Este acontecimento - um dos mais emocionantes de que a Horta há sido testemunha - desenrolado durante as escassas horas duma noite de Setembro de l8l4, teve larga retumbância e foi elemento que muito influiu no remate da guerra da independência norte-americana. Deu que falar e muito depois ainda deu que fazer. O leitor vai ver. Já dele me ocupei, e desenvolvidamente, num outro livro meu: Por causa dum ramalhete. É possível que, o repeti-lo agora, seja superfluidade ou impertinência; mas, pelo seu vulto, e por adstrito a um singular momento da vida faialense, impôe-se-me como obrigação neste enfileirar da história da ilha. Como repetição, porém, procurarei ser breve.
No dia 26 de Setembro de l8l4, pela uma hora da tarde, fundeou na baía da Horta o brigue corsário, americano. General Armstrong.
Uma diminuta embarcação de 246 toneladas, tipo favorito das unidades bélicas que a jovem república yankee, ainda falha de recursos, e a esbracejar pela sua emancipação, lançou ao oceano, de parçaria com particulares. Este concurso mercenário muito influiu na luta. Saíram estes barcos, quase todos, dos estaleiros de Baltimore. Em regra transportavam, como o Armstrong, seis a oito peças, entre elas uma de grosso calibre montada a meia nau. Eram geralmente comandados por oficiais da marinha de guerra.
O General Armstrong tornou-se lendário. Travou brigas com adversários por vezes mais fortes; fez presas numerosas e de importância. Triunfou sempre. Mesmo, por fim, vencido, triunfou. Armou-o em l8l3 a firma Yenkins & Haven, de New York, baptizando-o com o nome ao General, ministro da guerra, John Armstrong. Foi seu primeiro comandante Grey R. Champlin, e a seguir o capitão Samuel C. Reid, herói do combate na baía da Horta (1).
Samuel Chester Reid era um moço denodado que sabia aliar a acção do corso ao triunfo da sua bandeira. Antes de dirigir o General Armstrong, já andara nessa faina na escuna Boxier, quando guarda-marinha, sob as ordens do comodoro Pruxton. Adquirira experiência, superioridade. Espírito sagaz e deliberado. Olhos negros, fuzilantes, carregados de espessas sobrancelhas, duma agudeza que só se encontra no olhar dos marítimos.
Partiu o General Armstrong de New York furtivamente, na noite de 9 de Setembro de l8l4. Noite escura. Reid, desfraldando pano, picou a amarra, e de manso, faróis apagados para iludir o bloqueio, deslizou ao-de-Ieve, como nuvem leve, ao longo de Sandy Hook. Todavia os ingleses pressentem-no, e dois navios movem-se no encalço; mas Reid, que tem olho de lince, repuxa escotas, desenrola cutelos e joanetes, e com a ligeireza duma corsa nos flancos, bem aproado a leste, escapa-se. Os perseguidores, por mais que se esforcem, não o alcançam. Por volta do meio dia seguinte desistem da caça (2).
A 26, como ia a dizer, ancorou no Faial, ufanamente. Uma hora da tarde. Dia formoso, exuberante de sol, que espalhava um polvilho de cintilações na planura vasta da baía. Sorria a vila, toda de branco, batida pela veemência da luz... Precisava de fazer aguada, que logo começou a meter e que, como navio beligerante, no prazo de vinte e quatro horas devia estar terminada.
Samuel Reid desembarcou, correndo a cumprimentar o cônsul John B. Dabney, que lhe fez convite para jantar. Foi acolhido afectuosamente: a consuleza distínguiu-o, oferecendo-lhe um lindo ramo de flores do seu jardim. Findo o jantar regressou a bordo acompanhado pelo cônsul.
Mostrou com envaidecimento o seu navio. Tudo como a bordo dum barco de guerra: ordem, hierarquia, apuro, arrumação, armamento numeroso, toda a gente uniformizada. O cônsul confessou ter na verdade imaginado, ao admirar-lhe o porte, vendo-o entrar, que era um navio da marinha de guerra (3).
E nesta afável conversa se entretinham, já ao findar da tarde - quando surgiu um navio, velejando baía dentro, e que fundeou a menos dum tiro de pistola de distância do Armstrong. Reid reconheceu-o ao primeiro relance. Era um navio inimigo, o brigue de guerra inglês Carnation. Após ele apareceram a fragata Rota e a nau de linha Plantagenet, que montava 74 peças, sob o comando do almirante Robert Lloyd (4).
