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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 11-15


MIRÍADES POR ENTRE MAIO DE 68 E O DESERTO (1)

Paulo Tarso Cabral de Medeiros (2)

Disse-me: cautela, não te ocorre a lembrança de Sócrates na pólis grega, ou o sofrimento de Artaud quando quis fazer do teatro a vida, ou a sofreguidão de Van Gogh, e o que dizer do próprio Nietzsche, translucidamente trágico no sem-lugar de profeta?

Disse-lhe: não me coloque, pelo amor de Daimon (3), no nível destes grandes criadores. Eu só queria perguntar o que pode acaso haver, estar havendo, pululando entre certa nostalgia dos 60 e 70 - maio de 68 o emblema, o intempestivo que rasgou a fixidez dos papéis e instituições (4)  - e o que dizem ser hoje deserto; deserto..., crês nisto Seeteto?

- Não, meu caro, disse-me, não há desertto cujas areias não entretenham pontos de composição, linhas leves enleadas na densa espessura, curvaturas ardentes, ainda que se mire de pertíssimo, a areia a queimar, os olhos arder, e o horizonte... ensimesmando aparente mesmice.

Eu disse: que tempos exasperantes enxergas, ou melhor, o quê pode ser entrevisto nestes, sim, algo exasperantes tempos, amigo Seeteto?

Oh, meu caro, ele disse, você não lembra em 68 fazer de cada aula um concerto de rock, no pátio mesas-redondas como jam sessions, uma outra mestra enlouquecida lendo o poema do Pessoa como uma noitada de blues regada a Chivas de cantil, o tigre de Jorge Luis Borges contorcendo-se no quadro-negro esgarçando-se numa sinfonia de idéias, e quanto se vibrava...

Ler um livro, eu disse, podia ser como quem reza: um quê de sagrado neste ato, esta forma de felicidade que Borges nomeou, um jeito João Gilberto de ler Foucault: reencontras esta vertiginosa grandeza nos tempos de agora Seeteto?

*****

Para Gilles Deleuze,

"Maio de 68 [foi] muito rico para a teoria. Quando penso no que passei, durante minha vida, devo dizer que de início houve um período extremamente pobre; estou falando da guerra, naturalmente. Depois da guerra, houve uma enorme explosão cultural e intelectual. E depois veio o deserto, nos anos 50. E em seguida a saída do deserto, e novamente uma época muito forte, nos anos 60 (com a Nouvelle Vague no cinema e, na teoria, digamos, para resumir, Foucault e [fim da página 11] Lacan). Havia nesse momento uma verdadeira efervescência. E atualmente temos de novo o deserto. Mas não é irreversível. É preciso distinguir dois casos: para aqueles que já deixaram uma parte de seu trabalho atrás de si não há muito problema, eles podem continuar escrevendo e atravessar o deserto. Mas para os mais jovens, é uma catástrofe: é difícil chegar, nascer num período de deserto. Para alguém jovem, que tenha algo novo a dizer, a situação é realmente muito dura.

O que foi muito importante na época da qual falamos, os anos 60, maio de 68 e alguns anos seguintes - e que hoje está realmente acabado - é o que eu chamaria de um novo funcionalismo, completamente fundido à filosofia, concebida como atividade criadora de conceitos. Tratava-se de criar conceitos que funcionassem em dado campo social. No caso de Foucault isso é evidente, pois ele é quem foi mais longe nessa criação de conceitos, com noções como a de ‘sociedade disciplinar’, que é a meu ver um conceito essencial. Eram conceitos que funcionavam num campo de imanência. E isso se opunha a duas coisas, do ponto de vista da tradição filosófica: ao recurso à transcendência e a uma concepção reflexiva da filosofia (filosofia que reflete sobre).

Nos períodos pobres, como agora, há sempre uma restauração da transcendência e um retorno à filosofia concebida como uma ‘ reflexão sobre’. Também um retorno à filosofia universitária. Então, é isso que é preciso encontrar atualmente: a filosofia como criação. Não ‘ refletir sobre’, mas criar conceitos, não buscar transcendências, mas fazer funcionar os conceitos nos campos de imanência."
(5) 

*****

Convém rememorar a explosão de alguns dos novos significados que eclodiram em Maio de 68, delineando, difusamente é verdade, novas relações entre nós e o conhecimento.

