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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 134-139
DEGRADAÇÃO, REGULAÇÃO E REALISMO UTÓPICO (1)
Elvio Quirino Pereira (2)
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra do desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
Este livro é fruto do trabalho de vários anos, em um processo de aprofundamento e modificações das preocupações apresentadas em seus trabalhos anteriores – Um discurso sobre as ciências (1987); Introdução a uma ciência pós-moderna (1989); Pela mão de Alice (1994) e Reinventar a democracia (1998). É importante registrar que [fim da página 134] partes deste livro foram discutidas em oficinas de seminários e de elaboração de projetos de pesquisa coletivos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra no Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Direito. No Exterior, através de trabalhos de pesquisa junto ao Departamento de Sociologia da Universidade de Wisconsin, da London School of Economics e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
O estudo apresentado neste primeiro volume tem sua argumentação centrada na análise da ciência, do direito e do poder, efetuando uma forte crítica ao paradigma dominante da modernidade. O autor defende a tese logo no primeiro capítulo, “Da ciência moderna ao novo senso comum”, um dos melhores capítulos do livro, de que "no limiar do 3º Milênio, estamos provavelmente a assistir ao culminar do processo de tensão entre regulação e a emancipação, e, portanto entrando num longo processo histórico de degradação caracterizado pela crescente transformação das energias emancipatórias em energias regulatórias" (p.54). De acordo com ele, a redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes que levaram o colapso de emancipação na regulação assim, o paradigma da modernidade deixa de poder renovar-se e entra em crise final. Observa-se que a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno, é o resultado do grande avanço do conhecimento que ele próprio propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se afunda.
Para dar sustentação a suas teses, Boaventura desenvolve uma metodologia denominada de "arqueológica". Ele segue caminhos próximos a metodologia de pesquisa desenvolvida por Michel Foucault. Procurando escavar no lixo cultural produzido pelo cânone da modernidade ocidental buscando descobrir as tradições e alternativas que dele foram expulsas; escavar no colonialismo e no neocolonialismo para identificar, nos escombros das relações dominantes entre a cultura ocidental e outras culturas possíveis relações mais recíprocas e igualitárias.
Por outro lado, vale ressaltar que essa escavação não tem um interesse estritamente arqueológico, mas identificar nesses resíduos e nessas ruínas fragmentos epistemológicos, culturais, sociais e políticos que possam nos ajudar a reinventar a emancipação social. Dentro desta perspectiva, da escavação histórica, conceitual e semântica efetuada pelo autor "emergem possibilidades de conhecimento, para além da ciência moderna, e possibilidades do direito, para além do direito moderno. Emergem também perspectivas de transformar formas de poder em formas de autoridade compartilhada" (p. 19).
Propõe-se no final do primeiro capítulo um quadro epistemológico, teórico analítico que torne possível a definição, mesmo que em linhas gerais, de um paradigma emergente, tanto de sua possibilidade emancipatória, como das subjetividades, individuais e coletivas, com a vontade de definir tais possibilidades. Teremos então um [fim da página 135] paradigma "de um conhecimento prudente para uma vida descente" (p. 74). O conhecimento-emancipação, ao tornar-se senso comum, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento deve traduzir-se em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. Para ele a ciência e a tecnologia aumentaram a nossa capacidade de ação de uma forma sem precedente mas, por outro lado, criou-se uma crescente assimetria entre a capacidade de agir e a capacidade de prever as conseqüências da ação. É por isso que sugere a prudência à nossa aventura científica, sendo essa prudência o reconhecimento e o controle da insegurança (p. 109).
É importante ressaltar que o autor ao longo de todo o livro retoma, renova e amplia a sua crítica a ciência moderna, já apresentada em obras anteriores, destacando o seu movimento de autoproclamação contemporânea de si mesma, desprezando outras formas de conhecimento. Ele afirma que a ciência é um modelo global de racionalidade científica autoritário, na medida em que nega o caráter racional de todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas (p. 61). Dentro desse contexto ele procura demonstrar ainda que a ciência moderna é hegemonicamente ocidental, capitalista e sexista (patriarcal).
