Uma Obra de Arte, é assim que se pode classificar este pequeno excerto das notas de viagem de Raúl Brandão, escritor que visitou o Faial em 1924, e que ficou deslumbrado com a sua paisagem e as suas gentes. Mais uma vez, o meu muito obrigado a Mário Faria, um Faialense incansável que tornou esta página possível.
16 de Julho, 1924
Já vejo a Horta ao fundo da baía limitada por dois morros, o Monte Queimado numa extremidade e na outra o Monte da Espalamaca. É uma cidade de uma só rua, como eles dizem, a branco e cinzento. Alguns conventos, algumas igrejas pesadas, velhas e simpáticas casas de província com varandas de madeira e reixas: às vezes na varanda um postiguinho para a mulher falar ao namoro acocorada no chão. — Cheguei-me ao ralo — dizem as meninas. Calçadinhas desertas e ruas solitárias, atravessadas de vez em quando por um meteoro loiro: são as raparigas americanas do cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento. Onde a onde um solar de província com o granel ao lado. É uma terra de gente ilustrada e hospitaleira. Em frente da Horta, o Pico formidável… Do alto do Monte das Moças melhor se vê a baía arredondada e o Monte Queimado que a separa de outra concha mais pequena — o Porto Pim.
O que dá um grande carácter a esta terra é o capote. A gente segue pelas ruas desertas e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça. São quase sempre as velhas que o usam, mas as raparigas, metidas na concha deste vestuário, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a comunicar encanto ao capote monstruoso. É um ser delicado e loiro e o contraste realça a figurinha que saltita em passo de ave condenada àquele pesadelo, como certos bichos de aspecto estranho que trazem a carapaça às costas. Começo a achar interesse a este fantástico negrume e resolvo que devia ser o único trajo permitido às mulheres açorianas. À saída da missa gosto de ver a fila de penitentes que se escoa pelas ruas… Também me explicam que é uma coisa ao mesmo tempo monstruosa e cómoda: vai-se com ele pela manhã à missa, usam-no as velhas aferradas aos seus hábitos, e uma rapariga pode visitar uma amiga na intimidade, porque está sempre vestida: basta lançá-lo sobre os ombros. Envolve todo o corpo, e, puxando o capuz para a frente, ninguém a conhece. O que uma mulher que use o capote precisa é de andar muito bem calçada, porque tapada, defendida e inexpugnável, só pelos pés se distingue; pelo sapato e pela meia é que se sabe se é bonita a mulher que vai no capote. O capote herda-se, deixa-se em testamento e passa de mães para filhas. O capote numa casa serve às vezes para toda a família. Mulher que precisa de ir à rua de repente, pega nele e sai como está. — Este já foi de minha avó — diz-me um rapariga. — Era dum pano inglês escuro, dum pano magnífico que dura vidas.

A outra coisa que exerce aqui uma verdadeira fascinação é o Pico — tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada. Toma todas as cores: agora está violeta, logo está rubro. A cada momento uma nova transformação. Todo o céu doirado e o Pico roxo. Tarde, e a lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge das nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me a vida.
18 de Julho
Do Cabeço Gordo vê-se toda a ilha à roda: os Flamengos no interior, e no litoral Praia do Almoxarife, Pedro Miguel, Ribeirinha, o Salão — celeiro da ilha dividido em retalhos de cores — Cedros, Praia do Norte, Capelo, Castelo Branco, Feteira, todas entre chãs de centeio e trigo e farrapos esverdeados de milho. A propriedade está muito dividida e quase toda nas mãos de remediados. O dinheiro da América tornou estes homens independentes. A propriedade avalia-se por alqueires de terra — duzentas braças quadradas — produzindo, em média, cada uma trinta alqueires de cereal. A casinha limpa e aconchegada tem ao pé a eira redonda de terra calcada, com pedregulhos de lava a circundá-la para o grão não poder fugir; o eirado da cisterna, com o bocal por onde se tira a água sempre caiado de fresco, e a casa de palha colmada para guardar o carro, os arados e às vezes também os bois. A terra dá-lhes a bananeira, o ananás, a laranja, o chá, e produções sucessivas de batatas; nas encostas algum vinho, nos vales trigo e milho. O campo, dum verde sossegado, claro e muito calmo, é dividido em lavouras e pastagens, mas o homem do Faial é muito mais lavrador que pastor.
