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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 46-63


A TEORIA DO CAPITAL SOCIAL
NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Jacob Carlos Lima (1)

O conceito de capital social tem sido amplamente utilizado na sociologia norte-americana para demonstrar a importância das redes sociais informais na construção de relações sociais e de formas de sociabilidade nas quais interesses pessoais e coletivos se imbricam. A existência desse "capital" se constituiria, igualmente, em importante indicador de participação política através do estabelecimento ou consolidação de relações de confiança entre sociedade e Estado, o que o tornaria elemento crucial a ser mobilizado na implementação de políticas públicas, podendo explicar o êxito ou fracasso dessas políticas.

Capital social pode ser entendido como o conjunto de normas de reciprocidade, informação e confiança presentes nas redes sociais informais desenvolvidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana, resultando em numerosos benefícios diretos ou indiretos, sendo determinante na compreensão da ação social. O conceito incorpora diversas tradições sociológicas, estando presente no pensamento de Durkheim através do estudo da interiorização das normas sociais e sua funcionalidade; em Tönnies na análise do papel integrativo da comunidade; em Marx na compreensão da construção da solidariedade de classe; em Weber na explicação do sentido da ação; em Simmel na caracterização da sociabilidade na metrópole, para ficarmos apenas nos clássicos. Apesar de não se constituir propriamente numa novidade teórica, a partir dos anos 80, assume nova dimensão na recuperação das conseqüências positivas da sociabilidade e das relações não monetárias presentes na sociedade (Portes, 1998).

Na análise de fenômenos macro-sociais, sua utilização vincula o funcionamento das instituições econômicas e políticas a questões culturais constituídas a partir da interação social dos indivíduos. Destaca ainda a importância da construção de uma sinergia Estado-Sociedade no bom funcionamento das instituições democráticas, constituindo-se, assim, numa perspectiva alternativa às análises que privilegiam ora a atuação estatal, ora a atuação do mercado no estudo do desenvolvimento sócio-econômico. No espectro político que vai da direita, em autores como Fukuyama (1995), à esquerda em autores como Burawoy (1997) e Evans (1997), passando por recomendações do Banco Mundial acerca de políticas de desenvolvimento, a "mobilização" do capital social de uma comunidade ou sociedade passou a ser considerada um fator positivo no fortalecimento da participação popular nas instituições políticas num contexto de crise das utopias e de pensamento único, no qual o Estado é visto como grande vilão. Essa "mobilização" refere-se à utilização dos recursos organizacionais e associativos, formais e informais, existentes na sociedade civil no planejamento e execução de políticas públicas.

Recusando o caráter liberal presente nas propostas segundo as quais a [fim da página 46] comunidade deveria procurar suas saídas sem esperar nada do Estado, autores como Putnan (1993, 1993 a,1995,1996) e Evans (1997), destacaram a importância da existência de regras claras e estáveis nas relações Estado-Sociedade e um aparelho estatal eficiente no atendimento das necessidades sociais. Essas regras refletiriam um capital social acumulado à disposição da sociedade. As sociedades mais avançadas apresentariam maior capital social, todavia, a potencialidade de sua construção em países em desenvolvimento seria grande e se constituiria num desafio a ser enfrentado (Evans 1997).

A existência de capital social na sociedade não significa, necessariamente, sua utilização, ou o êxito de políticas públicas nele baseadas. As mesmas políticas podem funcionar num lugar e não funcionar em outro, dependendo da forma de como esse capital é mobilizado ou construído. Assim o capital social pode ser entendido como um recurso potencial. Putnam (1993, 1993 a), em trabalho referência sobre o tema, analisando o caso italiano, procurou demonstrar, a partir do estudo das diferenças políticas e econômicas entre norte e sul, a relevância do engajamento cívico - a participação dos cidadãos nas várias instâncias organizacionais da sociedade civil - no funcionamento de instituições democráticas e na criação uma sinergia Estado-Sociedade. Evans (1997) citou exemplos brasileiros de construção exitosa de capital social em países em desenvolvimento, que poderiam explicar o sucesso de algumas políticas implementadas.

Neste artigo apresentamos uma breve introdução do conceito, em sua utilização recente e também sua operacionalização na análise de políticas públicas no Brasil. Especificamente, referimo-nos a duas situações que poderiam ser consideradas de mobilização ou de construção do capital social em políticas desenvolvidas pelo Estado do Ceará, nos anos 90, e que tiveram resultados diametralmente opostos: a política de agentes comunitários de saúde, estudada por Tendler (1998) e citada por Evans (1997) como exemplo da construção de capital social em países em desenvolvimento; e a fracassada política de instalação de cooperativas de produção industrial na segunda metade da mesma década. Nossa proposta é apresentar um exemplo de situação exitosa na construção da sinergia entre Estado e Sociedade e, outro em que, embora parte significativa das condições fosse similar, essa sinergia inexistiu. As duas situações permitem visualizar a aplicabilidade do conceito e seus limites na análise de políticas implementadas.

Nosso objetivo é introduzir o conceito de capital social ilustrando-o com experiências concretas de políticas públicas nas quais esse capital se constituiria em elemento sinérgico das relações Estado-Sociedade, sem contudo esgotar a discussão ou recuperar todo o debate acerca de sua utilização.

A origem do conceito: redes sociais informais, normas e confiança

Entre os autores considerados pioneiros na utilização do conceito na sociologia atual, quatro são considerados referências obrigatórias: Pierre Bourdieu (1986), Glenn Loury (1981), James Coleman (1988, 1990) e Robert Putnam (1993,1993a,1995,1996)(2), que em linhas gerais, definem capital social [fim da página 47] por sua função, incorporando uma variedade de relações presentes na estrutura social que facilitam ações dos indivíduos participantes dessa estrutura. O conceito, portanto, refere-se a relações entre pessoas, não necessariamente percebidas imediatamente, que favorecem o acesso a recursos presentes na sociedade.

