórica" (Jameson, 1995: 01).

Para Jameson, a atuação dos sociólogos deveria estar ligada à necessidade de fornecer elementos para a construção de mapas cognitivos (Jameson, 1988), que seriam novas propostas de abordagem capazes de fornecer aos indivíduos e grupos sociais elementos que possibilitem a localização individual e dos [fim da página 77] coletivos, nesse terreno fluido e pastoso do mundo das imagens, não devendo ser desprezadas categorias tais como a da ideologia e da alienação (8).

Como é possível perceber, a direção proposta por Jameson opõe-se frontalmente com a tendência clara observada na proposta de sociologia do contemporâneo esboçada por Maffesoli, que implica, entre outros elementos, na negação da reflexão de caráter utópico, relacionada com qualquer preocupação com a crítica dos arranjos sociais sob os quais os indivíduos vivem. A proposta de que sociologia deixe de odiar o presente (Maffesoli, 1996: 09), significa, na prática, uma proposta de prática científica que, para analisar a sociedade, abandone a construção de utopias e se debruce, de maneira resignada, sobre o contemporâneo. Essa idéia está presente em sua proposta de ética do instante, caracterizada pela justificação moral da busca do prazer imediato, pela rejeição de qualquer ativismo referido a projetos sociais para um momento longínquo. É como se os sociólogos, ao invés de tomar como matéria para estudo e explicação as características do imaginário e do cotidiano das sociedades contemporâneas, produzidas, inclusive, a partir da capacidade que alguns grupos têm de fazer privilegiados os seus interesses, devessem absorvê-las, reconhecendo seu estabelecimento e legitimação social como um processo inexorável de moldagem dos novos contornos do contexto em que vivem os indivíduos em sociedade e em que deveriam produzir os cientistas do social.

Essa postura de passividade, de contaminação resignada pelo espontaneísmo e hedonismo em que as sociedades mergulham, se traduz numa postura intelectual que vai abandonando, gradualmente, o projeto radical de produção da significação do mundo, que representou um dos elementos capazes de tornar a sociologia uma atividade de importância essencial, envolvendo, eventualmente, a atividade de criticar os modos de organização social historicamente determinados, bem como a tarefa de propor projetos de re-arranjos estruturais, capazes de produzir sociedades menos desiguais e injustas. A proposta de Maffesoli envolve, portanto, o risco de tornar a sociologia uma atividade descartável, já que ao abandonar a tarefa de formular interpretações mais gerais, capazes de dar conta de regularidades e de produzir esquemas conceituais explicativos da morfologia e dinâmica dos sistemas sociais, a prática científica dos cientistas da sociedade se reduziria ao papel de produzir descrições das transformações dos ambientes, sempre particulares e específicas - uma atividade desempenhada pelos jornalistas com crescente competência.

Mesmo advogando que a perspectiva imaginal permitira, por um lado, estar-se atento aos objetos e/ou eventos por si mesmos, em toda a sua concretude, sua presença e dinâmica própria (Maffesoli, 1996), poderíamos pensar também na possibilidade de que essa metodologia pode ter, como resultado implícito, a produção de uma sociologia que mascara seu caráter [fim da página 78] ideológico com uma reluzente discursividade imagética. Mas, como dizem alguns mais desconfiados, nem tudo que reluz é ouro!

Referências Bibliográficas

Notas

1) Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus II - Campina Grande).

2) No seu Homo academicus (1988), Bourdieu comenta que o pertencimento a algumas universidades de renome pode abrir as portas para autores que, sem isso, passariam completamente desapercebidos, já que perderiam a autoridade e a receptividade junto a editores e jornalistas.

3) E aqui Maffesoli se aproxima da visão de Baudrillard a respeito da deterioração do político, conforme apresentada, por exemplo em À Sombra das Maiorias Silenciosas (Baudrillard, 1994).

