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Política & Trabalho 17 - Setembro / 2001 - pp. 80-90


RECOMPOSIÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR E
COORDENAÇÃO DOS PRODUTORES PARA A
GESTÃO DE BENS COMUNS NO NORDESTE BRASILEIRO (1)

Eric Sabourin (2)
Gabrio Marinozzi (3)

Introdução

A ação coletiva foi definida por Olson (1966) como "a ação de um grupo motivado por um objetivo comum na produção de um bem coletivo". Nos referimos à noção de "bens comuns" proposta por Ostrom e Ostrom (1978), ou seja, "de bens coletivos que, por natureza ou por convenção são associados a uma restrição de uso". No Nordeste brasileiro esse é o caso dos pontos de água, dos pastos comunitários, dos perímetros de irrigação, das organizações de produtores. Este artigo analisa os processos de coordenação dos produtores através das dinâmicas de ação coletiva, de modo a identificar medidas de apoio à decisão coletiva.

Dois exemplos de coordenação dos agricultores familiares para a gestão de um bem comum no semi-árido brasileiro são apresentados. O primeiro trata da evolução do manejo de pastos comunitários entre os produtores das comunidades camponesas de Massaroca (município de Juazeiro, Bahia). O segundo exemplo concerne à coordenação dos produtores dos perímetros irrigados de Juazeiro e Petrolina (Pernambuco), para a gestão da comercialização dos produtos. Finalmente concluímos com alguns ensinamentos trazidos pela análise das formas de coordenação dos produtores em matéria de apoio à tomada de decisão coletiva.

Manejo de um bem comum: os fundos de pasto

No norte do Estado da Bahia, chama-se "Fundo de Pasto" (4)  ou "Fecho de Pasto" às terras utilizadas para o pastoreio comunitário. Essas "terras comuns" fazem parte do patrimônio coletivo de comunidades rurais, como aquelas da pequena região de Massaroca (Juazeiro - BA). Esse modo de exploração dos recursos naturais funcionou durante vários séculos, mas hoje tornou-se mais raro, sendo o espaço apropriado e cercado individualmente (Caron, 1998).

[fim da página 80]

Permanência dos fundos de pasto no Nordeste da Bahia

Ao contrário da maioria das zonas do Nordeste semi-árido, no Sertão norte da Bahia não se observava a delimitação de áreas por cercas de forma generalizada, até a década de 70 do século XX. O uso coletivo para pastoreio das áreas de caatinga permaneceu devido ao aumento relativamente lento da densidade demográfica e ao clima seco. O pastoreio comunitário da vegetação natural assegurou a criação extensiva de caprinos e ovinos (e em menor parte de bovinos). As raras parcelas de caatinga cercadas eram reservadas para a manipulação dos animais e para os cultivos alimentares anuais (milho, feijão, mandioca), praticados essencialmente para o auto-consumo, com rendimentos aleatórios.

O Fundo de Pasto é, portanto, um espaço aberto acessível a todos os membros da comunidade para um uso coletivo de seus recursos naturais: pasto, corte de madeira, extrativismo de frutos e mel e caça. Mais que uma propriedade coletiva, ele corresponde a uma ausência de propriedade e a um direito de uso generalizado entre os membros de uma mesma comunidade sobre os solos e sobre seus recursos naturais (Weber, 1995). Remanescente de práticas tradicionais de exploração coletiva do meio pelas comunidades familiares do Sertão do São Francisco, o Fundo de Pasto tem uma realidade jurídica variada: exploração coletiva de terras devolutas por um grande proprietário, acordo entre proprietários vizinhos ou mesmo a exploração pelos membros de uma comunidade descendentes do primeiro proprietário (Garcez, 1987).

A partir dos anos 70, a intensificação econômica devido à integração ao mercado, a inflação crescente com a transferência de investimentos para imóveis e a implantação dos primeiros projetos de irrigação no vale do São Francisco acentuaram a pressão legal - ou não - sobre o território. Surgiu uma dinâmica de apropriação individual com o cercamento de áreas até então utilizadas como Fundo de Pasto (Garcez, 1987). A reação das comunidades de produtores a essas dinâmicas territoriais evidenciam-se com estratégias institucionais dando lugar a formas originais de gestão das áreas comuns e a uma adaptação regional da política de reforma agrária.