Tal como outras formas de capital, o capital social seria produtivo mas, diferente dos outros, seria inerente às relações entre as pessoas e não necessariamente positivo para todas elas. Em outras palavras, seria composto por redes sociais informais entre indivíduos, e por formas de sociabilidade representadas pela vida associativa na família, na igreja, na escola e no trabalho. Estas favorecem, por exemplo, a continuação de negócios em determinados ramos e mercados, legais ou não; a obtenção de empregos pela indicação de conhecidos para ocuparem postos de trabalho disponíveis; a resolução de questões individuais nos problemas do cotidiano. Mesmo com a crescente racionalização da vida moderna, as relações pessoais continuariam a ser determinantes na construção da sociabilidade, relações estas que podem ser utilizadas de forma positiva na implementação de programas sociais, daí serem consideradas um capital disponível na sociedade.

As redes sociais pressuporiam a observância de normas de reciprocidade e confiança, de um conjunto de obrigações mútuas entre as pessoas, que integra o próprio cerne dessas relações, facilitando, dessa forma, a atividade produtiva. Sua função estaria em seu valor para os atores na estrutura social como recurso que pode ser utilizado na realização de seus interesses. Sua positividade, entretanto, pressupõe que o indivíduo participe de redes relativamente amplas, o que depende de sua inserção na estrutura de classe que vai estabelecer a qualidade dos benefícios recebidos. O fato de estar fora das redes é um fator negativo desse capital, já que estas terminam por limitar o acesso de outras pessoas a seus recursos. Como exemplo, podemos citar ramos de negócios controlados por grupos étnicos que monopolizam o comércio de determinadas mercadorias em algumas cidades, restringindo o acesso de parceiros de fora das redes construídas na comunidade.

Segundo Portes (1998), a primeira análise sistemática do capital social foi realizada por Bourdieu (1986), que define o conceito como o agregado do atual ou potencial recurso ligado à posse de uma forte rede social, de relações mais ou menos institucionalizadas de compromisso e reconhecimento mútuo. Os benefícios que revertem pela participação em um determinado grupo são tornados possíveis pelas bases da solidariedade. O capital social pode ser decomposto entre dois elementos: o primeiro deles seria o conjunto das próprias relações que permitiriam aos indivíduos reivindicar os recursos comuns aos participantes; o segundo, a quantidade e qualidade dos recursos. Apesar de enfatizar a intercambialidade das diferentes formas de capital (econômico, cultural e social), o capital econômico (trabalho humano acumulado) seria a base dos outros capitais. Entretanto, existira uma circularidade em que, a partir do capital social, os atores podem ter acesso direto a recursos econômicos (através de acesso privilegiado a mercados, pelo acesso à informação) e aumentar seu capital cultural (idem). Todavia ele é pensado, primariamente, como capital econômico.

[fim da página 48]

Outro autor, o economista Glenn Loury (1981), utiliza o conceito a partir de uma crítica às teorias das desigualdades raciais e às políticas delas decorrentes nos EUA. Para ele, as proibições legais contra a discriminação racial no emprego e a implementação de programas de oportunidades iguais não eliminariam as desigualdades. Primeiro, pelo environment em que vive a população negra, caracterizado pela pobreza, que tenderia a reproduzir para as crianças as limitadas oportunidades econômicas e culturais dos pais; segundo, pelas fracas conexões dos jovens negros com o mercado de trabalho e falta de informação sobre oportunidades. Em outros termos, o acesso diferenciado aos bens materiais e simbólicos decorre das limitadas redes sociais e, conseqüentemente, do baixo capital social dessa população.

Em Coleman (1988, 1990), o ponto de partida da teoria sobre o capital social é a teoria da escolha racional (3), embora rejeitando o individualismo extremo presente nela. Como base de sua análise teve a pesquisa realizada com estudantes secundários, de diversas gerações, na Chicago nos anos 60, em que procurava identificar a influência dos estudantes mais velhos sobre os mais jovens em questões de participação social, liderança e participação em clubes recreativos. Para ele, existiriam duas grandes correntes intelectuais na descrição e explanação da ação social. Uma delas, que caracterizaria o trabalho da maioria dos sociólogos, considerava o ator socializado e a ação determinada por normas sociais, regras e obrigações. A principal virtude dessa corrente estaria na habilidade de descrever a ação em seu contexto social e explicar a ação como constrangida e direcionada pelo contexto social. A outra corrente, predominante entre os economistas, veria o ator com objetivos independentes e inteiramente voltados aos seus interesses privados. Sua principal virtude estaria no princípio da ação entendida como maximização utilitária, defendendo a inclusão, no desenvolvimento da teoria sociológica, de componentes das duas correntes: a aceitação do princípio da ação racional ou ação propositiva e a tentativa de apresentar como este princípio, em determinado contexto social, pode contar não somente com a ação de indivíduos em contextos particulares mas também no desenvolvimento da organização social. Em sua concepção, capital social é um recurso presente na ação, introduzindo a estrutura social no paradigma da ação racional (1988, 1990).

Coleman examinou algumas formas que o capital social assumiria: obrigações e expectativas; confiabilidade das estruturas; canais de informação e normas sociais. As obrigações e expectativas constituem o relacionamento entre os indivíduos e podem ter uma analogia com o capital financeiro. Nas palavras do autor:

"(...) se A faz alguma coisa para B, confia que B responderá reciprocamente no futuro; isto estabelece uma expectativa em A e uma obrigação por parte de B. Esta obrigação pode ser entendida com um crédito potencial mantido por A em relação ao desempenho de B. Se A mantém uma grande quantidade destes créditos potenciais, [fim da página 49] para um número de pessoas que se relacionam com A, então, a analogia com o capital financeiro é direta. Estes créditos passam a constituir um passivo ao qual A pode recorrer se necessário - a menos, é claro, se a aposta na confiança tenha sido imprudente, e estes sejam débitos ruins que não poderão ser reembolsados." (1988: 102)

Nesta perspectiva, para que funcione, essa forma de capital social depende da confiabilidade no meio social circundante, significando que essas obrigações serão pagas, o que, de fato é a garantia que mantém essas relações. As estruturas sociais funcionam distintamente, fazendo com que um mesmo indivíduo aja diferentemente em estruturas sociais diversas, gerando graus de confiança desiguais e aumentando os riscos desse "capital". Em outros termos o capital social depende da estabilidade das instituições e sua ruptura implica na perda desse capital, com o fim das regras e normas aceitas socialmente.