Não havia ainda três semanas que estes navios tinham ancorado na Horta, a encherem-se de provisões, que montaram a mais de 2.700 libras. Dos faialenses hospitaleiros receberam obséquios, demonstrações de simpatia (5).
O Carnation trocava sinais activamente com a nau almirante, que tinha tomado posição suspeitosa, mais a Rota, ao fundearem. Dos turcos do Carnation desceram quatro embarcações, notando-se-lhe a bordo uma desusada agitação e vozes de comando que Samuel Reid ouvia perfeitamente. O cônsul, porém, tranquilizava-o: Portugal e Inglaterra eram nações amigas, a Horta porto neutral... «Pois sim, respondeu, mas não me apanham a dormir» (6).
E, não. Regressado John Dabney a terra, tratou de precaver-se. A primeira ideia foi tentar um esforço para alcançar o mar largo. O Armstrong era ágil. Mas o vento acalmara; a tentativa, sendo viável, era duvidosa. Pensou então aproximar-se da terra. No entanto, ao dispor-se para esta operação, viu aproximar-se dele um escaler do Carnation seguido de três outros com gente armada, e manifestamente com intenções hostis. Era cerca das oito horas da noite; e a lua em quase plenilúnio permitia que tudo se observasse à vontade. Reid, repetidas vezes, alçando o porta-voz, bradou: «Keep off or I shall firel» (Ao largo senão eu atiro!) (7). Mas as embarcações avançavam, remando sempre com vigor. Prolongaram-se com o brigue; - e então, sem mais meditar, Samuel Reid ordenou à sua gente que fizesse fogo (8). Tão cerrada e certeira foi a descarga que logo matou dois e feriu sete dos ingleses (9), fazendo retirar os agressores. Do Armstrong morreram o imediato e outro tripulante. Sem demora o capitão Reid pôs em prática o seu propósito de se achegar à terra, amarrando de popa e proa, à pequena distância «dum fraco tiro de pedra do castelo» (10).

Pouco depois das nove horas recebeu o governador militar um ofício do cônsul americano, participando a agressão, violação da neutralidade, e que, na espectativa dum novo e mais formidável ataque, pedia que o navio da sua nacionalidade fosse protegido «ou com força ou com representações aos senhores
comandantes britânicos » (11).
Imediatamente partiu o governador para o castelo, expedindo, antes disso, ao chefe da armada um ofício pedindo, em nome da neutralidade de Portugal, reconhecida por Sua Majestade Britânica, se abstivesse de qualquer hostilidade contra a escuna General Armstrong, que a necessidade de água obrigara a arribar à Horta (12). Robert Lloyd pouco se importou com os queixumes da autoridade local.
Cerca das onze da noite verificou o governador, com espanto, que o chefe britânico se propunha a mais excessos. O Carnation melhorava de poiso, com uma dúzia de escalares atrelados, pela popa. O governador, pertíssimo, como estava, do campo de acção, de óculo assestado, tudo observou minuciosamente. Com ele estavam muitas pessoas das principais da terra, olhando, num misto de pavor e de repulsa, o desenrolar do trágico sucesso. Toda a população, uns de suas janelas, a maior parte aglomerada por toda a orla da vila, sobre a muralha e no areal, pasmava para a largueza da baía, onde se destacavam as manchas negras dos navios e o manobrar das embarcações, iluminada pelo luar.
Os botes deixaram o Carnation e aproximaram-se. Traziam pouco mais ou menos 300 homens, e vinham bem apetrechados, com algumas peças, bacamartes e outras armas. Dez minutos depois da meia-noite decidiram-se ao ataque, formando em linha estratégica - e avançaram: mas uma descarga súbita e bem apontada do canhão Long Tom do Armstrong fê-los vacilar. Isto foi, porém, um momento. Eram muitos, não duvidavam da vitória. Soltam três brados guerreiros, e de novo arrancam dos remos, com galhardia. Um fogo cerrado e destro acolhe-os. Gente ensaiada nos combates, os americanos eram temíveis: não falhavam tiro. Alguns homens mergulharam no fundo dos escalares. Todavia investem, investem sempre, determinados a uma abordagem. Fazem várias tentativas. Duas ou três embarcações conseguem acostar ao General Armstrong; mas, alvejados à queima-roupa e a golpes de arma branca, homem que trepasse era criatura que tombava varada. Durou isto vinte e oito minutos. A chacina foi enorme. Informa-nos o governador militar no seu relatório, que o cônsul britânico lhe referiu, em conversa, ter visto a relação de bordo manifestando 116 mortos e feridos.