Mais que um movimento contestatório organizado, uma explosão de linhas de resistência, de criação de rotas alternativas, experimentações gregárias, miríades de dizeres, de gritos e de cantos, numa gramínea puro rizoma, tudo certo como dois e dois são cinco a não ser que é proibido proibir - restando querer o impossível.

Mais precisamente: crítica do poder onde quer que ele se exerça, entreabrir a multiplicidade que cada um é e examinar, reparar, minimizar os fluxos fascistas em nós, sem dogmas e certezas, apenas a bem-vinda alegria de poder pensar livre (?), o gesto arredondado, o prazer legítimo, sonhar em voz alta as pesquisas e caminhar-com, diria Barthes (6).

Mais academicamente: no tempo do estudo, entre eu e o outro uma zona [fim da página 12] de reverberação, antes dita intersubjetividade (Merleau-Ponty), dita a ponte (Lévi-Strauss) que me põe em contato com o irredutível fora de mim, no entre-dois, fazer falar as vozes do intervalo, esta diferença (que outros chamam obcecadamente identidade) que insiste, persiste, procurando seja a constância (nas Ciências Sociais) a criação de conceitos (em Filosofia) e a confecção de blocos de perceptos e afectos (em arte), dizem, mais recentemente, Deleuze e Guattari (7).

A dimensão ética e política de qualquer produção de conhecimento: resistência. De que modo? Vazar por dentro, aprender as regras, dominar os códigos, e fazer vazar algo de vital, de forte, de insubstituível, de singular e que possa ser partilhado, quem sabe: Foucault e uma ontologia do presente (8). Uma virtuosa tarefa: praticar a análise das lutas impetradas pelos grupos, grupúsculos de resistência e pressão presente nas sociedades contemporâneas.

Dirá Foucault:

“De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição do conhecimento e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida em que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê é indispensável para continuar a olhar e a refletir.”

*****

O sucateamento contemporâneo da humanidade (9)  mais-do-que-impõe a questão: o que pode o pensamento contra todas as forças que, ao nos atravessarem, nos querem fracos, tristes, servos e tolos?

Deleuze não cessou de dar a essa pergunta inquietante uma resposta alegre: criar (10).

Quer dizer: o saber nunca é abstrato.

Ele inventa e implica um estilo de vida, uma maneira de viver, uma ética; ou, mais radicalmente, uma estética, estética da existência ou arte de si mesmo. [fim da página 13] A vida como obra de arte, o filósofo (o intelectual, o cientista, o artista) como grandes estilistas do agora.

Para o pensador francês, o pensamento não é coisa de especialistas, mas um exercício de vida.

Os conceitos funcionarão nele como cores, sons, como imagens. Como intensidades que convém ou não, que atravessam o sujeito-que-quer-conhecer ou não, que conectam com alguma estratégia, interesse ou paixão, ou sequer terão interesse.

Assim, a única pergunta é se o que se lê nos convém, nos afeta, quer dizer, aumenta nossa potência, potência de agir, de resistir, de viver (na prática de uma ética não-fascista), nossa potência de criar, enfim.

É só deste modo que as questões relevantes podem (re)aparecer:

Como ser um homem livre?

Como estar à altura do que nos acontece?

Como trair a própria classe, raça, pátria, natureza?

Como fazer da vida uma força de experimentação, não de demolição?

Como substituir a necessidade de ser amado pela potência de amar?

Como devolver ao desejo sua força de conexão e de subversão?

Como dar ao pensamento velocidade absoluta, e fazer dele uma máquina de guerra apta a combater os aparelhos de captura, chamem-se Estado, Capital, Édipo, Mídia? (11) 

*****

Vê-se, pela força dos problemas colocados, pela grandeza neles implicada, pelo nível de exigência ética, política e intelectual que eles exprimem, como regurgitam aqui e ali, na intensidade e atualidade de um campo de pensamento como este, mineiraizinhos em miríades mil desmentindo a aridez desértica.

Vagalumando luzinhas por entre a espessa nuvem a evocar uma ilusória mesmice do deserto, entrevê-se como o corpo organizado agônico (sofrendo justamente por estar organizado, disciplinado e controlado) pode abrir-se por entre brechas, vagas e, mais que espantar o tédio, o repetido, o intolerável e o abjeto, no arejar do corpo sem órgãos incessantemente recriado inventar o novo.