Vejo passar nas estradas esta gente afadigada, as raparigas com a lata do leite, os homens que regressam do trabalho de chapéu de aba larga, jaleco e varapau, as moças que vêm da fonte, vestidas, principalmente no Capelo e na Praia do Norte, com uma saia de lã que elas próprias fabricam, de barras roxas, verdes ou vermelhas, casaquinho curto, lenço na cabeça e chapéu de palha, de copa muito pequena e aba muito larga, afitado de preto. Às vezes partem um cântaro e exclamam: — Mágoas tamanhas!… Riem tão felizes e discretas como o campo, que é meigo. Todos estes retalhos são encantadores com as árvores em mancha, o poço e a casinha. É a terra dividida, é a terra cultivada com amor pelo pequeno proprietário que a ganhou com o suor do seu rosto e a dispôs à sua feição, pequenina e ajeitada. Não é só a luz que lhe dá esta cor — é o trabalho compensado — é cada um no seu bocado de terra bem unido a si, o bocado para que se deita o primeiro olhar ao amanhecer e último, de despedida, ao ir para a cama quando tudo está regado, sachado e farto. Mas também a luz valoriza a paisagem, a luz que torna a paisagem delicada, pálida, um pouco triste e sem nervos. O carácter de todo este verde, sempre verde, que adormece molhado, é a mansidão e a serenidade.
Vou pela estradinha entre abrigos de faias e moitas de incensos muito verdes, até à freguesia dos Flamengos, junto a uma pontezinha de lava, sobre a ribeira da Conceição. O fio de água corre lá em baixo pelos rodilhões de hidrângeas. É uma terra de lavadeiras, que encontro no caminho com cestos de carga à cabeça, cheios de roupa. Mesmo as casinhas pobres têm persianas e um ar de intimidade e conforto. Alguns moinhos holandeses batem as asas nas colinas. O fumo que sai das cozinhas cheira a incenso. Esta paisagem repousa como um banho morno. Nos campos, os bois deitados na erva olham para a gente, deixando os estorninhos que lhes pousam nas cabeçorras catar-lhes a mosca. Satisfeitos e calmos não bolem — engordam. Aqui não há pardais, mas o estorninho faz com muita competência o papel do pardal. Pousa nos telhados e anda no campo familiarizado com o lavrador. Outras aves alegram as culturas que descem até ao mar — o pombo bravo, o torcaz e o pombo da rocha, mais pequeno, ambos eles cinzentos, o canário, o tentilhão, o melro preto, o pintassilgo, a vinagreira e a lavandeira, que cobriu as pegadas de Nossa Senhora. A ave negreira, a que o povo chama vinagreira e é o pássaro mais pequeno da ilha, canta como um rouxinol. Difere da toutinegra, que tem poupinha preta, em ser escura até ao meio do corpo. Dizem os rapazes que, quando a toutinegra, que em geral põe seis ovos, chega aos sete, do último sai sempre ave negreira.
Isto já foi muito mais animado e rico. Tudo à volta da Horta e dos Flamengos eram casas, quintas cheias de laranjais, de plantas e flores, a quinta de S. Lourenço, a quinta da Silveira, a quinta dos Dabney, depois abandonadas quando a Inglaterra deixou de comprar os frutos no Faial indo buscá-los ao Cabo.