4) Em certa medida, como vemos acima, essa proposta retoma a prática de alguns autores que foram considerados marginais na sociologia, tais como o alemão Georg Simmel, que, comentando a respeito dos sociólogos tradicionais, que privilegiavam, em sua prática, somente aquilo que tinha o status de estável nos sistemas sociais, separando os fatos "estudáveis" dos "não estudáveis". Comentando a respeito desse estabelecimento do que é digno e do que é indigno da reflexão sociológica, Simmel diz:

"É conformar-se superficialmente com a linguagem usual, reservar o termos ‘sociedade’ para as ações recíprocas duráveis, particularmente para aquelas que são objetivadas em figuras uniformes, caracterizáveis, tais como a Igreja, o Estado, a Família, as Classes, os Grupos de Interesse e etc. Além desses exemplos, existe um número infinito de formas de relações e de modos de ações recíprocas entre os homens, de medíocre importância, e às vezes, até mesmo fúteis, se considerarmos os casos particulares, que, no entanto, contribuem para constitui a sociedade tal como a conhecemos, na medida em que elas penetram as formas sociais mais vastas e, por assim dizer, 'oficiais'" (Simmel, apud Moscovici, 1990: 253).

5) No seu trabalho Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson (1996), analisando o vídeo como uma forma privilegiada de comunicação, menciona o fenômeno do fluxo total, referente à velocidade com que as imagens são veiculadas, o que impediria qualquer operação racional por parte dos espectadores, o que impossibilitaria, segundo o autor citado, qualquer pretensão à constituição de uma rede de informações, a não ser que se pressuponham as categorias da ideologia e da alienação.

6) É exemplar a análise que Baudrillard faz da Guerra do Golfo, mostrando de que maneira o governo norte americano encenou o conflito através da televisão, de forma a apresentar o acontecimento como uma luta heróica contra um ditador monstruoso, apagando qualquer sinal de conflito de interesses pelo domínio do petróleo naquela região.

7) Martins, seguindo uma direção oposta à de Maffesoli, elabora uma proposta de sociologia do cotidiano que não ignora a determinação estrutural dessa instância. É exemplar seu estudo sobre os reflexos da ordenação social capitalista sobre o universo onírico dos trabalhadores, feito em São Paulo, partindo inclusive da reflexão a respeito da famosa frase de Marx, segundo a qual "os homens fazem a sua própria História, mas não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado" (Marx, apud Martins, 2000: 58).

8) Jameson, em sua interpretação da pregnância da imagem na sociedade, numa análise do vídeo como forma artística e de comunicação privilegiada na atual conjuntura, menciona o fenômeno do fluxo total, referente à velocidade com que as imagens são veiculadas, o que impediria qualquer operação racional por parte dos espectadores e impossibilitaria a comunicação em strictu senso, favorecendo a produção de processos crescentes de alienação dos indivíduos em relação à realidade em que estão imersos.


RESUMO
A TEORIA DO IMAGINÁRIO
E A PROPOSTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MICHEL MAFFESOLI


Neste artigo, apresentamos algumas das principais contribuições de Michel Maffesoli no campo da metodologia das ciências sociais em geral e, particularmente, da sociologia, e alguns aspectos de sua Teoria do Imaginário, fazendo, na parte final, algumas críticas a sua concepção do papel da imagem na determinação da dinâmica da vida social, bem como a sua proposta de análise sociológica das sociedades contemporâneas.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Sociológica; Maffesoli; Teoria do Imaginário.

ABSTRACT
THE THEORY OF THE IMAGINARY
AND THE MICHEL MAFFESOLI'S PROPOSAL OF SOCIAL SCIENCES


In this paper we present some of the main theoretical contributions of Michel Maffesoli in the field of Social Sciences Methodology and some elements of his Theory of Imaginary. In the final section we do a critique on some points of his conception on the role images play in determining the social life dynamic, and about his purpose of sociological analysis of contemporary societies.
KEYWORDS: Sociological Theory; Maffesoli; Theory of the Imaginary.





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Número 17 - set/2001  |   Universidade Federal da Paraíba  |   Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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