Organização dos produtores e legalização dos fundos de pasto

O projeto de regularização do fundo de pasto

A partir de 1982, no quadro da política de reforma agrária, o Instituto de Terras da Bahia (INTERBA) tornou-se responsável pela execução de um projeto de regularização dos títulos fundiários financiado pelo Banco Mundial e pelo Estado da Bahia. As especulações em torno dos Fundos de Pasto levaram estas instituições a propor a regularização fundiária e de cadastramento das terras públicas, das terras de uso comum e das áreas privadas das comunidades rurais. (Garcez, 1987).

Tratou-se, por parte do Estado, de uma legalização das práticas camponesas e das formas de uso comunitário dos recursos através da propriedade associativa. Juridicamente, os agricultores de uma mesma comunidade ou usuários de uma área determinada de Fundo de Pasto constituem uma associação de direito civil sem fins lucrativos, que garante o título de [fim da página 81] propriedade coletiva, equiparado à legislação de reforma agrária, almejando as vantagens dos beneficiários dos projetos de reforma agrária: crédito individual e coletivo subsidiado, subvenções para infra-estruturas sociais comunitárias e assistência técnica pública.

Impacto em Massaroca

Foi no contexto dessa intervenção que ocorreu a evolução da gestão das terras de Fundo de Pasto. Houve uma convergência de interesses entre os programas do Estado, os projetos das comunidades de pequenos agricultores e os outros atores que intervinham localmente, tais como a Igreja, os sindicatos agrícolas e os técnicos dos serviços de apoio.

As comunidades de agricultores buscavam preservar seus sistemas de produção baseados no acesso às áreas de pastoreio, em um contexto de insegurança exacerbada (5). O Estado procurava fixar os pequenos produtores na zona rural, integrando-os à economia nacional. A Igreja Católica, os sindicatos agrícolas e as ONG’s afirmaram-se como novos intermediários entre o Estado e os agricultores, promovendo a autonomia das comunidades ou exercendo novas formas de tutela sobre os pequenos produtores que se tornaram eleitores (Sabourin et al, 1996 a).

Como resultado destas dinâmicas, entre 1982 e 1987 foram criadas várias associações nas comunidades da região. Nove destas associações foram confederadas em 1989 em uma organização supracomunitária, o Comitê das Associações Agropastoris de Massaroca (CAAM). Constituído como instrumento de defesa dos interesses coletivos, o Comitê elaborou um projeto de desenvolvimento local do distrito rural de Massaroca (Tonneau, 1994). Sete das nove comunidades do CAAM dispunham de áreas de Fundo de Pasto, reunindo o equivalente à 100 ha por família. Três comunidades conseguiram o título de propriedade; duas possuem o Fundo de Pasto já delimitado, mas ainda sem registro por razão de litígios com proprietários vizinhos. No entanto, os trabalhos de cadastro não puderam ser realizados em duas comunidades dotadas de associações por falta de recursos, segundo o Interba.

Estabelecimento de novas regras de manejo

Se, originariamente, uma dinâmica associativa e um consenso social permitiram a legalização dos direitos de propriedade das áreas comuns, o mesmo não é válido no que concerne aos investimentos e aos arranjos que poderiam ser realizados. Várias estratégias de ação se destacaram nestas comunidades (Caron, 1998).

A maioria das comunidades preferiu optar pelo "resguardo" relativo das áreas comuns para fins de reserva forrageira para os anos de seca e de reserva fundiária para a instalação dos jovens. Não há nenhum investimento, o fundo de pasto fica aberto à todos.

As comunidades que dispõem de vastas áreas comuns não delimitadas [fim da página 82] oficialmente e sem título de propriedade continuam gerenciando-as segundo a tradição que prevê acolher rebanhos de agricultores atingidos pela seca. Fazendeiros dos municípios vizinhos abusaram dessa hospitalidade. Esta prática se monetarizou recentemente. Teoricamente os criadores remuneram uma família para ter acesso às suas pastagens individuais. Mas na ausência de cercas, os animais se espalham pelo Fundo de Pasto da comunidade.

