Copyright© 1985-2001 PPGS-UFPb. Todos os Direitos Reservados. Nenhuma cópia deste artigo pode ser distribuída eletronicamente, em todo ou em parte, sem a permissão estrita da revista Política & Trabalho. Este modo revolucionário de publicação depende da confiança mútua entre o usuário e o editor. O conteúdo dos artigos publicados é de inteira responsabilidade de seus autores.
Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 64-79
A TEORIA DO IMAGINÁRIO
E A PROPOSTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MICHEL MAFFESOLI
Lemuel Dourado Guerra (1)
Introdução
1) A valorização e a defesa de territórios, quer seja em termos físicos, quer seja no plano simbólico, o que é chamado pelo autor de tribalismo;
2) A ênfase na cultura dos sentimentos, observando-se uma forte centralidade das atividades que promovem encontros de pessoas, com o objetivo de se sentirem juntos, pela mediação do consumo de imagens comuns;
3) A estetização da vida, revelada numa preocupação acentuada dos indivíduos com a imagem em todos os setores da existência em sociedade;
4) A intensificação da busca do supérfluo, o aumento da preocupação com o inútil e a ênfase acentuada na busca do qualitativo;
5) A ênfase no estilo, que se institui enquanto linguagem, que por sua vez funciona como protocolo de agregação dos indivíduos a outros territórios e tribos diferentes dos de sua origem.
Como podemos ver, esse novo estilo, como apresentado por Maffesoli, aponta para uma vida social contemporânea desenvolvida bem ao largo dos imperativos político-econômicos, a partir dos segredos dos micro-grupos, da sociabilidade de vizinhanças, dos ambientes afetuosos das amizades, na viscosidade das aderências religiosas, sexuais, culturais, tudo isso ocorrendo pela mediação das imagens, que atuariam como catalisadores dos processos de constituição das redes de sociabilidade.
Esse novo desenho da vida em sociedade exigiria do cientista social algumas mudanças em termos de epistemologia, sem as quais, segundo Maffesoli, é impossível um entendimento claro da nova conjuntura. Dentre suas sugestões de transformação da metodologia dos cientistas da sociedade selecionamos algumas, que passamos a apresentar.
"Em toda a história, há um quarto de realidade, pelo menos três quartos de imaginação e (...) não é de maneira alguma sua parte imaginária que, em todos os tempos, agiu menos poderosamente sobre os homens." (Bakunin, apud Maffesoli, 1995: 12)
Como vemos, há um reconhecimento enfático da importância de considerar, nas explicações do mundo da cultura, o imaginário das sociedades, como já anteriormente definido por Maffesoli, que teria um papel de profunda importância na moldagem dos arranjos sociais sob os quais os indivíduos interagiriam.
Para habilitar-se à análise do vasto campo do imaginário, na qual a razão instrumental triunfante da modernidade pouco ou quase nada pode ajudar, seria necessário, segundo Maffesoli, uma verdadeira iniciação dos cientistas sociais. No lugar de produzir ou desvelar verdades já dadas, ou, ainda, fornecer receitas prontas para resolver problemas que atingem as sociedades em constante mutação, a sociologia deve preocupar-se mais em aprender a colocar problemas do que lhe dar soluções (1995: 12).
Assim, Maffesoli apresenta suas idéias a respeito dos limites da explicação científica referentes ao campo do social contemporâneo, que por ter seus limites determinados pela época, por uma determinada história,
"(...) só pode ser objeto de um discurso contrapontístico, feito de variações perpétuas, em torno de um objeto que não é, jamais, explicável em sua totalidade, e cuja ambição é extrair-lhe as características essenciais, delimitar-lhe os contornos e mostrar suas conseqüências no aqui e agora." (Maffesoli, 1995: 13)
É possível inferir, a partir da análise das obras de Maffesoli, os contornos de uma proposta de sociologia descritiva, que questiona radicalmente a idéia de ciência social comprometida, da qual é emblemática aquela de inspiração marxista, bem como as correntes caudatárias da influência comtiana e durkheimiana, que tomam para si a tarefa de fornecer remédios para as "patologias" da sociedade.