A informação é considerada uma forma de capital social por ser concernente às relações sociais, através das trocas permanentes entre os indivíduos, provendo a base para a ação social. Como exemplo, Coleman cita a uma notícia de jornal que é passada a um amigo que não tinha prestado atenção a algo que lhe seria importante. Ou ainda, as informações que são trocadas entre familiares e conhecidos sobre empregos e oportunidades diversas. A aquisição dessa base, todavia é custosa, exigindo atenção permanente. O uso das informações e sua manutenção nas relações fazem com que estas possam ser utilizadas para diversos propósitos.

As normas e sanções sociais, quando efetivas, constituem-se em importante forma de capital social no interesse da coletividade. Por norma social entende-se desde a norma interiorizada no sentido durkheimiano, até a norma externa imposta pela efetiva repressão de atitudes individuais que vão contra os interesses da comunidade. Constitui-se em instrumento eficaz na manutenção do controle social agindo, por exemplo, na inibição do crime, pela sua repressão direta ou constrangimento de comportamentos (4). Por outro lado, podem facilitar o desenvolvimento de movimentos sociais (pela aplicação das normas ou por sua abolição), de atividades mutualistas (na provisão de bens escassos), e na chamada boa governança, ou seja, políticas públicas voltadas ao interesse do conjunto da sociedade.

Ainda segundo Coleman, tal como o capital físico e humano, o capital social sofre depreciação caso não seja permanentemente renovado. A criação, manutenção e destruição do capital social dependem fortemente de elementos tais como "closure": relações de confiança e proximidade existentes, por exemplo, entre empresas que podem resultar em preços fixos em suas relações comerciais, ou entre clientes de empresas que podem se organizar para boicotar preços ou produtos. Um "capital" precioso seja na realização objetivos comuns, seja na defesa de grupos com menor poder econômico contra grupos mais poderosos.

Ambos os aspectos, objetivos comuns e defesa de grupos, integram a chamada "Appropriable Social Organization". Trata-se de um capital acumulado resultante da existência de organizações voluntárias que possibilitam o desenvolvimento de formas de negociação ou resistência a grupos mais [fim da página 50] poderosos economicamente, ou organizações voltadas à resolução de um problema social específico. Com a resolução do problema, a comunidade passa a dispor de capital social para utilizar em outros propósitos. Um exemplo é a organização dos moradores de um conjunto habitacional visando enfrentar a empresa construtora do conjunto, que deixou de cumprir sua parte no contrato de compra ao utilizar material de má-qualidade que comprometia as casas construídas. Frente ao poder econômico, a organização pode obter uma série de sucessos parciais ou totais na luta contra a empresa. Encerrada a reclamação, os moradores teriam acumulado capital social decorrente da experiência organizacional anterior e das relações de confiança estabelecidas entre os moradores que participaram do movimento, capital que estaria disponível para ser utilizado em outras situações.

Por fim, existiriam as organizações intencionais que pressupõem regras aceitas a priori pelo conjunto dos participantes, visando a fins determinados, com permanência maior ou menor.

Podemos afirmar, a partir de análise de Coleman, que confiança resulta de normas de reciprocidade, presentes nos processos de socialização e das sanções implícitas ou explícitas nesses processos. As normas, por sua vez, transferem o direito de controle da ação de um ator para outros, porque a ação é marcada por externalidades, com conseqüências positivas ou negativas.

A confiança construída por meio de redes sociais e de relações pessoais resulta da interiorização de normas de reciprocidade ou, para utilizar o termo cunhado por Granovetter (1995), embeddedness. Embeddedness (numa tradução literal, alguma coisa encravada, fixada, firmemente estabelecida) permeia as relações econômicas, situação pouco alterada com a modernização ou racionalização das sociedades modernas. Ou seja, as relações sociais, antes (ou mais que) os arranjos institucionais ou a moralidade generalizada, seriam as principais responsáveis pela produção de confiança na vida econômica. Essa confiança explicaria a maioria das transações econômicas, as quais pressupõem o conhecimento prévio dos parceiros e a observância de regras morais entre eles. O mesmo ocorre no mercado de trabalho, no qual mais de 50% das colocações dependem de redes sociais e das informações privilegiadas que estas fornecem.

Portes (1998), revisando a bibliografia sobre o tema, afirma que existiriam três funções básicas do capital social que podem ser aplicadas em contextos diversos: a primeira, como fonte de controle social; a segunda, como fonte de apoio familiar e a terceira, como acesso a benefícios através de redes sociais extrafamiliares. Essas funções extrapolam pequenos grupos e podem ser analisadas em contextos mais amplos, como veremos a seguir.

Capital social e desenvolvimento

O capital social na sociedade estaria presente também nas redes que se estabelecem nos movimentos sociais e não apenas entre os indivíduos. Estas redes possibilitariam maior pressão por políticas públicas e por seus resultados, o que levaria ao estabelecimento de regras mais claras no funcionamento do aparelho do Estado e ao estabelecimento de relações de confiança entre os atores envolvidos. A participação resultante desse processo se constituiria num [fim da página 51] elemento fortalecedor das instituições sociais presentes na sociedade civil. Woolcook (1998), agrupa as pesquisas sobre capital social em duas perspectivas dentro do que convencionou chamar-se de como "nova sociologia do desenvolvimento econômico": a primeira, micro-econômica, com estudos sobre ethnic entrepreneurships na qual são analisados os negócios étnicos encravados em cidades como Miami, Nova Iorque e Los Angeles, nos EUA. Estes enclaves criam um denso tecido social marcado pelo controle de atividades e o emprego significativo de membros da mesma etnia - ou nacionalidade - como força de trabalho nessas empresas, funcionando como forma de integração e controle social dos novos imigrantes. Essas redes forneceriam força de trabalho barata e disciplinada, além de acesso privilegiado a mercados, oportunidades de negócios, etc (5).

A outra perspectiva, macro estrutural, é formada por estudos comparative institutionalists sobre as relações entre Estado e Sociedade. Estes estudos procuraram verificar em que medida o capital social favoreceria - ou não - o desenvolvimento econômico nas sociedades avançadas e em desenvolvimento. Dois autores destacam-se nessa corrente: Roberto Putnam e Peter Evans.