E, de preferência, em incessante estado de intensidade-embriaguez, como cantou Baudelaire:

"EMBRIAGAI-VOS

É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que [fim da página 14] vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas - de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão de vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhe que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

- É a hora da embriaguez! Para não serdees os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.”
(12) 

Foi o que reencontrou Seeteto, o outrem, coagido por mim a pensar o tempo-que-voga... e escoa por estes teclados.


Notas

1) Versão (infiel) de palestra proferida na abertura do “CCHLA - Conhecimento em Debate”, versão 2001, insistentemente reivindicada a transmudar-se em texto: exagero dos sensíveis a quem, comovido, agradeço. E dedico.

2) Professor do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e Filosofia (PPGF) da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

3) “Demônio” em grego.

4) Para ler ou reler sobre 68, sugiro como entrada MATOS, Olgária C.F.Matos. Paris 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Col. “Tudo É História”).

5) DELEUZE, Gilles. “Meu próximo livro vai chamar-se ‘Grandeza de Marx’ - Depoimento de Gilles Deleuze a Didier Eribon”. In: Cadernos de subjetividade: Gilles Deleuze. São Paulo, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, v. 1, n. 1, 1993, pp. 28-29. Grifos meus.

6) Ver BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978.

7) Para maiores (e melhores) freqüentações ir a DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

8) Ver FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Org. de Manoel Barros da Motta; tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 (Col. “Ditos e Escritos”, vol. II) Visitar também FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, e de DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.

9) Luiz Orlandi tratou com magnitude este tema da degradação, banalização e empobrecimento da vida (cuja dobra implica na trama de agenciamentos de expansão das mais intensas, desmesuradas e infinitas potencialidades do... além-homem?) em “Que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?”, texto apresentado na sessão de encerramento do Colóquio Internacional Foucault-Deleuze, UNICAMP, Campinas/SP, novembro de 2000, no prelo.

10) Tratei deste tema-e-outros-afins mais demoradamente em “Que é escrever?” (resenha de Crítica e Clínica, de Gilles Deleuze) em Problemata - Revista do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, ano 1, n. 1, João Pessoa, PPGF,UFPb, 1998, pp.145 – 159.

11) Da magnífica segunda capa assinada por Peter Pál Pelbart em DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

12) BAUDELAIRE, Charles. In: Pequenos poemas em prosa. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4ª ed., 1980, p. 91. Em certo momento de sua obra, Deleuze, ativando a prudência implicada na experimentação e criação de um corpo sem órgãos, optará embriagar-se com água pura, nos fluxos perceptivos ativados no embalo das leituras agora da literatura norte-americana, de Keroauc e Henri Miller, entre outros.



RESUMO
MIRÍADES POR ENTRE
MAIO DE 68 E O DESERTO


Um antes e um depois dos 'mils' maios de 68 (que pode ser 78 e outros, nas temporalidades distintas das trajetórias estudantis). O clamor pelo intempestivo, a crítica ao (des)conhecimento como recognição e o anseio pela criação, de dentro da atenção às ardentes mutabilidades dos processos de conhecimento: paródia-celebração de Platão, de literatos, de estudiosos, arquitetando micro-resistências em boa companhia, o artigo é um grito um canto.
PALAVRAS-CHAVE: Maio de 68; Produção de Saberes; Micro-Resistências.

RÉSUMÉ
DES MYRIADES ENTRE
MAI 68 ET LE DÉSERT


Un "avant" et un "après" la myriade de Mai-68 (qui pourraient être 78 ou d'autres, dans les différentes temporalités des trajectoires des étudiants). La clameur pour l'intempestif, la critique à la (mé)connaissance comme re-cognition et le désir véhément de création, jaillissant de l'intérieur de l'attention aux ardentes mutabilités des processus de connaissance: parodie-célébration de Platon d'auteurs, de spécialistes, produisant des micro-résistances en bonne compagnie, l'article est un cri, un chant.
MOTS-CLÉS: Mai 68; Production de Savoirs; Micro-Résistances.





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Número 17 - set/2001  |   Universidade Federal da Paraíba  |   Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


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