Entro ao acaso nalguns destes jardins. Primeiro no do Pilar, erguido ao alto pelo monte, terraço maravilhoso donde se apanha toda a luz do mundo. Jardim ao abandono, com grandes faias de Holanda, tão unidas que ao princípio da tarde já é noite fechada debaixo delas. É daqui que eu gosto de ver as cores que toma o Pico. Espero. É noite quase. Tudo desfalece em violeta, o semicírculo perfeito da baía, a sombra do Pico lá no fundo e, por trás da cidade pálida, as colinas dum verde-escuro recortadas no céu doirado. No terraço as hortenses desfalecem ao mesmo tempo que a paisagem em volta desfalece. A tarde morre numa tinta tão melancólica que a custo não grito para me deixarem só. É um desmaio de tintas apagadas, de escuridão que não é ainda escuridão, de roxo que a toda a hora se transforma e transe. O vale dos Flamengos adormece em bruma e o Pico não sai dali, como um grande fantasma à minha espera. As cores da terra e do céu entranham-se umas nas outras em tons delicados que vão fundir-se em roxo-escuro, mas que se aguentam diante de mim um momento único, pálidas e exangues, sufocadas… Depois vou a uma casa abandonada, a um jardim ao abandono no Monte Queimado. Nos buracos do muro crescem parietárias, um raiz levantou a soleira da porta… O que me interessa nos jardins selvagens é a atitude que tomam as árvores à solta, é o drama secreto, mas feroz, que se passa entre meia dúzia de troncos crescendo em liberdade. Por fim, entro noutro, muito diferente, nos Flamengos. É um velho jardim com ruas de enormes japoneiras. Os troncos torcidos pela poda, as pequenas folhas acamadas, formam sebes impenetráveis e espessas. Está um dia sem sol e o calor surdo pesa mais neste silêncio entranhado entre as árvores metálicas e tristes. No fundo da rua principal fica um pavilhão abandonado. Isto pertenceu talvez a um poeta ou a um contemplativo. O pavilhão cai, nos muros muito altos a hera corre em desalinho. Das ruazinhas sempre fechadas e que tomam direcções imprevistas sai um cheirinho a humidade e sepulcro. Enegrece mais a luz subterrânea e verde que só entra pelos interstícios das folhas sem transparência. Este homem a quem não sei o nome e que delineou os caminhos, as rotundas, as salas fechadas de sombra e flor não consentiu no seu jardim senão camélias. Baniu daqui todas as outras flores. Camélias e sombra por toda a parte, camélias admiráveis, brancas, vermelhas, róseas, flores geladas que amarelecem e de que as árvores se despojam devagarinho. Ergueu mais alto os muros, para que só a sombra se ceve nesta carne fria — de mortas, sem expressão.
Este foi o sonho de um homem original… Querem-me dizer o nome, mas eu não quero saber-lhe o nome. Foi o sonho de um homem que passou a vida a plantar camélias, chegando a obter camélias com cheiro enxertadas em magnólias. Terminada as sua obra, morreu. A casa passou para outras mãos, as japoneiras, na humidade da ilha, cresceram e atingiram proporções desmedidas. Se as deixassem cobriam a casa, as ruas, o céu. A falta do dono sente-se no desalinho, nas ervas, no musgo que invadiu o jardim, na melancolia das coisas solitárias. Mas eu gosto mais disto assim… Palpo a fragilidade dos nossos actos, sinto a tristeza da vida efémera, parece-me que todo este jardim de camélias se transformou num cemitério de camélias onde se enterrou o sonho do poeta. O que me vale é que saio e dou logo com o Pico, que é eterno. Encontro-o sempre: ao voltar duma esquina, a sair de casa, ao saltar da cama. Hoje decidiu morrer em violeta, mas, antes de morrer, passa por todos os tons do violeta. Desfalece e por fim envolve-se numa nuvem para o não vermos exalar o último suspiro. Desconfio que foi posto ali de propósito e à distância calculada para nos atrair e encantar. Nas noites de luar é um fantasma branco e imóvel. A gente espera que ele se mexa. Nas noites negras é um fantasma negro e trágico que vai pregar na escuridão. Passo dias a olhar para ele. No dia 19 está escondido por uma nuvem — por a nuvem — que lentamente se descerra, como a cortina de um altar onde se celebra todos os dias um mistério. No dia 26 à tarde corta-o a nuvem cinzenta pelo meio… Devo explicar que todas estas ilhas têm uma nuvem sua, uma nuvem própria, independente das outras nuvens e do céu, e com uma vida à parte no universo. Pode, por exemplo, estar o vento que estiver, vento que arraste todos os farrapos do ar, que a nuvem lá está presente tomando várias formas e feitios. Hoje é branca e pequena. À tarde muda de aspecto, ao mesmo tempo que o Pico muda de cor. Não sei que posição toma a nuvem, que em cima fica azul e na base doirada. Espero a hora de assombro em que esta montanha enorme emerge toda vermelha do mar verde, num céu que empalidece e com a nuvem cor-de-rosa agarrada a um dos flancos. Na base, manchas roxas — verdura de pinhais, e no alto o barrete vermelho aguçado até a extremidade.
