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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 46-63
A TEORIA DO CAPITAL SOCIAL
NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Jacob Carlos Lima (1)
O conceito de capital social tem sido amplamente utilizado na sociologia norte-americana para demonstrar a importância das redes sociais informais na construção de relações sociais e de formas de sociabilidade nas quais interesses pessoais e coletivos se imbricam. A existência desse "capital" se constituiria, igualmente, em importante indicador de participação política através do estabelecimento ou consolidação de relações de confiança entre sociedade e Estado, o que o tornaria elemento crucial a ser mobilizado na implementação de políticas públicas, podendo explicar o êxito ou fracasso dessas políticas.
Capital social pode ser entendido como o conjunto de normas de reciprocidade, informação e confiança presentes nas redes sociais informais desenvolvidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana, resultando em numerosos benefícios diretos ou indiretos, sendo determinante na compreensão da ação social. O conceito incorpora diversas tradições sociológicas, estando presente no pensamento de Durkheim através do estudo da interiorização das normas sociais e sua funcionalidade; em Tönnies na análise do papel integrativo da comunidade; em Marx na compreensão da construção da solidariedade de classe; em Weber na explicação do sentido da ação; em Simmel na caracterização da sociabilidade na metrópole, para ficarmos apenas nos clássicos. Apesar de não se constituir propriamente numa novidade teórica, a partir dos anos 80, assume nova dimensão na recuperação das conseqüências positivas da sociabilidade e das relações não monetárias presentes na sociedade (Portes, 1998).
Na análise de fenômenos macro-sociais, sua utilização vincula o funcionamento das instituições econômicas e políticas a questões culturais constituídas a partir da interação social dos indivíduos. Destaca ainda a importância da construção de uma sinergia Estado-Sociedade no bom funcionamento das instituições democráticas, constituindo-se, assim, numa perspectiva alternativa às análises que privilegiam ora a atuação estatal, ora a atuação do mercado no estudo do desenvolvimento sócio-econômico. No espectro político que vai da direita, em autores como Fukuyama (1995), à esquerda em autores como Burawoy (1997) e Evans (1997), passando por recomendações do Banco Mundial acerca de políticas de desenvolvimento, a "mobilização" do capital social de uma comunidade ou sociedade passou a ser considerada um fator positivo no fortalecimento da participação popular nas instituições políticas num contexto de crise das utopias e de pensamento único, no qual o Estado é visto como grande vilão. Essa "mobilização" refere-se à utilização dos recursos organizacionais e associativos, formais e informais, existentes na sociedade civil no planejamento e execução de políticas públicas.
Recusando o caráter liberal presente nas propostas segundo as quais a [fim da página 46] comunidade deveria procurar suas saídas sem esperar nada do Estado, autores como Putnan (1993, 1993 a,1995,1996) e Evans (1997), destacaram a importância da existência de regras claras e estáveis nas relações Estado-Sociedade e um aparelho estatal eficiente no atendimento das necessidades sociais. Essas regras refletiriam um capital social acumulado à disposição da sociedade. As sociedades mais avançadas apresentariam maior capital social, todavia, a potencialidade de sua construção em países em desenvolvimento seria grande e se constituiria num desafio a ser enfrentado (Evans 1997).
A existência de capital social na sociedade não significa, necessariamente, sua utilização, ou o êxito de políticas públicas nele baseadas. As mesmas políticas podem funcionar num lugar e não funcionar em outro, dependendo da forma de como esse capital é mobilizado ou construído. Assim o capital social pode ser entendido como um recurso potencial. Putnam (1993, 1993 a), em trabalho referência sobre o tema, analisando o caso italiano, procurou demonstrar, a partir do estudo das diferenças políticas e econômicas entre norte e sul, a relevância do engajamento cívico - a participação dos cidadãos nas várias instâncias organizacionais da sociedade civil - no funcionamento de instituições democráticas e na criação uma sinergia Estado-Sociedade. Evans (1997) citou exemplos brasileiros de construção exitosa de capital social em países em desenvolvimento, que poderiam explicar o sucesso de algumas políticas implementadas.
