Nina Rodrigues |
O valor social das raças e dos povos negros que colonizaram o Brasil, e dos seus descendentes |
Os dados e documentos coligidos neste trabalho permitem distribuir no seguinte quadro as raças e povos africanos de cuja introdução no Brasil há provas certas e indiscutíveis:
l.
Camitas africanos: fulás, (berberes (?), tuaregs
(?)).
Mestiços
camitas : filanins, pretos-fulos.
Mestiços
camitas e semitas: bantos orientais.
2.
Negros bantos : a) Ocidentais : cazimbas, schéschés, xexys,
auzazes, pximbas, tembos, congos (Martius e
Spix), cameruns.
b)
Orientais: macuas, anjicos (Martius e Spix)
3
. Negros sudaneses : a) mandês : mandingas, malinkas, sussus,
solimas.
b)
Negros da Senegámbia: yalofs, falupios, sêrêrês,
kruscacheu.
c)
Negros da Costa do Ouro e dos Escravos: gás e tshis: achantis, minas
e fartis (?) jejes ou ewes, nagôs, beins.
d)
Sudaneses centrais: nupês, haussás, adamauás, bornus,
guruncis, mossis ( ?).
4.
Negros Insulani: bassós, bissau, bixagós.
Será
escusado dizer que a esta enumeração bem podem e devem ter escapado
muitos povos negros que, principalmente no curso dos três primeiros séculos
do tráfico, não deixaram de sua passagem vestígios nem documentos.
Seguramente, africanos de muitas outras nacionalidades haviam de ter
entrado no Brasil, mas não está nossa intenção arrolar todas as nações,
povos ou tribos que aqui tivessem tido representantes. Essa tarefa pode
ser muito curiosa e atraente para espíritos desocupados, mas poucos
frutos promete. Apenas nos preocupam aqui aqueles povos negros, que, por
número de colonos introduzidos, pela duração de sua imigração, ou
pela capacidade e inteligência reveladas, puderam exercer uma influência
apreciável na constituição do povo brasileiro.
Para
julgar a colonização africana no Brasil, do ponto de vista do valor
social dos colonos, temos que basta aquela enumeração.
Nesta
apreciação, resolutamente pomos à margem as discussões insolúveis
sobre a natureza e espécie da inferioridade da raça negra.
II.
De fato, não é a realidade da inferioridade social dos negros que está
em discussão. Ninguém se lembrou ainda de contestá-la. E tanto
importaria contestar a própria evidência. Contendem, porém, os que se
reputam inerente à constituição orgânica da raça e, por isso,
definitiva e irreparável, com aqueles que a consideram transitória e
remediável. Para os primeiros, a constituição orgânica do negro
modelada pelo habitat físico e moral em que se desenvolveu, não
comporta uma adaptação à civilização das raças superiores,
produtos de meio físico e cultural diferente. Tratar-se-ia mesmo de uma
incapacidade orgânica ou morfológica. Para alguns autores, e Keane
esposa esta explicação, seria a ossificação precoce das suturas
cranianas que, obstando o desenvolvimento do cérebro, se tornaria
responsável por aquela conseqüência. E a permanência irreparável
deste vício aí se está a
atestar na incapacidade revelada pelos negros, em todo o decurso do período
histórico, não só para assimilar a civilização dos diversos povos
com que estiveram em contato, como ainda para criar cultura própria.