24 de Julho
Sigo pela estrada, quase sempre à beira mar, que dá volta à ilha. No automóvel tudo desfila como no cine: — Feteira e o seu branco campanário, as tamargueiras à beira do caminho, os campos de milho entre canaviais, e logo as casinhas de Castelo Branco… Quero, mas não posso, fixar um quadrinho que mal distingo: um homem de grandes barbas brancas, guiando duas juntas de bois que calcam o trigo no eirado, e ao pé dele duas raparigas que riem às gargalhadas. Só me fica a impressão alegre dos olhos e a boca do velho — e tudo desaparece na vertigem. Hortenses, figueiras, um ou outro castanheiro — e ao fundo já avança para mim um grande monte — Capelo. Hoje, neste dia turvo, as hortenses parecem mais azuis e mais frescas. É uma estrada de sonho entre sebes intermináveis.
E o automóvel corre… Dum lado já surge um grande monte escuro, Cabeço Verde, povoado na base, do outro, o morro de Castelo Branco entrando no mar. Atravesso a cinza dos mistérios, sempre por entre alas de hortenses cada vez mais azuis. O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e calor — estão no seu meio. O seu azul é o azul esmaltado dos Açores nos dias límpidos. Nos dias turvos substituem a cor do céu: são o azul desta terra enevoada e uma das suas maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o céu mais escuro, a atmosfera mais húmida, e sob isto o azul cada vez mais azul, as molhadas de flores duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. Há-as por toda a parte: nas estradas formando alas e nos campos formando sebes; servindo para dividir os terrenos e de tapagem aos animais pacíficos. Enchem a terra de exuberância e de azul. E o automóvel segue… Onde vão dar estas estradinhas, orladas de novelões e por onde não passa ninguém? Parecem caminhos de sonho, abertos para jardins encantados. O automóvel voa e eu tenho diante de mim montes que se erguem, doirados, no fundo do horizonte: é a vegetação nova do incenso que parece oiro. Desfilam os mistérios cinzentos entre hidrângeas aos montes, cada vez mais hidrângeas, cada vez mais azul entrando-me em jorros pelos olhos. Esta linda estrada do Capelo fica-me para sempre na retina com o alteroso Monte Verde e o Cabeço de Fogo, todo vermelho, ao lado, paisagem estranha de biombo japonês, que se prolonga pela esplanada até Entre Cabeços. Na base do Cabeço Verde mostram-me uma fonte que só destila a custo um fio de água, que nunca aumenta nem diminui. É a Fonte dos Namorados. Aqui vêm as raparigas encher os cântaros, porque os cântaros levam muito tempo a encher… Mas tudo desaparece. A fita trepida e desenrola-se sempre: Norte Pequeno, a povoação mais pobre da ilha, meia dúzia de casebres colmados, e uma rocha enorme, o Costado da Nau, tomando todo o horizonte. Lá está no alto o poleiro da baleia e no fundo o farol esguio, sobre pedras vermelhas e românticas formando arco. Todas as falésias da ilha são estranhas e ameaçam desabar sobre as águas. Torres enormes destacam-se no mar, assaltadas pelas vagas, cujo estrondo mete medo. Rasgam-se cavernas nas paredes talhadas em fatias, dilaceradas e trágicas, com tons amarelos, acinzentados e negros, ou descendo com suavidade até ao mar em campos cultivados para logo adiante reaparecerem colunatas, ogivas, entradas de templos monstruosos, penedos negros e corroídos, boqueirões amarelados de pedra esponjosa. Só os garajaus e os pombos brancos habitam estas arribas atormentadas… Mas o automóvel segue a sua carreira e fica-me nos olhos o veludo da paisagem sob o céu pardo e uniforme, com aquele monte vermelho, ao fundo, que parece vomitar ainda fogo e um bocado de mar de um violeta muito leve. Seis horas. Passamos a Praia do norte e outra povoação de que não sei o nome, estonteada entre o azul das hidrângeas. As raparigas arrancam flores das sebes e atiram-nos com elas. Agora o automóvel só pára um momento na Ribeira das Cabras, diante dum abismo cortado a pique, de quatrocentos metros de altura. Há lá em baixo um plaino roxo e verde, junto à água avermelhada, cuja cor se harmoniza com o negrume da pedra e o violeta dos montes. É uma coisa parada, uma coisa assombrada, lá para o fundo do despenhadeiro que se espraia em mosto até ao Monte Verde, numa extensão de quilómetros e que me faz estacar de imprevisto pela irrealidade da situação e da cor e pela luz dum poente delicado que morre com uma doença violeta e verde, entre arabescos de oiro e farrapos plúmbeos, magoado, fantástico e febril. A pedra requeimada reluz como ardósia ou absorve a claridade como pedra-pomes. A planície roxa, com pinceladas mais escuras, acaba no mar e num fundo de névoa roxa, e toda ela esmorece sob a abóbada dorida e fantástica, traçada de raios decorativos.