Em decorrência disto, a comunidade de Cipó, mais ameaçada pela proximidade de projetos de irrigação, optou por uma estratégia de defesa ativa, através do cercamento das áreas comuns.

Mesmo se historicamente o Nordeste do Brasil assistiu a uma apropriação privada dos recursos coletivos, em Massaroca ainda não houve uma redistribuição individual destes Fundos de Pasto; ao contrário, evidenciam-se novas formas de gestão coletiva destes bens comuns.

Assim, a escolha inelutável entre propriedade privada e controle do Estado dos recursos coletivos proposta por Hardin (1968) não parece justificada. De acordo com as críticas de Weber e Reveret (1993) a esta análise pode-se batizar de "tragédia do livre acesso" os fenômenos estudados por Hardin.

Independentemente do regime de propriedade, os percursos de caatinga não cercados são caracterizados pelo acesso livre e pela ausência de rivalidade. Portanto, enquanto a densidade demográfica e as condições climáticas não transformem o pasto num recurso raro, ele pode ser considerado como bem público (Ostrom & Ostrom, 1978). Ao contrário da profecia trágica de Hardin, a pressão leva a emergência de estratégias de ação coletiva para a sua preservação. Isto corresponde às observações indicadas por Ostrom (1992) para mostrar como os usuários podem produzir regras próprias e novas soluções institucionais para a gestão de recursos comuns.

Podemos dizer que a raridade do bem muda seu "estatuto": de público vira comum, no sentido dado por Ostrom e Ostrom (1978) através a redefinição das regras de acesso e de exclusão (6). Neste processo de construção coletiva de referências comuns aparecem novos problemas: a atribuição de um valor monetário ao uso do bem, a sua gestão e manutenção (investimentos, impostos), as sanções para os free riders ou infratores. São tanto motivos de conflito como objetos de aprendizagem coletiva (Caron, 1998).

O controle do acesso ao Fundo de Pasto, ou em outras palavras a exclusão, é a primeira reivindicação no quadro das comunidades, mesmo se existem limites técnicos e econômicos. A exclusão passa pela capacidade de identificar os beneficiários, medir o uso efetivo do bem e o valor que poderia lhe ser atribuído. Esta dificuldade existe também no seio das comunidades, por exemplo: para a repartição do pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR), que em alguns casos pode ultrapassar o valor dos créditos subsidiados, uma das soluções adotadas é repartir de maneira igual o imposto entre as famílias ou mesmo dividir proporcionalmente em função do tamanho dos rebanhos (Sabourin et al, 1997).

[fim da página 83]

No caso de fortes conflitos - ou de pressão sobre o recurso - o bem pode passar de comum a privado, uma vez que é atribuído valor de mercado para o seu uso ou que se manifestam especulações fundiárias, como no caso da possível instalação de projetos de irrigação em Massaroca. O risco de tal evolução é a exclusão do acesso à terra de um número sempre maior de produtores, ou a fragmentação dos percursos, reduzindo os recursos e ameaçando os rebanhos locais já afetados pelas severas condições climáticas (Caron, 1998).

Experiências como a de Massaroca trazem lições técnicas e jurídicas, num momento em que o Brasil - sociedade e Estado confundidos - se vê obrigado a repensar ou a atualizar a política de reforma agrária. Os projetos de legalização dos Fundos de Pasto oferecem referências práticas e institucionais para a região Nordeste e para outras zonas agro-silvo-pastoris do país, como os campos gerais do norte do Estado de Minas Gerais ou os faixonais do Paraná.

Coordenação para a comercialização nos perímetros irrigados

O pólo Petrolina – PE / Juazeiro - BA, no Sub-Médio São Francisco, desenvolveu-se rapidamente em conseqüência dos investimentos na irrigação e passa, hoje, por uma especialização na fruticultura irrigada. Nos últimos 30 anos foram implantados seis perímetros públicos de irrigação, perfazendo um total de 45.000 ha irrigados, entre os quais distinguem-se pequenos irrigantes (chamados de “colonos” e instalados em lotes de 5 a 10 ha) e empresas com mais de 10 ha. Nos perímetros públicos da região foram distribuídos 2.500 lotes irrigados aos colonos, num total de 18.000 ha irrigados e 310 lotes para as empresas num total de 27.000 ha (Codevasf, 1998).