Putnam (1993,1993 a,1995, 1996) amplia o uso do conceito de capital social para explicar em que medida as associações voluntárias constituem o substrato de maior participação política. Para ele o conceito incorporaria a constatação tocqueviliana da propensão americana ao associativismo em suas mais diversas formas. Idéias sobre associações horizontais estariam na base das relações entre democracia e sociedade civil, assim como o envolvimento pessoal em atividades - voluntárias e filantrópicas e esportivas - que teriam um efeito no comportamento dos cidadãos americanos nas esferas política, econômica e social. Destaca que normas de reciprocidade generalizadas são um componente altamente produtivo de capital social. Essas normas estariam relacionadas a densas redes sociais e reduziriam o oportunismo potencialmente presente na ação coletiva. Toda sociedade, moderna ou tradicional, autoritária ou democrática, feudal ou capitalista, seria caracterizada por redes sociais de comunicação e troca, formal ou informal. Algumas dessas redes são primariamente horizontais, com agentes de poder e status equivalentes. Outras são verticais, ligando agentes desiguais em relações assimétricas de hierarquia e dependência. Entretanto, não existiriam tipos puros de redes, mas sim tipos em que essas relações estão mescladas. As redes de engajamento cívico, como associações de vizinhança, cooperativas, clubes esportivos e partidos apresentariam uma interação horizontal. Por outro lado, em algumas igrejas como a católica, com sua forte hierarquia, a interação seria mais vertical, não favorecendo uma participação maior dos fiéis em suas atividades.

Na estruturação do modelo de engajamento cívico, Putnam recupera historicamente a construção do capital social na Itália a partir do estabelecimento, nos anos 70, de maior autonomia das regiões. As mesmas regras tiveram resultados diferenciados no norte e no centro, caracterizados pela existência de uma sociedade civil organizada em numerosas instituições e associações, maior desenvolvimento econômico e participação política. No sul, ao contrário, o êxito [fim da página 52] da descentralização foi limitado, devido à forte presença da patronagem, do personalismo, do catolicismo exacerbado e à alta desconfiança das instituições públicas, com restrita participação social e política de seus habitantes. Essa contraposição demonstraria a presença de maior capital social acumulado no norte-centro do país, o que tem resultado em maior dinamismo econômico, político e cultural em contraposição à estagnação do sul e às dificuldades de implementação de políticas públicas exitosas (Putnam, 1993, 1993 a, 1995, 1996). Citando Albert Hirshman, afirma que o capital social seria um recurso moral à disposição da sociedade que pode ser utilizado em seu próprio benefício.

Analisando a sociedade americana, Putnan (1993 a, 1995, 1995 a) apresenta dados de participação em atividades coletivas que indicariam a diminuição do engajamento cívico do cidadão americano médio. Comparando a geração anterior à Segunda Guerra Mundial com a posterior, afirma que estaria havendo uma queda na participação de atividades comunitárias, filantrópicas, e voluntárias. Essa queda é atribuída às mudanças na sociedade moderna, que levariam a um maior individualismo dos cidadãos e menor preocupação com atividades coletivas. Sua hipótese, entretanto tem sido contestada por não considerar a mudança na qualidade da participação como resultado das transformações sociais recentes (Portes, 1998).

O emprego do capital social na compreensão - ou utilização para o desenvolvimento - é analisada por Evans (1997), que afirma que a sinergia Estado-Sociedade pode ser catalisada para o desenvolvimento. É necessário, entretanto, que o Estado tenha a capacidade e habilidade para construir um aparato burocrático eficiente para gerir as demandas sociais. As normas de cooperação e redes sociais de engajamento cívico entre cidadãos comuns podem ser incentivadas por agências públicas e usadas para fins de desenvolvimento (Evans, 1997: 178), através da utilização de organizações existentes na sociedade na discussão e implementação de políticas.

A estrutura das relações sinérgicas entre Estado e Sociedade é explicada a partir dos conceitos, analiticamente distintos, de complementaridade e embeddedness. Complementaridade caracterizaria as relações de suporte mútuo entre atores privados e públicos. Governos são mais eficientes na distribuição de certos bens coletivos que podem ter inputs complementares distribuídos por atores privados. Embeddedness referiria-se aos laços que conectariam cidadãos e agentes públicos (funcionários, técnicos,políticos), ultrapassando a separação público e privado, sem necessariamente ser depositários de relações de corrupção ou rent-seeking. Assim, complementaridade e embeddedness são conceitos que se combinam na explicação da sinergia Estado-Sociedade, constituindo-se em dimensões do capital social. A complementaridade cria o potencial de sinergia mas não a base organizacional para a realização do potencial. Embeddedness, na forma de envolvimento direto com agentes públicos, seria a chave para os cidadãos garantirem esforços organizados que sustentariam o seu envolvimento.

O contexto de criação da sinergia está na questão exigências versus constructability. Citando Putnam, Evans afirma que os estoques de capital social acumulados por longos períodos de tempo são um ingrediente crucial na criação de um “círculo virtuoso” no qual o engajamento cívico prepararia o “bom governo” e este, por sua vez, favoreceria o engajamento cívico.

[fim da página 53]

Dessa forma, a existência de associações comunitárias, igrejas, sindicatos e outras formas organizativas constituem-se em elementos básicos do capital social potencialmente existente numa comunidade e que pode ser utilizado de forma eficiente em políticas públicas. O emprego ou não desse capital pode explicar o sucesso ou o fracasso dessas políticas, e o grau de institucionalização do Estado, com a existência de regras claras e com o estabelecimento de relações de confiança entre Estado e Sociedade.

A aplicação do conceito na análise de políticas públicas

Analisando as políticas sociais do governo brasileiro constatamos que estas, além de limitadas, falham sistematicamente no atendimento às populações mais necessitadas de auxílio. Clientelismo, corrupção, desvio de verbas, todos estes elementos mantém um fosso permanente entre Estado e Sociedade, impedindo a criação de relações de confiança entre os atores sociais envolvidos. A percepção do Estado - visto enquanto instrumento para atender interesses privados - e o entendimento do "público" como sinônimo de "sem dono" perpassa todas as classes sociais no Brasil, compondo nossa cultura política.