Destaca também que a atual forma de reflexão epistemológica, com sua intensa busca do rigor científico, ao afirmar a personalidade do cientista acabou por destruir a personalidade da natureza. Portanto, ele acha possível que esteja já acontecendo essa mudança de um conhecimento "triste e desencantado" que transforma a natureza num autômato. Assim chegou o momento de se "despir, com alguma dor, dos conceitos teóricos e epistemológicos anteriores, em busca de uma vida melhor a caminho de outras paragens onde o otimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural" (p. 74). Em outras palavras, devemos reavaliar o conhecimento-emancipação, e, conceder-lhe a primazia sobre o conhecimento-regulação.
Santos expõe com acuidade a sua posição de pós-moderno de oposição, como a opção epistemológica mais adequada à fase de transição paradigmática em que nos encontramos, e que consiste na revalorização e reinvenção de uma das tradições marginalizadas da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação, que visa uma repolitização global da vida coletiva, sendo uma das condições essenciais para romper com a auto-reprodução do capitalismo. Assim, já existe hoje um conjunto de práticas político-culturais que visa orientar a comunidade através de um conhecimento-emancipação que habilite seus membros a resistir ao colonialismo e a construir a solidariedade pelo exercício de novas práticas sociais, que conduzirão a outras formas mais ricas de cidadania individual e coletiva (p. 96).
Boaventura nos faz ver a positividade do senso comum. Apesar de o conhecimento do senso comum ser geralmente um conhecimento mistificador, possui uma dimensão utópica e libertadora que pode valorizar-se através do diálogo com o conhecimento pós-moderno. Assim, para ele o senso comum "(...) faz [fim da página 136] coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão de mundo assente na ação e no princípio da criatividade e responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e, nessa correspondência, inspira confiança e confere segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e não-metódico; não resulta de prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder cotidiano da vida. O senso comum privilegia a ação que não produza rupturas significativas com o real. O senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade ou convence" (p. 108).
Dentro do conjunto de argumentações o autor estabelece que "os nossos problemas sociais assumiram, uma dimensão epistemológica quando a ciência passou a estar na origem deles. Os problemas não deixaram de ser sociais para ser epistemológicos. São epistemológicos na medida em que a ciência moderna, não podendo resolve-los, deixou de os pensar como problemas. Daí a necessidade de uma crítica da epistemologia hegemônica e a necessidade de invenções críveis de novas formas de conhecimento" (p. 117).
No segundo capítulo, "Para uma concepção pós-moderna do direito", o autor demonstra que a transformação da ciência moderna na racionalidade hegemônica e na força produtiva fundamental, por um lado, e a transformação do direito moderno num direito estatal científico, por outro, são duas faces do mesmo processo histórico, daí decorrendo isomorfismos entre a ciência e o direito modernos. Portanto, defende a necessidade de uma reavaliação radical do direito moderno, paralela a reavaliação radical da ciência moderna. O direito separou-se dos princípios éticos e tornou-se um instrumento dócil da construção institucional e da regulação de mercado (p. 140). O cientificismo e o estatismo moldaram o direito de forma a convertê-lo numa utopia automática de regulação social e passaram a ser as principais características do direito racional moderno. Neste capítulo, Boaventura passa em revista as transformações jurídicas ocorridas nos três períodos do desenvolvimento do Capitalismo e analisa alguns dos debates sobre a "crise do direito", concluindo que "todas foram incapazes de identificar as verdadeiras raízes do atual descontentamento do direito" (p. 186).
No terceiro capítulo, "Uma cartografia simbólica das representações sociais: o caso do direito", Santos demonstra as virtualidades analíticas e teóricas de uma abordagem sociológica tomando por matriz de referência a construção social e a representação do espaço. Utilizando-se da cartografia ele desenvolve uma concepção do direito enquanto mapa cognitivo dos espaços de ordem e desordem em que nos movemos quotidianamente. Assim, a análise do direito permite-lhe identificar as estruturas profundas da representação jurídica da realidade social, quase sempre ausentes nos debates sobre os limites e a crise do direito. Nesse momento é possível concluir que "vivemos num tempo de porosidades e, portanto, também de [fim da página 137] porosidade ética e jurídica, de um direito poroso constituído por múltiplas redes de ordens jurídicas que nos forçam a constantes transições e transgressões".