A defesa do infra-teórico
Para dar conta de uma socialidade forjada a partir da interação de todos os minúsculos elementos da vida social e produzida pelos efeitos do vasto domínio do imaginário coletivo que, apesar de não ser conscientemente pensado, é amplamente vivido e eficaz, Maffesoli propõe uma sociologia barroca, ou, em outras palavras, uma ciência social das pequenas coisas, que entram em interação, resultando na sociedade complexa que conhecemos. Nesse sentido, ele ressalta:
"É importante notar que essa sociedade complexa repousa sobre um conjunto de valores que, não tendo direito à cidade na vida social, quando muito são acantonados na ordem do privado. Além disso, não se lhes confere nenhuma dignidade acadêmica. Esse era o caso daquilo que se relaciona com o ‘comunitarismo’, com o cotidiano, com o localismo, com o presente, com o passado, e, evidentemente, certamente com o imaginário, sob suas diversas modulações." [fim da página 71] (Maffesoli, 1995: 14)
Assim, um amplo campo de questões e temas - considerados pela sociologia tradicional como indignos de teorização, como se estivesses fora do âmbito da reflexão científica -, passa a ser o lugar privilegiado para a análise sociológica, sendo o método maffesoliano uma proposta de exercício de especial atenção ao anódino, ao que não é (ou é pouco) analisado (Maffesoli, 1995: 112). O banal, o marginal, o infrateórico, são defendidos pelo autor como a parte nobre da realidade, que necessita ser olhada, sendo reabilitados temas ligados ao cotidiano, o elementos constitutivos do imaginário, as coisas presentes, as redes que compõem o local, as dobras infinitas da comunidade (4).
A sociologia da imagem
Para Maffesoli, a crescente importância da imagem na sociedade contemporânea exige dos cientistas sociais algumas posturas diferentes das assumidas tradicionalmente. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer a pregnância da imagem no social; em segundo lugar, é necessário abandonar os preconceitos quanto à imagem, ao imaginário, ao imaginal; em terceiro lugar, é imperativo abandonar qualquer análise baseada em categorias clássicas tais como modo de produção, classe social, partido político e outras dessa natureza.
Essa proposta de programa mínimo para o exercício competente da análise social em geral e sociológica, em particular requer um esforço adaptativo significativo. Os cientistas sociais, acostumados à rejeição do não-consciente, do não-racional, do domínio da comunicação não-verbal, são chamados, nesta proposta maffesoliana, a treinar um novo tipo de olhar sobre o social, fundamentado na consideração corajosa da aparência, do visual, do nível epifenômenico, todos esses dados do mundo real contemporâneo. Assim, a realidade a ser estudada pelos cientistas da sociedade é constituída pelo onírico, pelo lúdico, pelas fantasias, que, segundo Maffesoli, agem profundamente sobre o social.
A partir das idéias de que o fundamento principal da coletividade, do vínculo social, do estar-junto em sociedade e a imagem, Maffesoli crê que a [fim da página 72] desconfiança diante do mundo imaginal (= imagem + simbólico + imaginário + imaginação), que foi um importante trunfo para a hegemonização da racionalidade moderna, seria totalmente inadequada para apreender o atual momento pós-moderno que vivemos. Em sua visão, a imagem, a aparência, o epifenômeno, todos são suficientemente eficazes na expressão da hiper-racionalidade pós-moderna, feita de sonhos, do lúdico, do onírico e de fantasias (Maffesoli, 1995: 94).
Como alternativa metodológica à ciência social moderna, Maffesoli sugere a união do rigor científico com a sensibilidade colhida na vivência do cotidiano, proposta nos trabalhos de Tacussel; o método da Mitanálise, de Gilbert Durand, elaborando uma proposta de análise sociológica que: 1) parta da tomada de consciência da pluralidade do real; 2) que substitua a análise das mudanças sociais atuais baseadas no econômico e no político, por análises que enfatizem o poder da imagem viva; 3) que defenda a ilustração e leve a sério o jogo das imagens, tudo como forma de restabelecer a antiga globalidade, onde não estavam separadas as palavras e as coisas, a natureza e a cultura, o corpo do espírito, a razão do sentimento (Maffesoli, 1995: 96).
A imagem e sua pregnância no social seriam então o objeto por excelência da sociologia: a imagem isolada; a imagem em decomposição; a imagem tradicional; a imagem "tecnologizada". Todos esses matizes funcionariam como índices de tendências sociais, não analisáveis através dos instrumentos da sociologia tradicional.
Por uma sociologia polissêmica
Para Maffesoli, o tempo dos grandes sistemas teóricos acabou. Assim, como a socialidade pós-moderna é ambígua, a reflexão científica a seu respeito também deve sê-lo, sendo freqüentemente mais "mostrativa" do que explicativa, mais digressiva do que objetiva, sendo construída de maneira polissêmica.
Três seriam os elementos básicos dessa nova proposta de sociologia: 1) é produzida a partir da consideração do jogo das imagens; 2) defende e utiliza o mecanismo da ilustração - em oposição ao de verificação; 3) produz descrições, nomeia, sem produzir sistemas de conceitos e teorias.
Maffesoli sugere também que, no lugar dos julgamentos de valor, a ciência social deve produzir "julgamentos de existência", que seriam matizados, temperados, relativos e frágeis, tais como os fenômenos por eles descritos (Maffesoli, 1996: 11). As análises clássicas dos objetos de estudo devem ser substituídas pela prática de elaborar cenários, descrevendo ambientes onde ocorre os fenômenos estudados, construídos sempre a partir da escuta da voz do objeto, que vai induzir as escolha dos ângulos a serem focalizados pelo cientista.