As mudanças do Estado brasileiro nos anos 90, caracterizadas pela descentralização administrativa - com o fim do planejamento econômico centralizado-, pela privatização de empresas estatais e serviços públicos e rígido controle fiscal, resultaram, entre outras coisas, na implementação de políticas estaduais de desenvolvimento econômico e de políticas sociais que, ou reproduziam localmente políticas federais descentralizadas, ou experimentaram programas próprios.

Em contraposição ao discurso dominante do "Estado mínimo" presente nos diversos níveis de governo, a forte atuação estatal está em algumas propostas reformistas implementadas com relativo sucesso,embora limitadas em seu alcance, mobilizando as comunidades alvo.

O Estado do Ceará, apontado como modelo da modernização "social-democrata" do governo brasileiro e de suas propostas de enxugamento do papel do Estado e descentralização de políticas, destacou-se pelo arrojo de alguns projetos implantados na área de saúde pública, chegando a receber prêmios de instituições internacionais pelos resultados satisfatórios e apontados como exemplos da possibilidade de mobilização de capital social de forma positiva em países em desenvolvimento. Outros projetos, do mesmo governo, na área de educação e geração de renda não obtiveram os resultados esperados. Um dos fatores na construção deste capital social está na estabilidade política, num governo que se mantém por quatro períodos sucessivos (6), garantindo a continuidade dos programas implementados (7). Entretanto, outros elementos ajudam a explicar a construção de relações de confiança entre Estado e instituições da sociedade civil: a mobilização da comunidade, a informação sobre direitos, [fim da página 54] o acesso regular a esses direitos a partir de regras claras. Apresentaremos, a seguir, dois programas desenvolvidos pelo governo cearense, nos quais a mobilização ou construção desse capital pode ser apontada como elemento básico para entender seus resultados.

O “bom governo” nas políticas de saúde: os agentes comunitários de saúde (8) 

O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) começou em 1987, sendo parte de um programa de criação de empregos para enfrentar a seca que atingia o Nordeste e o Estado do Ceará. Visava reduzir, em caráter de emergência, os assustadores índices de mortalidade infantil através do desenvolvimento de atividades preventivas junto a mães de recém-nascidos residentes nos municípios e comunidades com elevados índices de pobreza. Representava apenas 3% dos empregos criados e era financiado pelos governos Federal e Estadual. O custo per capita do programa equivalia a US$1.50 contra os US$80 dos demais programas existentes no país. Cerca de 80% dos custos eram despendidos com agentes de saúde, contratados temporariamente e por um salário mínimo mensal. Os agentes eram mulheres em sua maioria, sem nenhuma experiência anterior na área de saúde, e que eram selecionadas nos seus municípios de residência, uma vez que o programa pressupunha um conhecimento e atuação na própria comunidade de origem do agente. Estes agentes eram pagos pelo governo do Estado e supervisionados por uma enfermeira contratada pelo município com um salário médio de US$300 por mês.

Uma das características básicas do programa foi a descentralização, organizada de forma a não se constituir presa fácil do clientelismo municipal e mesmo do estadual. Com 85% das verbas financiadas pelo governo do Estado e 15% pelas prefeituras, a contratação de trabalhadores se deu fora dos quadros do funcionalismo municipal e estadual, no que poderíamos chamar de processo "flexibilizado": contratação temporária, sem vínculos empregatícios formais.

Cabia à Secretaria Estadual de Saúde a seleção, contratação, treinamento e pagamento dos agentes de saúde, além da determinação das diretrizes básicas da atuação dos envolvidos no programa. Essa seleção e esse treinamento chegavam a durar três meses, com a presença da equipe de técnicos da Secretaria de Saúde e das enfermeiras contratadas pelas prefeituras com a realização de numerosos seminários. Com isso, implementou-se, por um lado, uma relativa descentralização operacional representada pela coordenação dos trabalhos cotidianos dos agentes pelos municípios, e por outro, por uma política altamente centralizada na Secretaria Estadual, que estabelecia as diretrizes básicas do trabalho e gerenciava sua execução.

Inicialmente o programa contou com a oposição dos prefeitos descontentes com a perda do controle das verbas de saúde e do uso que disso poderiam fazer em função de seus interesses políticos: dependendo do município, a prefeitura perdia o controle sobre 150 empregos. Para se contrapor à resistência dos prefeitos, uma campanha publicitária do governo do Estado prometia aos cidadãos a melhora das condições de saúde das crianças do município, [fim da página 55] informando-os sobre seus direitos e condicionando essa melhoria ao compromisso dos prefeitos com a contratação de uma enfermeira para o município e o fornecimento de espaço físico para sua atuação. Além disso, a presença dos agentes de saúde trabalhando uniformizados, permitia ampla visualização do programa, representando a efetiva presença do poder político em comunidades carentes, com conseqüências políticas nada desprezíveis.

Com o sucesso progressivo do programa, capitalizado na divulgação da queda da mortalidade infantil, a resistência dos prefeitos foi cedendo e, a partir de 1989, com o fim do período de emergência, o programa passou a compor a política de saúde do Estado e, em seguida, passou a ser adotado por outros Estados ampliando sua abrangência.

Entre as características que Tendler (1998) apontou como fundamentais para o sucesso do programa estava o contrato temporário dos agentes de saúde, fora da pesada e pouco operante estrutura do funcionalismo público. Esse caráter temporário e, portanto, precário e pouco seguro para o trabalhador, teria sido compensado com elementos não mercantis básicos para construir um compromisso trabalhador-comunidade: a contratação por mérito e não a tradicional indicação clientelista; treinamento e atualização contínua e valorização da atividade através da propaganda governamental; utilização de trabalhadores da própria comunidade, favorecendo o estabelecimento de relações de confiança entre os agentes e os moradores; pagamento de salário mínimo regular aos agentes; a diversidade de tarefas realizadas pelos agentes e a sua obrigação de visitar um número definido de famílias, nas oito horas de trabalho diárias; o conhecimento dessas exigências por parte da população, resultou em controle comunitário sobre o trabalho, uma vez que a família não visitada poderia denunciar o agente.