Na última luz do dia surpreendo de corrida Cedros, Salão, as freguesias ricas da ilha, a Ribeirinha, outro aspecto da estrada sempre azul, cada vez mais azul, sob olaias, fechadas em cima com montes azuis riscados de sebe, ao longe. São enormes, são anainhas e toda a moita só numa flor. São redondas e acocoradas; formam paredes e novelos. Irrompem por toda a parte e apanham-se às braçadas. Entrevejo de relance a Praia do Almoxarife, muito branquinha ao pé do mar. Mas de estonteado já não reparo senão no azul que me deslumbra, em todos os tons do azul que me entram pelos olhos, o azul-ferrete das hortenses — o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores. De começo não distingo senão uma mancha e acabo por não distinguir senão uma mancha. Uma mancha e frescura. Uma impressão de volúpia e frescura: — tinta imóvel e viva que me atrai. E logo depois da impressão do azul, a maior impressão é a da vida que nos envolve em silêncio e que espera de nós não sei o quê e quer comunicar connosco. Como é possível extrair da terra seca este jorro que nunca mais acaba? Sob a pele que calcamos corre um rio azul inesgotável, que ascende à superfície pelas hastes das plantas? Sinto-me tentado a esfuracar a crosta até encontrar a tinta, que deve formar o núcleo da ilha, e que logo, amanhã, vai explodir pelos vulcões, numa fantasmagoria de azul. Azul puro que se amontoa, sai aos jorros da terra, cerca-nos, espera-nos por todos os cantos, afoga-nos por todos os lados… Eu disse puro, mas creio que me enganei: esta carne delicada exposta nas ribanceiras, nua através dos campos, crescendo à solta pelos atalhos; esta carne que nos circunda e acaba por invadir a ilha e subir ao céu — é voluptuosa e exige de nós deslumbramento e beijos — exige talvez um estupro… Ao mesmo tempo cansa-me… Um sentimento novo pouco e pouco se insinua, deixando-me alheado e confuso. Fico surpreso com o azul e cinzento? Esperem, esperem… Vejam como esta luz humedecida e vaga se infiltra no azul e o derrete. Azul e cinzento confundem-se. Às vezes as hidrângeas reaparecem e gotejam — ou é o cinzento em gases tão transparentes que deixam ver por trás um fantasma azul e imóvel… De novo a paisagem molhada e triste volta e se queixa, para logo devagarinho se dissolver magoada. O que eu sinto afinal é apreensão ou receio?... É tristeza e cansaço que me vêm mais da exuberância que da cinza desfolhada em silêncio sobre todo este azul frágil. É um sentimento que goteja como o orvalho e ao mesmo tempo me acalma. Falta-me não sei o quê — mas tão longínquo, tão aéreo como a paisagem. É tristeza — mas não chega a magoar-me: a cinza empoeira também os meus sentidos e converte-a logo em saudade.
Ao outro dia atravesso de novo os flamengos pela estrada municipal, entre casebres e rocas-de-Hércules de floração amarela. A estrada sobe e do alto vejo melhor o côncavo recolhido e verde, Farrobo, Santo Amaro, o largo vale da Praia e Chão Frio, dividido em talhões de milho e centeio — nota de abundância e de paz dum verde sempre fresco e viçoso, sob céu muito azul, o céu esmaltado dos Açores. Mal reparo nas casotas de madeira com matas, sebes arruadas, arcos rústicos de rosinhas-de-toucar, onde os da Horta vão passar os dias no Verão, porque a estrada logo me assombra, toda azul-ferrete. É um muro, dum lado e de outro, de hidrângeas em flor, um muro que nos acompanha e nunca mais nos larga. Às vezes rasga-se diante de mim a amplidão iluminada pelo sol, mas o meus olhos já se não destacam da parede azul que desce do alto em borbotões. Não há uma falha: esta mancha fofa, azul, esplêndida, aperta-nos até ao Cabeço Gordo, que se avista entre bosques de pinheiros, de acácias negras e incensos, subindo a novecentos e cinquenta metros de altura. Um tentilhão canta. Responde-lhe outro, entranhado na carne verde das árvores ou na carne azul das sebes. Calco o chão onde nascem morangos silvestres, cujo aroma inebria, para contemplar o vale de terra gorda e húmida. Verde apagado, verde sempre verde, acabado de borrifar pela chuva coada, dividida em átomos tão leves que fazem parte do ar que se respira — quadros atenuados, passados pelo tempo ou surpreendidos de manhã quando