No quarto capítulo, "Para uma epistemologia da cegueira", Boaventura nos propõe uma nova atitude epistemológica que nos convida a: 1) uma movimentação prudente, em vez que não pode garantir que todas as movimentações sejam na direção pretendida; 2) uma pluralidade de conhecimentos e práticas já que nenhum deles isoladamente garante a orientação confiável; 3) uma aplicação da ciência edificante e socialmente responsável, em vez de técnica, já que as conseqüências das ações científicas tendem a ser menos científicas que as ações em si. Para tanto, exige do cientista uma nova postura epistemológica que venha a adotar uma adequada atitude vivencial de seu trabalho concreto e o impacto dele, uma atitude de otimismo trágico.
Ainda no quarto capítulo, o autor analisa o impacto da cooptação e da emancipação pela regulação na própria regulação e, por conseqüência, no conhecimento científico. Com isso ele procura demonstrar o significado do agravamento da falta de controle sobre as conseqüências das ações e práticas sociais cientificamente fundadas. Assim, ele analisa o caso da economia, porque "ela tem o privilégio de regular cientificamente a sociedade, e por isso, nos permite analisar nela a representação distorcida das conseqüências" (p. 229). Ele demonstra uma espécie de privilégio epistemológico da ciência moderna e como resultado a destruição de todos os conhecimentos alternativos que poderiam vir a pôr em causa esse privilégio. Dessa forma, o autor propõe como alternativa uma epistemologia da visão com três démarches epistemológicas: a epistemologia dos conhecimentos ausentes; a epistemologia dos agentes ausentes e a revisitação da representação e dos seus limites.
No quinto capítulo, "Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum", o autor procura mostrar até que ponto é possível estabelecer o equilíbrio entre estrutura e ação na análise da produção de regulação social na transição paradigmática. Neste ponto, apresenta três questões: 1) é o reconhecimento de que, na sociedade, há uma pluralidade de ordens jurídicas, de formas de poder e de formas de conhecimento; 2) é a orientação da ação transformativa e dos obstáculos que ela enfrenta e 3) as relações entre as sociedades nacionais, os sistemas internacionais e a economia mundial. No geral, ele procura fazer uma abordagem mais abrangente, incluindo o direito, o poder e o conhecimento em pé de igualdade, sem os fundir em totalidades redutoras, mas, pelo contrário, alargando o âmbito da diferenciação e da fragmentação, salientando os fios que os articulam em rede. Nesse sentido, Santos procura demonstrar que "há uma centralidade do poder do Estado, do direito e da ciência moderna que não pode ser negligenciada nem subestimada, os três estão espalhados em todas as constelações de poder, de direito e de conhecimento que emergem nos campos sociais concretos, mas funcionam sempre em articulação com outras formas de poder e de direito não estatais e com várias formas de conhecimento científico" (p. 275).
No sexto capítulo, "Não disparem sobre o utopista", Boaventura retoma e amplia suas [fim da página 138] propostas utópicas apresentadas em Pela mão de Alice (1994: 243 e ss.). Assim, procura avançar mais na identificação de novos caminhos emancipatórios através da utopia, ou seja, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a oposição da imaginação à necessidade do que existe. Para ele o pensamento utópico tem um duplo objetivo: reinventar mapas de emancipação social e subjetividades com capacidade e vontade de os usar. Dessa forma o "objetivo principal não foi, portanto, apresentar o projeto de uma nova ordem, mas tão-só mostrar que o colapso da ordem ou da desordem existente não implica, de modo algum, a barbárie. Significa, sim, a oportunidade de reinventar um compromisso com uma emancipação autêntica, um compromisso que, alem do mais, em vez de produto de um pensamento vanguardista iluminado, se revela como senso comum emancipatório" (p. 383).
O autor entende a utopia como "o realismo desesperado de uma espera que permite lutar pelo conteúdo da espera, não no geral, mas no exato lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorrem efetivamente. É este o realismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente" (p. 36).
Notas
1) O livro a que se refere esta resenha é o primeiro volume de uma coletânea que tem como plano geral: Volume 1 - A crítica da razão indolente; Volume 2 - O direito da rua: ordem e desordem nas sociedades subalternas; Volume 3 - Os trabalhos e Atlas: regulamentação e emancipação em Redópolis e o Volume 4 - O milênio órfão: para um futuro da cultura política.
2) Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I – João Pessoa). Professor da Universidade de Tocantins.
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Normas Para Publicação
Número 17 - set/2001 |
Universidade Federal da Paraíba |
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb
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