Não acreditou. Segundo os seus cálculos devia de ter sido muito mais, porque viu três dos escaleres encalharem na praia sem uma única pessoa dentro, e dos que retiraram, um apenas com duas praças, outro com cinco, dois levando sete a oito, e os restantes também muito desfalcados, conforme bem se observava. Nas duas refregas tiveram os americanos um oficial e um marinheiro mortos, e feridos dois oficiais e cinco marinheiros (13).
O cônsul americano John Dabney diz pouco mais ou menos o mesmo no seu relatório. Seguem-lhe as pisadas os dois autores que estou a consultar, George Coggeshall na History of the American Privateers e Ralph M. Eastman no seu opúsculo Some famous privateers of New England.
Escreveu o cônsul americano: «... perto de 400 homens estavam nos botes quando começou o ataque e não existe dúvida no parecer dos numerosos espectadores da cena
que mais de metade deles foram mortos ou feridos, muitos botes foram destruídos; dois deles ficaram atracados ao brigue literalmente cheios dos seus próprios mortos. Destes dois botes somente 17 homens chegaram a terra vivos... Os ingleses mortificados com esta assinalada e inesperada derrota tem procurado ocultar a extensão da sua perda:
admitem contudo que, compreendidos os mortos na acção e os que morreram depois perderam para cima de 120 homens da flor dos oficiais e marinheiros. O capitão da Rota disse-me que perdera 70 homens do seu navio...» - Arquivo dos Açores, XII, 70
Em difícil empresa se tinham metido os ingleses - mais difícil do que haviam imaginado. Os americanos entricheirados, em sua casa, batendo-se como feras que se defendem, valiam por quatro. O próprio capitão Reid, ambidextro, matava às duas mãos, acutilando com a direita e disparando com a esquerda as pistolas que lhe passavam carregadas.
Não desanimou o chefe da armada, Robert Lloyd, humilhado por tal desenlace; pelo contrário, de orgulho ferido, mais escumou de raiva. Imediatamente, apenas dez minutos depois da desastrosa acção, o governador recebeu dele um oficio a queixar-se de que um bote do navio debaixo do seu comando fora agredido pelo General Armstrong, sem a mínima provocação.
Isto é que se chama torcer o bico ao prego. Então - diz bem o cônsul americano - mandar, como mandou, reconhecer um navio de nacionalidade estranha, dentro dum porto neutro, por quatro embarcações armadas, que avançam hostilmente contra o mesmo navio, sem atender às advertências que de bordo dele, nesse momento, são feitas - que seria? (l4).
Fechando a missiva escrevia com arrogância: «... estou agora determinado a tomar posse dela (a escuna Armstrong, dizia) e espero que ordeneis à Fortaleza para proteger a força empregada para esse fim» (15). Que desplante! E se bem o disse melhor o fez.
Respondeu o governador sem titubear, in continenti. Era uma hora da noite. Declarava-se «bastantemente sentido» pelos factos praticados e pelo mais que ainda podia suceder, acrescentando que das informações oficiais obtidas, se coligia terem sido «os escaleres britânicos os primeiros que acometeram a escuna americana». Receava funestas consequências daquilo que acabara de presencear, e rogava ao comandante que desse um testemunho de boa amizade e aliança, pondo termo às hostilidades principiadas (16). Depois de escrito este ofício, meditando melhor, entendeu que seria mais proveitoso ter uma conferência com o comandante Robert; - e rabiscou outra epístola, solicitando a entrevista (17). Foi portador de ambas as mensagens o próprio oficial da Plantagenet, Mr. Huggins, que trouxera a carta de Robert Lloyd. Ao dito oficial disse o governador que se «prestava a ir pessoalmente a bordo da nau, visto o seu chefe se achar doente duma perna». Inúteis estes bons propósitos (18).
O cônsul Dabney, sem dúvida prevenido dos perversos planos do chefe britânico, escreveu ao capitão Reíd louvando-o pelo glorioso triunfo de há instante e advertíndo-o do novo perigo: não se expusesse sem proveito a um combate desigual; afundasse o seu navio e viesse refugiar-se em terra com a sua brava gente. Foi o filho. Charles Dabney quem levou a carta a bordo do corsário (19).