Essa proposta de analítica sociológica de base fenomenológica e polissêmica parte do pressuposto da confiabilidade das evidências do objeto - o que se deixa ver e o fato de ver seriam suficientes - , da profundidade da aparência (Maffesoli, 1996).
[fim da página 73]
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Cambridge, U.K.: Polity Press, 1988.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
JAMESON, Fredric. "Cognitive mapping". In: NELSON, Cary & GROSSBERG, Lawrence (eds). Marxism and the interpretation of culture. Chicago: University of Illinois Press, 1988.
________________. As marcas do visível. Trad. Roneide Venâncio Majer et al. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
________________. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.
MAFFESOLI, Michel. La connessance ordinaire: précis de sociologie compréhensive. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1985.
_________________. Au creux des apparences. Paris: Le Livre de Poche, 1993.
_________________. Le temps du tribus. Paris: Le Livre de Poche, 1993.
_________________. A contemplação do mundo. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
_________________. O elogio da razão sensível. Trad. Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrópolis: Vozes, 1998.
MOSCOVICI, S. A máquina de fazer deuses. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
Notas
"É conformar-se superficialmente com a linguagem usual, reservar o termos ‘sociedade’ para as ações recíprocas duráveis, particularmente para aquelas que são objetivadas em figuras uniformes, caracterizáveis, tais como a Igreja, o Estado, a Família, as Classes, os Grupos de Interesse e etc. Além desses exemplos, existe um número infinito de formas de relações e de modos de ações recíprocas entre os homens, de medíocre importância, e às vezes, até mesmo fúteis, se considerarmos os casos particulares, que, no entanto, contribuem para constitui a sociedade tal como a conhecemos, na medida em que elas penetram as formas sociais mais vastas e, por assim dizer, 'oficiais'" (Simmel, apud Moscovici, 1990: 253).
5) No seu trabalho Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson (1996), analisando o vídeo como uma forma privilegiada de comunicação, menciona o fenômeno do fluxo total, referente à velocidade com que as imagens são veiculadas, o que impediria qualquer operação racional por parte dos espectadores, o que impossibilitaria, segundo o autor citado, qualquer pretensão à constituição de uma rede de informações, a não ser que se pressuponham as categorias da ideologia e da alienação.
6) É exemplar a análise que Baudrillard faz da Guerra do Golfo, mostrando de que maneira o governo norte americano encenou o conflito através da televisão, de forma a apresentar o acontecimento como uma luta heróica contra um ditador monstruoso, apagando qualquer sinal de conflito de interesses pelo domínio do petróleo naquela região.
7) Martins, seguindo uma direção oposta à de Maffesoli, elabora uma proposta de sociologia do cotidiano que não ignora a determinação estrutural dessa instância. É exemplar seu estudo sobre os reflexos da ordenação social capitalista sobre o universo onírico dos trabalhadores, feito em São Paulo, partindo inclusive da reflexão a respeito da famosa frase de Marx, segundo a qual "os homens fazem a sua própria História, mas não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado" (Marx, apud Martins, 2000: 58).
8) Jameson, em sua interpretação da pregnância da imagem na sociedade, numa análise do vídeo como forma artística e de comunicação privilegiada na atual conjuntura, menciona o fenômeno do fluxo total, referente à velocidade com que as imagens são veiculadas, o que impediria qualquer operação racional por parte dos espectadores e impossibilitaria a comunicação em strictu senso, favorecendo a produção de processos crescentes de alienação dos indivíduos em relação à realidade em que estão imersos.
RESUMO
A TEORIA DO IMAGINÁRIO
E A PROPOSTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MICHEL MAFFESOLI
Neste artigo, apresentamos algumas das principais contribuições de Michel Maffesoli no campo da metodologia das ciências sociais em geral e, particularmente, da sociologia, e alguns aspectos de sua Teoria do Imaginário, fazendo, na parte final, algumas críticas a sua concepção do papel da imagem na determinação da dinâmica da vida social, bem como a sua proposta de análise sociológica das sociedades contemporâneas.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Sociológica; Maffesoli; Teoria do Imaginário.
ABSTRACT
THE THEORY OF THE IMAGINARY
AND THE MICHEL MAFFESOLI'S PROPOSAL OF SOCIAL SCIENCES
In this paper we present some of the main theoretical contributions of Michel Maffesoli in the field of Social Sciences Methodology and some elements of his Theory of Imaginary. In the final section we do a critique on some points of his conception on the role images play in determining the social life dynamic, and about his purpose of sociological analysis of contemporary societies.
KEYWORDS: Sociological Theory; Maffesoli; Theory of the Imaginary.