Dinâmicas de recomposição e coordenação nos perímetros irrigados

Num perímetro irrigado, o manejo da água, o acesso às informações e ao mercado são funções que precisam de uma coordenação e de uma ação coletiva, dada sua indivisibilidade e seu caráter estratégico (Ostrom, 1992). Esta coordenação, assegurada originalmente pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) através de uma organização centralizada e assistencialista, foi transferida, durante a última década, a organizações de usuários, cooperativas ou distritos de irrigação.

A organização para a comercialização dos produtos é também objeto de uma ação coletiva. Tal organização assemelha-se a um bem comum, definido como um bem coletivo associado a restrições de uso e a regras de repartição dos direitos deste uso (Linck, 1998). Tais regras são determinantes na introdução de inovações técnicas ou organizacionais e sua apropriação pelos produtores familiares. Durante os anos 70 e 80, os "colonos" reproduziam seu sistema de produção via cultivos anuais (tomate, fumo, etc.) em sistema de integração vertical com as indústrias ou grandes empresas (melão). Nos últimos anos esses "colonos" responderam às novas dinâmicas econômicas nacionais e internacionais, modificando radicalmente seus sistemas de produção através da plantação de espécies perenes (bananeira, mangueira, coqueiro anão, goiabeira, acerola, uva, etc.) e manifestando um dinamismo e uma diversificação não encontrados nos setores empresariais.

Porém, as organizações criadas pela Codevasf não acompanharam com a [fim da página 84] mesma rapidez essa evolução e as novas exigências do mercado. Na maioria dos casos, elas respondem mais a funções de controle e de assistência paternalista que a uma verdadeira coordenação dos pequenos produtores. Podemos observar, nestas organizações, a reeleição dos mesmos dirigentes "históricos" como a maior expressão de uma delegação de poder essencialmente passiva e rotineira. Este papel mediador dos produtores mais ligados a autoridades e tutelas é característico da lógica camponesa em situação de dependência.

Coordenação e aprendizagem coletiva
para o acesso a um bem comum: o mercado


No caso do acesso ao mercado sempre houve diferenciação entre as formas de coordenação dos pequenos irrigantes e das empresas. Por exemplo, para produtos como a banana e o coco verde, introduzidos pelos colonos, a coordenação se caracteriza pela falta de regras comuns explicitadas entre os produtores e pela diversidade de regras específicas existentes entre produtores e intermediários. Esta diversidade e a compartimentação das informações permitem aos comerciantes reduzir o poder de negociação dos pequenos produtores.

Os empresários das áreas irrigadas, ao contrário, adaptaram-se rapidamente à nova organização em distrito de irrigação, criando paralelamente novas instituições de cooperação, como a Valexport (e suas câmaras setoriais Brazilian Grapes Marketing Board, Grupo da Manga do Vale, etc.) para as funções não coordenadas pelos distritos: comercialização, marketing, pesquisa, produção e circulação das informações, em particular sobre mercado. Encontram-se nesse caso dinâmicas de construção de territórios inovadores (Beccatini, 1991), mas esta coordenação construiu-se também para excluir os produtores que não têm acesso às inovações produtivas e organizacionais (Pecqueur, 1995; Linck, 1998). Prevalecem riscos de exclusão se a norma empresarial do "padrão exportação" torna-se a única referência, dando lugar a casos de reputação mal construída se uma grande parte dos produtores não consegue produzir com os padrões fixados pelas grandes empresas.

No caso das cadeias de uva e manga, são as empresas que determinam as regras e estruturam a comercialização (padronização da qualidade, integração vertical, fixação dos preços, etc.), com o objetivo de excluir os concorrentes potenciais. Para tal, os empresários locais associados à Valexport, administram uma rede de informações para reagir rapidamente às novas exigências de qualidade e às rápidas mutações do mercado internacional. Este tipo de estrutura permite uma coordenação entre os empresários através de convenções de cooperação, mais do que através convenções de controle ou de concorrência (Marinozzi, 1997).