Samuel Reid correu a terra para se certificar pelos miúdos da veracidade da notícia. Tudo era verdade. Ainda mais: declarava o almirante que, se lhe pusessem impedimento ou encontrasse alguma hostilidade por parte do castelo, havia «de olhar para esta ilha como inimiga de S. M. Britânica e tratar o castelo e a vila como tal» (20).
Retrocedeu o capitão Reid a tomar conta do seu posto, para o que desse e viesse. Nascia o sol. O Carnation, de pano solto, navegava, procurando aproximar-se de terra. Pelas seis horas e um quarto, atravessando gáveas, emparelhado com os navios mercantes surtos no porto, encetou fogo contra o General Armstrong. O corsário defendeu-se valorosamente, atingindo por mais duma vez com os tiros do seu Long Tom o barco inimigo, que emudeceu, deu de volta, e foi à fala com a nau capitânia (21). Aproveitou Samuel Reid este intervalo para abandonar o seu navio. Avariado como estava, inavegável, toda a mais resistência seria vã. Fez desembarcar os seus mortos e feridos e conduziu para terra o mais depressa possível tudo quanto pôde – malas da equipagem, armas, abastecimentos, petrechos de bordo. Ao mesmo tempo ordenou que o navio fosse afundado para o ínimigo se não vangloriar de toma-lo (22).
Cerca das oito horas voltou o brigue inglês e renovou o ataque ao corsário, então já de todo abandonado e encalhado. Desta feita disparou uns cinquenta pachorrentos tiros de bala. Após isto mandou dois escaleres saquear e incendiar o General Armstrong. Assim recriado pelo insigne triunfo, retirou-se, indo retomar, pausadamente, o seu lugar no fundeador (23).
Logo que os americanos desampararam o navio, e cumprido o dever piedoso de sepultar os mortos e hospitalizar os feridos, refugiou-se a tripulação em sítio escuso, fora da vila, porque constava querer o almirante aprisioná-los como vencidos. Se assim era, seria o cúmulo. De facto pretendeu essa violência; mas, considerando melhor, mudou de parecer e adoptou outro estratagema. Queria que prendessem e lhe enviassem dois homens da sua tripulação, desertores na América, que se achavam entre os fugitivos. Marchou uma força, que capturou e conduziu os americanos à vila para uma inspecção por oficiais ingleses, perante o governador. Os homens procurados afinal não existiam. O governador militar não arrolou este episódio no seu relatório. Porquê? Na verdade honrava pouco... Quem nos transmite o caso explicitamente, e por sinal bem codimentado, é o cônsul americano. Ele e o capitão Reid, convidados para assistirem a este acto, determinadamente se recusaram a sancionar com sua presença o humilhante exame (24).
O comodoro Robert Lloyd, logo após a sua façanha, pediu licença para efectuar em terra, pelas duas horas da tarde o funeral dos seus oficiais mortos, e ao mesmo tempo desembarcar alguma tropa para as devidas homenagens. O governador acedeu, porém sob condição de que a tropa viria desprovida de armas. Quando do abandono do corsário fizera apreender todo o armamento conduzido a terra pelos americanos; da mesma sorte, para inteira equidade, demonstrava ao almirante a conveniência de só permitir o desembarque em número reduzido da sua gente, sendo seu propósito não admitir nas ruas da vila aqueles que se apresentassem armados. Robert Lloyd nenhuma objecção opôs. Por outro lado, junto do cônsul americano e capitão Reid, o governador solicitou também providências: esperou dever-lhes o cuidado das «ordens necessárias para que nenhum americano estivesse nas proximidades desse acto (o funeral) a-fim-de evitar alguma rixa, e por consequência depois desordens de maior consideração» (25).
Com aquela proverbial pontualidade inglesa se realizou, de facto, o funeral pelas duas horas da tarde. Desembarcaram todos os oficiais da divisão com 60 praças e a banda de música. O governador militar, para salientar a sua cortesia, içou no castelo a bandeira nacional (que nessa manhã, em sinal de ressentimento, não subira ao tope do mastro) e mandou formar um troço de 40 soldados, que se encorporaram no enterro —«para debaixo deste pretexto estar prevenido e acautelado, se alguma desordem acontecesse» (26). Entretanto, apesar de todas as cautelas, ao começar a marcha do préstito, dois americanos menos calmos dirigiram brados insultuosos aos ingleses e hurrahs de orgulho ao seu país. Mas isto foi incidente súbito, de pronto acalmado (27).