O mesmo acontecia com a enfermeira coordenadora, que teve seu status profissional valorizado no município: vinculação direta com a Secretaria de Saúde em Fortaleza, maior responsabilidade com o controle da equipe de agentes e autonomia da implementação do programa com possibilidades de adição de outras atividades consideradas necessárias no município (9).

As tentativas de reivindicações dos agentes pela formalização de um contrato permanente como funcionários públicos vêm sendo rejeitadas pelo governo do Estado, que atribui o fraco desempenho dos funcionários à estabilidade que possuem no emprego. Uma das razões do bom desempenho desses agentes estaria na instabilidade de sua condição funcional, que implicaria num maior compromisso com a qualidade do serviço como condição de continuar trabalhando.

Este programa foi tido por Evans (1997) como modelo da sinergia Estado-Sociedade, e um exemplo bem sucedido da possibilidade da mobilização de um capital social pré-existente ou de sua construção. Os elementos chaves dessa mobilização/ construção estariam na continuidade de políticas públicas (no caso cearense a permanência do mesmo grupo político no controle do aparelho [fim da página 56] do Estado desde 1987); estabilidade dessas políticas; regras claras de funcionamento numa área comumente sujeita à manipulação política e pouco eficaz em seus resultados; sua presença junto à populações normalmente desassistidas, através de visível contingente de agentes de saúde com a prestação de serviços básicos de informação sanitária; agentes da própria comunidade com relações sociais informais relativamente sedimentadas; ampla informação da população alvo; adoção de regime de trabalho que utiliza a confiança como elemento constituinte da relação de trabalho entre o agente e a comunidade, estabelecendo um controle social sobre o trabalho realizado.

A despeito do reconhecido bom resultado deste programa, uma questão permanece: esses ingredientes seriam suficientes para a mobilização do capital social das comunidades ou da sociedade? Ou ainda, se poderíamos nos referir a essa construção quando nos deparamos com as relações capital-trabalho? No próximo exemplo, veremos o fracasso de um outro programa, em que os elementos acima elencados começaram a ser construídos, mas foram insuficientes para estabelecer uma sinergia Estado-Sociedade, pela criação de relações assimétricas entre os atores envolvidos.

O "mau governo" nas políticas de geração de renda:
as cooperativas de produção industrial
(10) 

O projeto de instalação de cooperativas de produção industrial teve início em 1994 e objetivava atrair empresas do setor do vestuário, que utilizam trabalho intensivo, pela possibilidade de redução de custos com a terceirização da produção em cooperativas de trabalhadores, organizadas pelo Estado em cidades do interior.

O projeto de parceria Estado/ Empresas pressupunha, da parte do primeiro: ampla divulgação do programa nos municípios que receberiam as cooperativas, detalhando as vantagens que os trabalhadores teriam no formato “cooperativa”, com possibilidade de ganhos acima do salário mínimo num local em que os ganhos médios não chegavam a meio salário; infra-estrutura - o governo Estadual, juntamente com as prefeituras, garantiria local de trabalho através da construção de prédios ou permissão de utilização de prédios já existentes; pagamento, às vezes, de água e energia elétrica; treinamento oferecido pelo SENAI e empresas parceiras; bolsa-treinamento paga por dois meses aos trabalhadores; seleção de trabalhadores na própria comunidade; envolvimento de diversas instituições no Programa, como SENAI e SEBRAE, Organizações Estaduais de Cooperativas, Prefeituras, Governo do Estado e órgãos do Governo Federal.

As empresas privadas, parceiras do Estado, entrariam com equipamentos cedidos em comodato às cooperativas ou garantia para empréstimos junto a bancos públicos; pessoal qualificado na supervisão do trabalho e compra da produção das cooperativas.

O objetivo do programa seria benéfico para o Estado, para as empresas, [fim da página 57] para as comunidades e cidades envolvidas e para os trabalhadores. Para o Estado, pela atração de empresas de outras regiões do país que criariam empregos em cidades do interior, dinamizando a economia da região e minorando problemas sociais, apesar da renúncia fiscal explicitada no projeto; para as comunidades e cidades envolvidas, situadas no interior do semi-árido nordestino, estagnadas economicamente, a possibilidade de desenvolver atividades industriais e dinâmicas com maior circulação monetária, aumento do consumo e da arrecadação de impostos; para as empresas, a oportunidade de baratear o custo da produção, com baixo nível de investimento direto e com trabalhadores organizados em cooperativas, o que transferia a estas o ônus da gestão do trabalho mantendo, entretanto, o controle da produção; para os trabalhadores, a possibilidade de uma ocupação e ganhos regulares, de uma qualificação profissional, de não ter que migrar com as sucessivas secas da região.

Em tese, tal qual o programa de agentes comunitários de saúde, o programa de implantação de cooperativas estava cheio de boas intenções, com o objetivo de gerar renda para uma população carente com o incremento das atividades econômicas do Estado através da interiorização da industrialização.

Entretanto, o programa tinha alguns vícios de origem que comprometeram sua implementação. Primeiramente, a parceria com empresas privadas. As parcerias foram obtidas com renúncia fiscal e promessa de um tipo de organização da produção que reduziria os custos e os problemas com a força de trabalho: o trabalho associado em cooperativas de produção. A possibilidade de trabalhar com cooperativas pressupunha a eliminação dos gastos com obrigações sociais, assim como os da manutenção de uma estrutura administrativa para o gerenciamento da força de trabalho. Como a empresa mantinha o controle efetivo sobre o trabalho da cooperativa através de supervisores de qualidade, da imposição do layout da produção, da "sugestão" de normas disciplinares, além de manter seus funcionários nos mesmos prédios ou em prédios ao lado, na realidade administrava a cooperativa. Dessa forma, a cooperativa funcionava mais como um artifício à legislação trabalhista, escamoteando relações salariais. A autonomia dos trabalhadores das cooperativas revelou-se uma ficção. As cooperativas passaram a funcionar como departamento das empresas, embora, formalmente, fossem cooperativas.

A ausência de autonomia e, conseqüentemente, a semelhança entre a cooperativa e a empresa tradicional, a não ser pela ausência dos chamados direitos sociais implícitos na relação salarial formal, criou entre os trabalhadores a sensação de engodo, a perda de confiança na ação estatal e empresarial.