Nos perímetros sem cooperativas, dotados de um distrito de irrigação único, como o Projeto Nilo Coelho, houve uma fase de criação de associações por setor hidráulico pelos colonos, a fim de assegurar investimentos coletivos e comercialização em comum através do acesso ao crédito associativo. A maioria das tentativas fracassou devido à diversidade das estratégias individuais e à falta de competência profissional em matéria de comercialização. Os pequenos produtores procuram, então, novas formas de negociação de preços e mercados, [fim da página 85] através de grupos reduzidos que permitem uma melhor administração e circulação das informações de mercado.

Aparecem, assim, novos espaços de coordenação e de aprendizagem coletiva dos "colonos", na forma de estruturas de proximidade informais, reunindo grupos de vizinhos ou de colegas que juntam a produção para a comercialização. Alguns pequenos produtores, organizados em associações estão conseguindo financiamentos para unidades de processamento das frutas (fabricação de sucos e polpas). Estes grupos, via seus líderes, inserem-se nas redes de comercialização, geralmente através dos intermediários, das empresas ou de suas associações. Este tipo de coordenação permite o acesso à informação, reduz os custos de transação e os riscos de não pagamento pelos intermediários, facilitando a aprendizagem coletiva em termos de construção da qualidade.

Ensinamentos em termos de análise e de apoio à decisão

Transformação da agricultura e dinâmicas de coordenação

Os dois casos oferecem exemplos da capacidade de recomposição da agricultura familiar nordestina frente às mudanças do contexto ou a novas oportunidades de desenvolvimento. Os processos de coordenação da ação coletiva permitem articular as escolhas técnicas às mudanças institucionais, assim como as estratégias individuais à ação pública.

Nos perímetros irrigados do São Francisco, apesar das tentativas de impor um modelo único (cooperativa ou distrito), a diversidade de origens e de situações iniciais dos produtores levou a trajetórias individuais e coletivas múltiplas e à evolução paralela de vários modos de coordenação: integração industrial, associações de produtores, grupos informais de pequenos produtores.

No caso de Massaroca, a criação de associações corresponde a uma modernização das formas de reciprocidade camponesa, num contexto novo, destinado a permitir e a tornar legítimas face à administração e à sociedade global práticas de redistribuição comunitária dos recursos naturais. Mas a coordenação não se realiza exclusivamente via estruturas jurídicas formais, constrói-se também através de relações informais de proximidade. Em Massaroca é o caso da comunidade, do mutirão (ajuda mútua) e das trocas de trabalho; nos perímetros ela realiza-se através da comercialização em comum, através de redes informais dos pequenos irrigantes familiares (Sabourin et al, 1996 b).

Pode-se ainda observar uma complementaridade entre instituições camponesas e organizações "modernas" profissionais em Massaroca e, em menor grau, nos perímetros irrigados, atribuída à reinstalação recente de produtores de diversas origens: camponesa, rural (artesãos) ou urbana (comerciantes, técnicos, profissionais liberais).

Conseqüências em termos de análise e apoio à decisão

Considerar as dinâmicas e formas de coordenação permite considerar os pontos de estrangulamento no processo de organização dos produtores, formulando propostas em termos de apoio à decisão coletiva.

As dificuldades climáticas levaram os produtores de Massaroca a reduzir [fim da página 86] o tamanho de seus rebanhos e a procurar uma melhor valorização econômica dos animais. Isto repercutiu em duas linhas de ação do Comitê de Associações de Massaroca. De um lado, o Comitê abriu uma linha de crédito e subsídios para financiar investimentos coletivos nas comunidades. Várias comunidades optaram pela valorização do fundo de pasto: recursos hídricos ou cercamento da área comunitária. Por outro lado, o CAAM promoveu estudos de mercado e projetos de processamento artesanal ou semi-industrial da carne caprina e ovina. Essas duas ações tiveram desdobramentos sobre a estratégia de cooperação do CAAM e das associações. Motivados pelos créditos do PROCERA (7)  e do Banco do Nordeste, passaram a articular-se com outras organizações ao nível regional e estadual, no intuito de viabilizar projetos de maior porte, como matadouros, frigoríficos ou unidades de processamento.