Durante os três dias imediatos sepultaram ainda os ingleses alguns dos seus que ainda depois faleceram a bordo e alguns dos caídos à água, mortos na ocasião do combate e trazidos à praia pelo movimento das ondas.
Em 30 entraram na Horta os dois barcos de guerra Calípso e Thaís, que vinham reunir-se à frota de Robert Lloyd. Não seguiram, porém, viagem encorporados na Divisão. Coube-lhes outro encargo: retrocederam, um em 2 de Outubro, outro em 4, levando qualquer deles cerca de vinte e cinco homens gravemente feridos (28).
Ao mesmo tempo a esquadra levantou ferro e seguiu o seu destino — a América, o sul da América. No entretanto, Robert LIoyd, antes de partir, enviou ao governador um mensageiro com recados de despedida e agradecimentos pelas eficazes providências adoptadas na manutenção da boa ordem do funeral. Pedia desculpa de não descer a terra para apresentar pessoalmente os seus respeitos. Impedia-o, como sua ex.ª sabia, o motivo de doença. Muito folgaria, porém, de receber a bordo o governador para uma conversa de bons amigos. O governador agradeceu, mas não foi; - e não foi, diz com ênfase, «porque não achei decoroso e decente nem o seu convite, nem a minha aceitação» (29).
A demora de Robert Lloyd no Faial foi de ruinosas consequências para a Inglaterra. O seu programa era reunir-se à esquadra que estava a congregar-se na Jamaica, sob as ordens do almirante Cochrane, tendo por objectivo atacar a Louisiana e como operação essencial a posse de New Orleans.
Mas os reforços chegaram retardadamente, em particular o de Robert Lloyd, que tivera um atraso de dez dias, por motivo da sua desastrosa tentativa de querer apoderar-se do General Armstrong.
Cochrane, que devia encetar manobras em princípios de Novembro, só conseguiu completar-se e singrar a 26, alcançando New Orleans quatro dias depois do General Jackson haver tomado conta da cidade e nela se ter fortificado. Os ingleses desembarcaram; mas a batalha que deram foi uma derrota. Se a frota tivesse entrado em acção uma semana antes, Jackson não teria tido tempo de consolidar posições, e os ingleses apossar-se-iam de New Orleans e de toda a costa até ao Mississipi, sem grande custo. Assim, o seu desastre decidiu de toda a campanha (30).
O combate do General Armstrong foi, pois, providencial. Esse combate, último sobre os mares durante a luta com a Grã-Bretanha, e a batalha infeliz às portas de New Orleans, última sucedida em terra, encontram-se em estreita relação, constituindo o mais belo remate que podia ter a guerra da Independência. Samuel Reid, defendendo até ao derradeiro instante, gloriosamente, o seu navio, fixou na história dos Estados Unidos uma página das mais refulgentes e impressionantes da jovem nacionalidade. Um poeta americano, relatando o feito heróico, exalta-o:
Thus Captain Reid by courage saved
New Orleans; and by victory paved
The way to noble, endless fame.
And won him an immortal name (31).
De regresso ao seu país, o capitão Samuel Reid teve um acolhimento triunfal. Ao desembarcar em Savannah foi reverenciado como um ídolo. Cercaram-no de admiração e de bençãos. A caminho da sua casa em Richmond (Virgínia) teve uma homenagem de significado positivamente nacional. Ofereceram-lhe um banquete a que assistiu elevado número de personalidades, entre elas o governador do Estado, o presidente do congresso e membros da câmara legislativa, etc. Um dia, contando já 75 anos (32), entrou por acaso no Senado. Toda a assembleia, sabendo da sua presença, se ergueu, a coroá-lo de aplausos. Foi convidado a tomar assento entre os senadores; - e, todos de pé, continuando as aclamações, o olhavam fascinados... (33).
Foi muito vulgar, naquela época, por toda a parte dos Estados Unidos, erguer brindes patrióticos, ao findar de qualquer banquete. Entre todos havia este que nunca esquecia:
«A memória do General Armstrong, que se exaltou, da sua ruína fazendo a sua glória!» (34).