Por outro lado, como acontece em todo investimento privado, este se manteve enquanto o lucro compensou, retirando-se quando a conjuntura tornou-se desfavorável. Algumas empresas estabeleceram contratos de cinco anos com as cooperativas, mas nem todas observaram os contratos firmados, seja por incapacidade gerencial, por problemas de mercado, seja pela existência de opções mais lucrativas. Com isso as cooperativas funcionaram de forma instável, com as empresas reduzindo encomendas, ou simplesmente abandonando projetos, comprometendo não apenas ganhos dos trabalhadores, mas todo um projeto de geração de renda que envolvia milhares de trabalhadores em diversas cidades do Estado. Rompia-se, dessa forma, não apenas contratos, mas também a [fim da página 58] possibilidade de viabilizar: um projeto que pressupunha a organização comunitária da produção vinculada a redes econômicas mais amplas; o estabelecimento de relações de confiança estáveis entre os parceiros envolvidos na produção.

Isto nos leva ao segundo ponto. Para as cidades e comunidades que se beneficiaram, inicialmente, com a maior circulação financeira proveniente da instalação das cooperativas, os problemas que se seguiram mostraram a fragilidade do projeto governamental. Os empregos criados rapidamente desapareceram. A atividade conjunta de diversas instituições na organização das cooperativas a nível local como Centros Sociais Urbanos, Lyons Club e prefeituras não implicou em nenhuma continuidade associativa. Os trabalhadores foram para a produção, e como a propriedade cooperativa era apenas formal os ganhos associativos limitaram-se, em alguns casos, a tentativas de greve para obter melhorias nas condições de trabalho e denúncias sobre essas condições.

As cooperativas foram, progressivamente, sendo fechadas, quer seja pela inviabilidade econômica de suas parceiras-tutoras, pelo desinteresse das empresas, ou por decisão judicial. A instabilidade das encomendas, dos ganhos, e os "não direitos" provocaram numerosas reclamações trabalhistas contra as "falsas cooperativas" e o trabalho assalariado disfarçado, que culminou com campanha de denúncias na imprensa da capital, desgastando o governo Estadual e obrigando-o a retirar formalmente o apoio às cooperativas que tinha organizado. Algumas se transformaram em empresas normais, por decisão judicial, outras, simplesmente desapareceram.

Comparativamente ao Programa de Agentes de Saúde, o programa de instalação de cooperativas mobilizou distintos agentes, informações, recursos da comunidade e do Estado, mas deixou de lado a confiança entre os atores envolvidos. Enquanto no primeiro essa confiança foi conquistada através dos benefícios percebidos pela ação estatal, representada pelos agentes de saúde, no segundo ela foi perdida pela ligação do Estado com as tentativas de burla de direitos sociais, na parceria com empresas. Se num primeiro caso a mobilização do capital social da comunidade foi efetiva, no segundo ela não se concretizou: as informações sobre cooperativas para os trabalhadores foram insuficientes. Os trabalhadores pouco entenderam o que as cooperativas significavam e em seu cotidiano elas não faziam sentido. Eram parceiros numa relação assimétrica, na qual os benefícios pediam pesadamente para um lado apenas.

Assim, a construção de relações sinérgicas Estado-Sociedade é um processo que não somente exige regras claras entre os parceiros, como também estabilidade e continuidade de políticas, assim como estas devem levar em conta os interesses de todos os envolvidos. Quando o Estado, deliberadamente, beneficia um dos lados apenas, por mais que invista na mobilização dos recursos existentes na comunidade, seu êxito é limitado, o que pode explicar o fracasso de políticas implementadas. O capital social, entendido como recurso presente na comunidade não é suficientemente construído ou mobilizado, ou ainda, mobilizado de forma negativa inviabilizando a continuidade de projetos.

[fim da página 59]

Usos e abusos do conceito

O conceito de capital social soma-se aos conceitos de capital físico e humano (educação, treinamento e trabalhadores saudáveis como fator de produtividade), capital econômico e capital cultural, acrescentando a estes os elementos subjetivos presentes nas relações sociais e não imediatamente utilitários ou objetivos em sua constituição (normas, valores, redes sociais), mas que possibilitam o mútuo benefício dos envolvidos nessas relações, de informações úteis na vida cotidiana, e na organização de políticas públicas.

Uma das críticas recorrentes ao conceito está em seu uso indiscriminado e amplo, em que as relações sociais seriam transformadas em "capital". O conceito, que incorpora os processos de interação, normas, funcionalidade, redes sociais, comunidade, solidariedade, subjetividade, termina por misturar diversas tradições sociológicas, pretendendo explicar muita coisa, com resultados polêmicos.

Um exemplo de como o conceito pode ser utilizado para explicar situações opostas é dado por Fukuyama (1995) ao relatar a perda, pela revolução soviética, das redes pré-existentes construídas pela igreja ortodoxa, com o desmonte das relações sociais nela baseadas e as dificuldades enfrentadas, pelo então novo regime, para restaurar normas de confiança. Fukuyama utiliza o conceito para destacar a importância das organizações sociais e como o Estado pode destruir recursos da sociedade. Utilizando o mesmo conceito Buroway (1997), referindo-se ao desmonte, na era pós-soviética, das relações sociais construídas durante a vigência do regime socialista, aponta o desmonte do aparelho estatal como causa do atual caos da situação da Rússia. Buroway compara a situação russa com a atual transição chinesa para uma economia de mercado, apontando as vantagens da estabilidade do governo chinês e do funcionamento das instituições, o que explicaria o êxito chinês em contraposição à crise russa, destacando a importância das relações sociais construídas pelo Estado e sua estabilidade no sucesso ou fracasso de mudanças sociais.

O caso das políticas de Estado desenvolvidas pelo Ceará permite, igualmente, perceber as dificuldades da operacionalização do conceito e seu grau de generalização. O sucesso de determinadas políticas pode ser explicado pela adequada mobilização de capital social , assim como o fracasso de outras pela não mobilização do capital social existente na sociedade.