Aparece assim, com a intensificação da integração ao mercado, uma tendência para a especialização das funções das organizações de produtores familiares. Uma das novas comissões permanentes do Comitê de Massaroca, por exemplo, trata da "gestão dos equipamentos coletivos" e procura estabelecer um sistema de gestão e contabilidade para regulamentar a administração do caminhão e do trator adquiridos com crédito coletivo. Estas formas de "burocratização" e especialização concentram-se em torno de funções chave: acesso ao crédito, políticas de comercialização, informação sobre preços e mercado (no caso dos ovinos e caprinos em Massaroca).

Podemos observar um processo semelhante nos perímetros com relação à fruticultura irrigada. Neste caso, a tomada de decisão e ação coletiva resultam da formulação e implementação de regras comuns. Estas "ações em comum" vão se implementando a partir de representações comuns, que por sua vez são construídas pela socialização de informações já disponíveis e elementares. O apoio à tomada de decisão coletiva passa pelo acesso, pela criação e pelo controle destas informações, tais como custos de gestão dos perímetros e rede hidráulica, cálculo do custo da água, variação dos preços dos produtos no mercado, etc.

Face à complexidade de um perímetro irrigado (8), a proposta da pesquisa para os usuários e gestores foi a construção de um sistema de monitoramento e avaliação interativo (9). Tal instrumento deve facilitar a representação do funcionamento global do perímetro, a definição de estratégias, a hierarquização dos problemas e a identificação das soluções mais adequadas. O sistema de informação é construído a partir da identificação e do levantamento de [fim da página 87] indicadores comuns, mesuráveis e entendidos pelo conjunto dos atores. Permite a "descrição do funcionamento do perímetro, mas também avaliar as suas tendências de evolução e os seus limites de exploração" (Lidon, 1998). Um trabalho qualitativo prévio de identificação das redes de proximidade ou organizacionais, das práticas de coordenação e dos sistemas informativos preexistentes está na base da implantação de qualquer dispositivo novo.

O apoio à tomada de decisão baseada na negociação e na discussão de regras comuns, a partir das representações de cada grupo de atores, tem sentido e eficiência na medida em que existem as condições de diálogo. Assim, a geração e a socialização de informações aparece como base da coordenação das ações individuais com os objetivos comuns e da articulação entre escolhas técnicas e mudanças institucionais.

Conclusão

Os dois casos confirmam a relativa flexibilidade e capacidade de adaptação das agriculturas familiares, assim como a fragilidade de sistemas de produção submetidos a altos riscos: climáticos em Massaroca, mercadológicos para os perímetros irrigados. Novas formas de coordenação são construídas sem que as anteriores desapareçam. Existe, ao mesmo tempo, uma institucionalização dos modelos de organização dos produtores e uma complementaridade entre as instituições tradicionais baseadas em relações interpessoais e as organizações recentes, mais formalizadas e burocráticas.

Os dois exemplos mostram o interesse da análise das evoluções das formas de coordenação da ação coletiva entre agricultores familiares. Essa abordagem considera os imperativos sociais e as limitações específicas das lógicas técnicas e econômicas da agricultura familiar, permitindo abordar a relação entre a diversidade dos sistemas de produção e a diversidade das formas de articulação aos vários segmentos de mercados.

Uma avaliação das formas de coordenação e das relações entre práticas de redistribuição e de reciprocidade ou formas de intercâmbio e de concorrência permite esclarecer as estratégias coletivas. Essa análise qualifica os canais e os vetores dessas relações: parentesco, redes de proximidade ou organizacionais, especialização produtiva ou setorial, organizações profissionais locais ou por cadeia produtiva. Estas formas de organização, formalizadas ou não, constituem a base para a implementação ou estímulo de ferramentas de apoio à tomada de decisão coletiva, seja como sistemas de informação, sobre preços e mercados, por exemplo, ou através de estruturas ou formas de organização adaptadas ao manejo e à gestão dos bens comuns. Enfim, considerar as dinâmicas de tomada de decisão coletiva permite associar trajetórias de inovação técnica e organizacional, trajetórias de acumulação e evolução das formas de integração ao mercado, fundamentais para a caracterização dos processos de recomposição das sociedades rurais.