Bem
pouco valiosas e procedentes se afiguram estas razões. A ossificação
precoce das suturas cranianas, excluído o caso patológico aqui
inadmissível, há de ser um produto da evolução morfológica,
proporcional e paralela à evolução funcional, de que é um caso
apenas o desenvolvimento físico e mental. Impossível, pois, tornar uma
responsável pela outra. A ossificação será precoce mas não
prematura, pois ocorre em tempo e de harmonia com o reduzido
desenvolvimento mental de que os povos negros são dotados. Recentemente
a experiência clínica desfez uma ilusão fundada em erro análogo, por
um momento triunfante em neuropatologia. A suspeita ou a crença de que
a ossificação precoce das suturas cranianas fosse a causa do atraso no
desenvolvimento mental dos idiotas e imbecis, em virtude da insuficiência
do espaço oferecido ao desenvolvimento cerebral, acham o seu corolário
prático no preconício da cranioctomia, intervenção cirúrgica
destinada a remediar aquele defeito. Mas a experiência frustrou as
generosas esperanças depostas nesta intervenção, demonstrando, como
era de esperar, que atraso cerebral e precocidade craniana se
subordinavam ao mesmo vício degenerativo, tinham a sua causa comum na
mesma anomalia evolutiva, e não se ligavam entre si por laços diretos
de interdependência genética.
III.
Demasiado escasso, por outro lado, é o curto espaço do período histórico
para nele se fundar a afirmação categórica de uma impossibilidade
futura de civilização do negro. Quando nos ensina a explicação
evolutiva, que andavam errados todos os cálculos ou cômputos da idade
humana e que por milênios de séculos se devem contar as aquisições
lentas e progressivas do seu aperfeiçoamento, não é argumentando com
o que nos ensina o curto período do conhecimento histórico dos povos
que se pode lavrar a condenação do negro a uma estagnação eterna na
selvageria.
No
entanto, não pecam menos por exageradas as pretensões otimistas. A
alegação de que por largo prazo viveu a raça branca, a mais culta das
seções do gênero humano, em condições não menos precárias de
atraso e barbaria; o fato de que muitos povos negros já andam bem próximos
do que foram os brancos no limiar do período histórico; mais ainda, a
crença de que os povos negros mais cultos repetem na África a fase da
organização política medieval das modernas nações européias
(Beranger Feraud); não justificam as esperanças de que os negros
possam herdar a civilização européia e, menos ainda, possam atingir a
maioridade social no convívio dos povos cultos.
O
que mostra o estudo imparcial dos povos negros é que entre eles existem
graus, há uma escala hierárquica de cultura e aperfeiçoamento.
Melhoram e progridem; são, pois, aptos a uma civilização futura. Mas
se é impossível dizer se essa civilização há de ser forçosamente a
da raça branca, demonstra ainda o exame insuspeito dos fatos que é
extremamente morosa, por parte dos negros, a aquisição da civilização
européia. E diante da necessidade de, ou civilizar-se de pronto, ou
capitular na luta e concorrência que lhes movem os povos brancos, a
incapacidade ou morosidade de progredir, por parte dos negros, se tornam
equivalentes na prática. Os extraordinários progressos da civilização
européia entregaram aos brancos o domínio do mundo, as suas
maravilhosas aplicações industriais suprimiram a distância e o tempo.
Impossível conceder, pois, aos negros como em geral aos povos fracos e
retardatários, lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e
remota de sua emancipação social. Em todos os tempos não passou de
utopias de filantropos, ou de planos ambiciosos de poderio sectário, a
idéia de transformar-se uma parte de nações às quais a necessidade
de progredir mais do que as imitações monomaníacas do liberalismo impõe
a necessidade social da igualdade civil e política, em tutora da outra
parte, destinada à interminável aprendizagem em vastos seminários ou
oficinas profissionais. A geral desaparição do índio em toda a América,
a lenta e gradual sujeição dos povos negros à administração
inteligente e exploradora dos povos brancos, tem sido a resposta prática
a essas divagações sentimentais.
IV.
Não é, pois, a concepção teórica, toda especulativa, e não
demonstrada, de uma incapacidade absoluta de cultura dos negros, que
merece preocupar povos, como o brasileiro, que, com a escravidão
africana, receberam e incorporaram em sua formação étnica doses
colossais de sangue negro. O que importa ao Brasil determinar é o
quanto de inferioridade lhe advém da necessidade de civilizar-se por
parte da população negra que possui e se de todo fica essa
inferioridade compensada pelo mestiçamento, processo natural por que os
negros se estão integrando ao povo brasileiro, para grande massa de sua
população de cor.