Esta história do General Armstrong teve no nosso país uma conclusão algo embaraçosa. Foi por causa da liquidação dos restos do navio. Abandonado e afundado o brigue, depois acabado de destruir pelos ingleses, caiu sobre ele a cáfila do populacho, rapinando o que ainda era possível. Mandou logo o governador acautelar os míseros destroços por uma força armada. De seguida o juiz de fora, por intermédio da alfândega, tomou conta de tudo, até de alguns artigos que sabia de estarem escondidos em casa de certos populares. Em dado momento, estando o juiz de fora muito tranquilo no seu escritório, apareceram-lhe de abrupto - «entrando pelas portas dentro sem ninguém lhas abrir» (35) - alguns ingleses da esquadra, num caloroso arengar, espalhando gestos imperiosos. Robert Lloyd, sob ameaça de fazer desembarcar 400 homens, exigia a entrega de tudo quanto pertencesse ao brigue General Armstrong, como espólio de guerra pertencente a S. M. Britânica. O pobre do juiz, encolhido e atónito, despachou-os com carta branca para tudo aquilo que pretendiam (36).

Mas daí a pouco apareceu o cônsul inglês com outra idea. O chefe da esquadra meditara, e achava melhor — mesmo porque podia suscitar-se contenda sobre quem de direito teria a posse daqueles restos — que se vendesse tudo e com o seu produto se reparassem as casas arruinadas com os tiros de bordo. Já consultara o governador e o cônsul Dabney, e ambos se desinteressavam do caso. Voltou o juiz de fora a tomar conta dos restos do navio, que expôs em hasta pública, obtendo a verba total de 1.346.905 réis. Sete peças de artilharia postas a salvo tiveram o lanço de 433.025 réis, lançado em nome da Fazenda Nacional, ficando todas elas a fazer parte da bataria do castelo de Santa Cruz.
A indemnização pelos prejuízos causados - avarias diversas em 20 casas, conforme relação que o governador juntou ao seu relatório (37) — foi computada em 176.760 réis. Por via desta irrisória soma trabalharam duramente quatro anos os nossos diplomatas e gemeram as chancelarias. Foi o então conde de Palmela que alcançou do governo inglês aquela importância e ao mesmo tempo uma satisfação dada a Portugal em nota expedida por lord Castelreath. A indemnização foi entregue aos interessados em 3 de Julho de l8l8 (38).
Não ficou por aqui o dize-tu-direi-eu. O capitão e armadores do General Armstrong julgaram-se também com direito a uma indemnização por parte dos cofres portugueses. O navio pertencia-lhes. Além disso, alegavam, éramos país neutro e tínhamos permitido a consumação da inaudita violência. Tinhamos permitido! Sabiam, por certo, que não tinha sido bem assim; mas, vamos lá, eram os prejudicados... Várias vezes, durante trinta e oito anos, o governo americano insistiu, em nome dos reclamantes, pela reparação pedida. Portugal, porém, submergia-se em cuidados asfixiantes: primeiramente a Família Real muito longe, no Brasil, de seguida a guerra civil, depois as constantes perturbações políticas do liberalismo. Demais, ignoravam o que fora isso do General Armstrong ocorrido há tantos anos, em paragens distantes, praticado por estranhos, durante o decurso duma noite ...
Houve, no entanto, certo dia em que um ministro se interessou pelo assunto e ordenou ao governador civil que elaborasse um relatório circunstanciado de tudo. Isto foi em l842. O relatório brotou sem demora e suficientemente elucidativo. Não havia razão para mais demoras. Mas o ministro deixou o poiso e consequentemente o relatório ficou a dormir. Tanto dormiu que, por volta de l850, enfiou pelo Tejo acima uma esquadrilha americana composta pelo vapor Mississipi e fragata Independence, a desentorpecer a legião oficial para essa operação tão simples duma liquidação de contas. Logo que ancorados, soube-se a que vinham. De bordo emanou uma nota marcando o prazo de vinte dias para uma resposta definitiva ao caso; - e a boca dos canhões, como olhos curiosos, visavam a terra. Caiu o Carmo e a Trindade: o Governo arregalou os olhos, retalhado de cólicas; a população agitou-se à descompostura nos governantes ; os jornais bramaram, salientando-se a Revolução de
Setembro e o Nacional do Porto; no parlamento os Pais da Pátria desenroscaram à larga a torneira declamatória das suas iras. Em tamanhos apertos não houve remédio senão olhar a sério o problema e solucioná-lo.