Neste artigo apresentamos uma breve introdução do conceito, em sua utilização recente e também sua operacionalização na análise de políticas públicas no Brasil. Especificamente, referimo-nos a duas situações que poderiam ser consideradas de mobilização ou de construção do capital social em políticas desenvolvidas pelo Estado do Ceará, nos anos 90, e que tiveram resultados diametralmente opostos: a política de agentes comunitários de saúde, estudada por Tendler (1998) e citada por Evans (1997) como exemplo da construção de capital social em países em desenvolvimento; e a fracassada política de instalação de cooperativas de produção industrial na segunda metade da mesma década. Nossa proposta é apresentar um exemplo de situação exitosa na construção da sinergia entre Estado e Sociedade e, outro em que, embora parte significativa das condições fosse similar, essa sinergia inexistiu. As duas situações permitem visualizar a aplicabilidade do conceito e seus limites na análise de políticas implementadas.
Nosso objetivo é introduzir o conceito de capital social ilustrando-o com experiências concretas de políticas públicas nas quais esse capital se constituiria em elemento sinérgico das relações Estado-Sociedade, sem contudo esgotar a discussão ou recuperar todo o debate acerca de sua utilização.
"(...) se A faz alguma coisa para B, confia que B responderá reciprocamente no futuro; isto estabelece uma expectativa em A e uma obrigação por parte de B. Esta obrigação pode ser entendida com um crédito potencial mantido por A em relação ao desempenho de B. Se A mantém uma grande quantidade destes créditos potenciais, [fim da página 49] para um número de pessoas que se relacionam com A, então, a analogia com o capital financeiro é direta. Estes créditos passam a constituir um passivo ao qual A pode recorrer se necessário - a menos, é claro, se a aposta na confiança tenha sido imprudente, e estes sejam débitos ruins que não poderão ser reembolsados." (1988: 102)
Nesta perspectiva, para que funcione, essa forma de capital social depende da confiabilidade no meio social circundante, significando que essas obrigações serão pagas, o que, de fato é a garantia que mantém essas relações. As estruturas sociais funcionam distintamente, fazendo com que um mesmo indivíduo aja diferentemente em estruturas sociais diversas, gerando graus de confiança desiguais e aumentando os riscos desse "capital". Em outros termos o capital social depende da estabilidade das instituições e sua ruptura implica na perda desse capital, com o fim das regras e normas aceitas socialmente.
A informação é considerada uma forma de capital social por ser concernente às relações sociais, através das trocas permanentes entre os indivíduos, provendo a base para a ação social. Como exemplo, Coleman cita a uma notícia de jornal que é passada a um amigo que não tinha prestado atenção a algo que lhe seria importante. Ou ainda, as informações que são trocadas entre familiares e conhecidos sobre empregos e oportunidades diversas. A aquisição dessa base, todavia é custosa, exigindo atenção permanente. O uso das informações e sua manutenção nas relações fazem com que estas possam ser utilizadas para diversos propósitos.
As normas e sanções sociais, quando efetivas, constituem-se em importante forma de capital social no interesse da coletividade. Por norma social entende-se desde a norma interiorizada no sentido durkheimiano, até a norma externa imposta pela efetiva repressão de atitudes individuais que vão contra os interesses da comunidade. Constitui-se em instrumento eficaz na manutenção do controle social agindo, por exemplo, na inibição do crime, pela sua repressão direta ou constrangimento de comportamentos (4). Por outro lado, podem facilitar o desenvolvimento de movimentos sociais (pela aplicação das normas ou por sua abolição), de atividades mutualistas (na provisão de bens escassos), e na chamada boa governança, ou seja, políticas públicas voltadas ao interesse do conjunto da sociedade.
Ainda segundo Coleman, tal como o capital físico e humano, o capital social sofre depreciação caso não seja permanentemente renovado. A criação, manutenção e destruição do capital social dependem fortemente de elementos tais como "closure": relações de confiança e proximidade existentes, por exemplo, entre empresas que podem resultar em preços fixos em suas relações comerciais, ou entre clientes de empresas que podem se organizar para boicotar preços ou produtos. Um "capital" precioso seja na realização objetivos comuns, seja na defesa de grupos com menor poder econômico contra grupos mais poderosos.