Referências Bibliográficas

Notas

1) Comunicação apresentada no Congresso Europeu de Latino-Americanistas - CEISAL 98: "América latina: cruce de culturas y sociedades. La dimensión histórica y la globalización futura", 05 a 08 de setembro de 1998, Halle-Wittemberg, Alemanha.

2) Engenheiro Agrônomo; doutor em antropologia; pesquisador do CIRAD (Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento); consultor do Programa Agricultura Familiar da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). E-mail: eric.sabourin@cirad.fr.

3) Engenheiro Agrônomo, doutorando em economia pela Université de Toulouse (França); pesquisador do CIRAD junto à EMBRAPA Semi-árido, Petrolina - PE. E-mail: gabrio.marinozzi@cirad.fr.

4) A expressão vem da oposição com os campos cultivados e quintais que ficam perto das moradias. A reserva de pasto fica nos "fundos" da fazenda ou da comunidade.

5) Na região de Massaroca, isto se deve às especulações fundiárias geradas pela concepção de um projeto de irrigação, o "Salitrão", cujo primeiro traçado compreende as áreas de Fundo de Pasto de várias comunidades.

6) O reconhecimento de títulos de propriedade coletiva é a oportunidade de uma mobilização coletiva entre os atores para a definição de novas regras comuns de uso.

7) Programa de crédito específico para as áreas de reforma agrária.

8) Os trabalhos tradicionais de ajuda à decisão situam-se no nível da empresa ou da unidade de produção, apoiando as decisões individuais (Sebillotte, 1990; Sebillotte & Soler; 1990). Num perímetro irrigado, a interdependência entre decisão individual e coletiva define ferramentas complexas de ajuda à tomada de decisão, integrando vários níveis de análise. Este é o objetivo de ferramentas de simulação e de "modelização multi-agente" (Vriend, 1994), mas estas ferramentas exigem uma análise fina do funcionamento dos vários componentes e atores do perímetro e suas representações de forma sistêmica (Attonaty & Pasquier, 1995).

9) Um Sistema de Informação Geográfico (SIG) permite a elaboração de um sistema participativo de gestão, facilitando a atualização e a utilização das informações.


RESUMO
RECOMPOSIÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR E
COORDENAÇÃO DOS PRODUTORES PARA A
GESTÃO DE BENS COMUNS NO NORDESTE BRASILEIRO


O artigo apresenta algumas reflexões sobre a coordenação da ação coletiva para a produção e a gestão de bens comuns no marco das atividades agropecuárias do semi-árido nordestino. O trabalho trata da evolução do manejo das pastagens comunitárias nas áreas de sequeiro do nordeste do Estado da Bahia (onde são chamadas de Fundo de Pasto) e da coordenação entre os produtores para a comercialização dos produtos dos perímetros de irrigação de Juazeiro - BA e Petrolina - PE. O estudo das dinâmicas de adaptação dos sistemas de agricultura familiar permite entender como a coordenação dos produtores pode contribuir para a reprodução das unidades agropecuárias familiares num contexto de fortes recomposições técnicas, econômicas e sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Agricultura Familiar; Bem Comum; Ação Coletiva; Coordenação; Brasil, Nordeste.

RÉSUMÉ
RECOMPOSITION DE L'AGRICULTURE FAMILIALE
ET COORDINATION DES PRODUCTEURS POUR L'ADMINISTRATION
DE MARCHANDISES COMMUNES DANS LE NORD-EST BRÉSILIEN


L'article présente une réflexion sur la coordination de l'action collective pour la production et gestion de biens communs dans le cadre de l'agriculture du nord-est brésilien semi-aride. Le travail traite de l’évolution de la gestion des vaines pâtures dans les zones d'élevage du Sertão du nord-est de l’Etat de Bahia (les Fundo de Pasto) et de la coordination entre producteurs pour la commercialisation des produits dans les périmètres irrigués de Juazeiro (Bahia) et Petrolina (Pernambuco). L’analyse des dynamiques d’adaptation de ces divers systèmes d’agriculture familiale permet de comprendre comment la coordination entre agriculteurs peut contribuer à la reproduction des exploitations familiales dans un contexte de fortes recompositions techniques, économiques et sociales.
MOTS-CLÉS: Agriculture Familiale; Bien Commun; Action Collective; Coordination; Brésil; Nord-est Brésilien.





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