a paisagem acorda. Depois olho o extraordinário Pico irrompendo de entre nuvens magnéticas, que parecem iluminadas por uma luz forjada no seu seio. E entranho-me mais neste azul parado, sob o céu um momento azul e a luz azul. E isto não tem fim. São quilómetros de hortenses carregadas de flor, onde apetece a gente entrar até acabar a estrada e acabar o mundo… Subo até à ermida de S. João. O mato é severo, encostas revestidas de mofedos, de junco de vassoura, de rapa, que dá uma flor roxa, de trevo bravo, de rosmaninho cheio de bagas vermelhas… Tenho diante de mim, dum lado a cratera, com duas léguas de circunferência e trezentos metros de fundo; ao outro, o amplo panorama — mar e terra, montes e vales — o mar e o Pico, um Pico estranho, suspenso no céu e pousado num oceano de nuvens brancas. Só cume, mas o cume é uma montanha enorme e esguia, porque, à medida que fomos subindo, o Pico foi crescendo também. Volto-me e a meus pés abre-se o enorme buraco verde-negro revestido de cedros e de urze até ao charco de água choca e lama esverdeada, donde irrompe um cabeço com outra cratera minúscula dum tom acastanhado. O espectáculo é sombrio e belo. Só a caldeira mais pequena, perfeita como miniatura, é uma nota de ternura neste isolamento: parece filha da outra. Está ali a criá-la, sabe Deus para que destinos, naquele buraco ao mesmo tempo poético e feroz. Se arranco os olhos da cratera, encontro a amplidão infinita, o altar majestoso do Pico, as nuvens que ele apanha no céu e a que dá formas imprevistas, e o mar liso até ao horizonte, fechado pela barra roxa de S. Jorge e pela mancha desvanecida da Graciosa. Violeta das águas imóveis, verde-pálido da terra, céu de esmalte por cima… Despeço-me do abismo solitário. Na parede fronteira a sombra negra e trágica cresce e avança até ao fundo. Recolhe a casa e, cosida com a parede, vai recomeçar com a cratera o conciliábulo secreto de todas as noites!…
A volta na luz da tarde é um assombro. Vejo o Salão e Pedro Miguel, todos azuis de hidrângeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge à esquerda formando a enorme baía. É o horizonte de Nápoles mais escuro, a esta hora iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas — não como as montanhas solenes das Flores em picos aguçados pelo raio, mas arredondados e mansos. Borbotões de azul despenham-se por todos os lados. O Faial adormece em azul sob o céu de cinza e com o Pico todo violeta ao lado. .
À noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu, subiu a lua numa paz extraordinária, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os últimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no boqueirão todo negro. Mais luar e o silêncio que espera de nós qualquer comunicação sobrenatural. Olho. Todas as hortenses se puseram brancas, dum branco perfeito, todas as hortenses não desfitam os olhos de mim, quietas e brancas, imóveis e brancas. Avanço com receio. É uma paisagem sem mácula. Os melros enganam-se nestas noites de lua redonda e branca e desatam a cantar, desvairados. O Pico, entontecido, cheio de luz e enorme, inchou e toma todo o horizonte. Escuto… Bem quero surpreender o mistério destas flores que vivem no silêncio húmido e branco. Fecho os olhos. A existência obscura das plantas, que não tiram os olhos de mim, faz-me perder a consciência da própria personalidade; sinto outra vida estonteada, dispersa no mundo e mais lúcida — talvez mais lúcida ainda… Caminho, caminho sempre, entre renques brancos, assombrado pelo espectáculo de brancura e sonho. Uma senhora americana não teve mão em si que não desatasse a beijá-las, transportada… Eu, de mim, não me atrevo.
Tenho agora medo delas, brancas e puras, oferecendo-se desmaiadas ao luar dum branco extraordinário, dum branco mudo onde se sente um reflexo ténue e doirado do sol. Tudo parou; só o melro desvairado canta entre esta brancura virginal. Não se cala até ficar exausto. E quando deixa sair do bico o fio de harmonia, logo outro melro escondido o apanha e ergue, continuando a tecer o arabesco musical sobre a paisagem branca e extática.
in As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão, pp79-89, 1987, Editorial Comunicação.