Ambos os aspectos, objetivos comuns e defesa de grupos, integram a chamada "Appropriable Social Organization". Trata-se de um capital acumulado resultante da existência de organizações voluntárias que possibilitam o desenvolvimento de formas de negociação ou resistência a grupos mais [fim da página 50] poderosos economicamente, ou organizações voltadas à resolução de um problema social específico. Com a resolução do problema, a comunidade passa a dispor de capital social para utilizar em outros propósitos. Um exemplo é a organização dos moradores de um conjunto habitacional visando enfrentar a empresa construtora do conjunto, que deixou de cumprir sua parte no contrato de compra ao utilizar material de má-qualidade que comprometia as casas construídas. Frente ao poder econômico, a organização pode obter uma série de sucessos parciais ou totais na luta contra a empresa. Encerrada a reclamação, os moradores teriam acumulado capital social decorrente da experiência organizacional anterior e das relações de confiança estabelecidas entre os moradores que participaram do movimento, capital que estaria disponível para ser utilizado em outras situações.
Por fim, existiriam as organizações intencionais que pressupõem regras aceitas a priori pelo conjunto dos participantes, visando a fins determinados, com permanência maior ou menor.
Podemos afirmar, a partir de análise de Coleman, que confiança resulta de normas de reciprocidade, presentes nos processos de socialização e das sanções implícitas ou explícitas nesses processos. As normas, por sua vez, transferem o direito de controle da ação de um ator para outros, porque a ação é marcada por externalidades, com conseqüências positivas ou negativas.
A confiança construída por meio de redes sociais e de relações pessoais resulta da interiorização de normas de reciprocidade ou, para utilizar o termo cunhado por Granovetter (1995), embeddedness. Embeddedness (numa tradução literal, alguma coisa encravada, fixada, firmemente estabelecida) permeia as relações econômicas, situação pouco alterada com a modernização ou racionalização das sociedades modernas. Ou seja, as relações sociais, antes (ou mais que) os arranjos institucionais ou a moralidade generalizada, seriam as principais responsáveis pela produção de confiança na vida econômica. Essa confiança explicaria a maioria das transações econômicas, as quais pressupõem o conhecimento prévio dos parceiros e a observância de regras morais entre eles. O mesmo ocorre no mercado de trabalho, no qual mais de 50% das colocações dependem de redes sociais e das informações privilegiadas que estas fornecem.
Portes (1998), revisando a bibliografia sobre o tema, afirma que existiriam três funções básicas do capital social que podem ser aplicadas em contextos diversos: a primeira, como fonte de controle social; a segunda, como fonte de apoio familiar e a terceira, como acesso a benefícios através de redes sociais extrafamiliares. Essas funções extrapolam pequenos grupos e podem ser analisadas em contextos mais amplos, como veremos a seguir.
BOURDIEU Pierre. "The forms of capital". In: RICHARDSON, J. G. (ed.). Handbook of theory and research for the sociology of education. New York: Greenwood Press, 1986.
[fim da página 61]
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Notas
RESUMO
A TEORIA DO CAPITAL SOCIAL
NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Neste artigo apresentamos uma discussão introdutória do conceito de "capital social" amplamente utilizado na sociologia norte-americana, principal-mente pela chamada 'sociologia econômica do desenvolvimento'. O conceito refere-se a características presentes nas redes sociais informais desenvolvidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana, normas de reciprocidade, informação e confiança, que podem resultar em numerosos benefícios diretos ou indiretos, em termos pessoais e coletivos. Seu alcance propicia desde o estudo de família e grupos sociais restritos, até situações macro presentes em sociedades complexas, permitindo a compreensão do funcionamento de instituições e políticas implementadas. Como modelo de sua aplicação na análise de políticas sociais, apresentamos dois programas sociais desenvolvidos pelo governo do Estado do Ceará, que possuem as condições da chamada "mobilização do capital social", discutindo seus resultados.
PALAVRAS-CHAVE: Capital Social; Redes sociais; Regras e Normas Sociais; Engajamento Cívico.
ABSTRACT
THE SOCIAL CAPITAL THEORY
IN THE ANALYSIS OF PUBLIC POLITICS
This paper aims to present an introduction of "social capital" concept, with large use in the North American Sociology, mainly in the so-called 'Sociology of Economic Development'. It is composed of the norms of reciprocity, information and truth, within the informal social networks developed for individuals in their daily life. Social capital can have many direct and indirect benefits for individuals both personally and collectively. In this paper are analyzed two polices developed by the government of Ceará. The mobilization of Social Capital in these policies is assessed and their result.
KEYWORDS: Social Capital; Social Nets; Rules and Social Norms; Civic Engagement.