A causa, no entanto, não foi de mão beijada. Porque exigiam aquilo que não era razoável e nós recusávamos aquilo que não devíamos - era impossível uma composição. Assentou-se de lado a lado em recorrer à arbitragem. Por virtude do tratado assinado em 26 de Fevereiro de l85l, escolheram as partes litigantes para árbitro o príncipe Luiz Napoleão, presidente da República Francesa. Escrupulosamente recto, o príncipe sentenciou o pleito a nosso favor, em data de 11 de Dezembro de 1852.
Os autores não se conformaram e submeteram o seu articulado ao Supremo Tribunal das Reclamações norte-americano, alegando que a questão nunca devia ter sido submetida à arbitragem, e que esta fora consequência das más negociações do ministro americano. É curioso de notar que se constituiu advogado dos queixosos perante este tribunal Samuel Chester Reid Júnior, filho do famoso capitão do General Armstrong.
A l7 de Março de 1856 o Supremo Tribunal das Reclamações publicava o seguinte parecer: «Quando uma sentença é dada contra qualquer Governo que, pelo seu proceder descurou os.justos direitos dos seus cidadãos, fica por tal facto esse mesmo Governo obrigado a uma compensação equitativa a quem de direito». Decisão sagaz. Não se feriu a amizade francesa e abria-se uma porta para contentar os reclamantes. O que ignoro é se a parte interessada auferiu realmente do erário público os dollars equitativos (39).
Este citado filho do heróico comandante do corsário General Armstrong visitou os Açores em l890. Demorou-se no Faial algum tempo, a embeber-se do formoso panorama que enquadrara a façanha memorável praticada por seu pai havia 76 anos, e que muito influíra para assegurar a independência da sua pátria. Esteve no castelo, próximo do qual se desenrolara o combate famoso; andou ao redor do célebre Long Tom, que tão certeiramente quebrara a arrogância do inimigo, por duas vezes fazendo-o recuar, e agora ali dormindo, inválido…
Por sua inspiração o governo dos Estados Unidos da América pediu a cedência do histórico canhão. O nosso Governo, gentilmente, concordou. Do Ministério da Guerra baixou ordem, em data de 12 de Fevereiro de l892, para a entrega desejada, que se efectuou com as formalidades legais, pelo meio-dia de 12 de Maio seguinte, na esplanada do castelo de Santa Cruz, onde o potente canhão repousou algumas dezenas de anos, disparando salvas pachorrentas. Estiveram presentes, e assinaram o respectivo auto, em nome do Governo americano Jeo S. Batcheller, ministro dos Estados Unidos da América do Norte em Portugal, o cônsul da mesma nacionalidade no Faial, Lewis Dexter, e representando o nosso país o comandante militar dos Açores, tenente-coronel Estanislau Ventura, o capitão de caçadores Francisco Afonso Chaves e Melo, o tenente de artilharia Bernardo Pereira de Vasconcelos e o alferes de caçadores José Inácio da Silva. Imediatamente o Long Tom foi desmontado e transferido para a conhecida estância denominada a Relva, recinto de comércio da firma Dabney & Sons, onde era o consulado (40). Transportou-o para a América um paquete português de passageiros.
Meses depois figurava em público pela primeira vez, na exposição de Chicago de l893, posto à entrada do espaçoso arruamento, que conduzia ao Grande Lago. Actualmente encontra-se no Arsenal da Marinha de Guerra, em Washington. Tem apenso uma placa de bronze com a seguinte inscrição:
«Long Tom. Canhão de 42, datado de l786. É de fabrico francês e pertenceu primeiramente ao navio daquela nacionalidade, Hoche, artilhado com 74 bocas de fogo, que os ingleses aprisionaram, vendendo depois a sua bataria aos Estados Unidos. Este canhão serviu por muito tempo num corsário haitiano, e mais tarde voltou para New York. Durante a guerra de l8l2 foi montado a bordo do corsário General Armstrong onde prestou activo serviço contra os ingleses. Achando-se o Armstrong no Faial (Açores) em 26 de Setembro de l8l4, repeliu um ataque combinado de alguns botes armados, dirigidos contra ele por uma esquadra britânica, tendo que ser afundado para evitar que o capturassem. Alguns anos depois (data incerta) este canhão foi levantado do fundo do porto e oferecido aos Estados Unidos pelo Governo português.»
E aqui termina este trecho emocionante da história dos Estados Unidos da América, representado no meio do amplo cenário da baía da Horta, à luz dum luar dúbio, durante uma noite morna de Setembro.
in Anais do Município da Horta, Marcelino Lima, 1943, III Edição, Minerva.