A continuidade do governo garantiu a estabilidade de algumas políticas: um elemento fundamental no estabelecimento de relações de confiança da sociedade com o Estado entre os atores sociais. No programa de Agentes Comunitários de Saúde a dinâmica centralização/ descentralização com o emprego de pessoas da comunidade na realização de tarefas voltadas ao bem comum - a prestação de serviços básicos, de informação na prevenção da mortalidade infantil entre pessoas carentes; o trabalho autônomo de enfermeiras; e o forte controle realizado pela Secretaria de Saúde do Estado - tornou-o mais visível para essas populações, que passaram a identificá-lo com políticas voltadas ao bem comum, obrigando a participação de vários setores políticos resistentes ao programa.

No segundo, ao contrário, o intuito de atrair empresas, oferecendo força de trabalho barata e dócil, criou uma situação inicial de desconfiança entre os [fim da página 60] trabalhadores, o que jogou por terra possíveis benefícios que o programa chegasse a trazer por algum tempo, como maior circulação monetária e consumo nos municípios, aumento da renda dos trabalhadores e de qualificação. Isto com o envolvimento de vários atores institucionais e o alto grau de informação e propaganda que o projeto envolveu. Entretanto, desde o início, as pretensas cooperativas contaram com a desconfiança dos trabalhadores e suas associações, como a Ação Católica, e sindicatos que as combateram como engodo. Tivemos assim uma mobilização negativa do capital existente.

Entre os Agentes Comunitários de Saúde, houve tentativas de mobilização para contratação permanente pelo Estado, que vem recusando a reivindicação, sem que isto tenha comprometido o programa, dado seu caráter de utilidade pública reconhecido socialmente, o que não aconteceu com as cooperativas (e as empresas que a sub-contratavam), envolvidas na desconfiança da sociedade e em complicações jurídicas que determinaram seu fim.

Em outros termos, tivemos, por um lado, um capital social mobilizado e por outro um capital social desperdiçado numa política de geração de renda e de atração de investimentos industriais que desconsiderou os interesses de todos os atores envolvidos.

Podemos dizer que o capital social sozinho é insuficiente para explicar o sucesso ou fracasso da ação estatal, uma vez que outros elementos devem ser considerados. Entretanto, como instrumental de análise, possibilita um novo olhar para fenômenos sociais, econômicos e políticos que, na maioria das vezes, são desconsiderados: o das redes sociais informais estabelecidas entre os atores sociais e das normas construídas como resultado dessas relações, assim como a importância de elementos subjetivos como confiança na compreensão da ação social. As relações de confiança estabelecidas informalmente pelos indivíduos em suas redes sociais - e seu incremento na sociedade mais ampla - podem resultar em benefícios coletivos. Recupera-se assim o sentido de comunidade - fortemente presente, por exemplo na sociedade americana, com seu alto grau de associativismo voluntário - nas formas associativas informais existentes em grupos sociais distintos em sociedades as mais diversas. Nenhuma apologia ao trabalho voluntário ou associativismo em substituição ao Estado como prega a ideologia neoliberal mas, ao contrário, uma presença forte do Estado legitimada pela sociedade civil representada nas mais diversas instituições e associações voluntárias.

A teoria do capital social permite, assim, analisar fenômenos presentes no comportamento social e pode ser operacionalizada na implementação de políticas públicas. Embora controverso em sua aplicabilidade, o conceito possui um caráter explicativo, se constituindo num instrumental importante a ser utilizado ou mobilizado na busca de políticas sociais transparentes e na construção efetiva de relações de confiança entre Estado e Sociedade e, daí, nos aproximarmos do que seriam boas políticas ou bons governos.

Referências Bibliográficas

[fim da página 62]

Notas

1) Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

2) Nos baseamos em dois artigos de revisão do conceito: Woolcook (1998) e Portes (1998).

3) Ação racional, baseada na idéia da existência de uma correlação racional entre meios e fins. Veja-se Coleman (1990).

4) Possuindo, igualmente, um caráter conservador.

5) Veja-se também Portes (1998).

6) Três períodos com o governador Tasso Jereissati e um com o governador Ciro Gomes, do mesmo grupo.

7) Um exemplo dessa estabilidade e sucesso de políticas públicas, numa perspectiva política distinta pode ser vista em análises do caso da prefeitura petista de Porto Alegre.

8) Esse item é baseado em Tendler (1997).

9) Tendler exemplifica a adoção de programa de esclarecimento sobre doenças sexualmente transmissíveis implementadas a partir da constatação de que as próprias agentes estavam contaminadas e não sabiam como tratar (1998).

10) Sobre as cooperativas de produção no nordeste veja-se Moreira (1997), Lima (1997, 1998, 1999, 2000) nos quais este item esta baseado.



[início da página 63]

RESUMO
A TEORIA DO CAPITAL SOCIAL
NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS


Neste artigo apresentamos uma discussão introdutória do conceito de "capital social" amplamente utilizado na sociologia norte-americana, principal-mente pela chamada 'sociologia econômica do desenvolvimento'. O conceito refere-se a características presentes nas redes sociais informais desenvolvidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana, normas de reciprocidade, informação e confiança, que podem resultar em numerosos benefícios diretos ou indiretos, em termos pessoais e coletivos. Seu alcance propicia desde o estudo de família e grupos sociais restritos, até situações macro presentes em sociedades complexas, permitindo a compreensão do funcionamento de instituições e políticas implementadas. Como modelo de sua aplicação na análise de políticas sociais, apresentamos dois programas sociais desenvolvidos pelo governo do Estado do Ceará, que possuem as condições da chamada "mobilização do capital social", discutindo seus resultados.
PALAVRAS-CHAVE: Capital Social; Redes sociais; Regras e Normas Sociais; Engajamento Cívico.

ABSTRACT
THE SOCIAL CAPITAL THEORY
IN THE ANALYSIS OF PUBLIC POLITICS


This paper aims to present an introduction of "social capital" concept, with large use in the North American Sociology, mainly in the so-called 'Sociology of Economic Development'. It is composed of the norms of reciprocity, information and truth, within the informal social networks developed for individuals in their daily life. Social capital can have many direct and indirect benefits for individuals both personally and collectively. In this paper are analyzed two polices developed by the government of Ceará. The mobilization of Social Capital in these policies is assessed and their result.
KEYWORDS: Social Capital; Social Nets; Rules and Social Norms; Civic Engagement.





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Número 17 - set/2001  |   Universidade Federal da Paraíba  |   Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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