Capacidade
cultural dos negros brasileiros ; meios de promovê-la ou compensá-la;
valor sociológico e social do mestiço ário-africano; necessidade do
seu concurso para o aclimamento dos brancos na zona intertropical;
conveniência de diluí-los ou compensá-los por um excedente de população
branca, que assuma a direção do país: tal é na expressão de sua
rigorosa feição prática o aspecto por que, no Brasil, se apresenta o
problema o negro (1).
Adstrito
por agora ao exame da capacidade cultural do negro brasileiro, é a este
padrão da morosidade extrema em considerar-se que a havemos de referir,
pois, se o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao
mesmo grau de aperfeiçoamento que os brancos, muitas vezes se poderiam
transformar antes os seus destinos de povo, se é que algum dia se
houvesse de realizar. Ocorre, portanto, demonstrar que de fato nessa
morosidade reside o ponto fraco da civilização dos negros.
V.
Naturalmente preferiremos dar aqui a experiência dos observadores mais
favoráveis à raça negra. E para os negros da África, nos limitaremos
a uma justa e profunda análise de Ellis.
“Como
resultado de todas estas influências desfavoráveis, a energia de todo
o povo degenerou em indolência e gozos sensuais e para sair desta situação
serão necessários séculos, porque a natureza exerce sobre o
desenvolvimento do ser humano uma influência soberana que é tanto mais
poderosa quanto mais próximo se acha o povo do estado primitivo, pois
nas sociedades civilizadas vai-se aprendendo gradualmente a combatê-la.
Contudo, em tudo isto vemos efeitos de condições externas e não há
razão para supor que originalmente as raças brancas possuíam
capacidade mental superior à das raças negras. Se conseguiram atingir
aos mais altos sucessos no mesmo período de tempo, foi isso apenas
porque elas se acharam situadas com mais felicidade. Mas atualmente
muitos ingleses, especialmente os que estão empenhados na propagação
das diferentes formas de cristianismo, parecem supor que, se esta religião
fosse imposta aos negros, teria isto como conseqüência quase imediata
uma civilização negra aproximadamente equivalente à européia.
Acreditam eles que a nossa religião é uma conseqüência da nossa
religião, quando a verdade é exatamente o oposto. Todavia, o negro pagão
que, para usar a frase consagrada, se converte ao cristianismo, não se
eleva por isso ao nível moral do europeu. As características morais
transmitidas pela herança não são mais suscetíveis do que as físicas
de ser apagadas pela simples mudança de crenças; e o negro convertido
rebaixa invariável e necessariamente a nova religião ao nível de sua
própria cultura mental (2).
Em todo caso, nós temos atualmente uns dois mil anos de avanço sobre o
negro e não é esta uma lacuna que se possa vencer de um salto.
Qualquer tentativa de impor à força ao negro as nossas condições
artificiais de existência há de falhar, pois os caracteres de raça não
podem ser transformados de repente: e mesmo quando fosse possível
impor-lhes a nossa civilização, esta não seria duradoura, porque
entre a situação deles e a nossa faltariam as fases de transição.
Para ser permanente, a civilização deve ser gradual; pois só quando
um passo avante está dado com segurança é que o caráter de raça se
torna firme e capaz de sofrer novo impulso.”
Não
adianta acumular citações, - em relação ao negro da África; este é
o sentir comum, dos etnólogos de competência. Indagaremos o que se
passa na América, onde estão os negros colocados em condições de
meio e cultura a todos os respeitos mais favoráveis do que os da África.
Apreciando os progressos realizados pelos negros norte-americanos nos
trinta anos que decorrem de sua libertação, afirma Mandarini, autor
francamente favorável aos negros:
“Posto
que o negro da América tenha progredido muito exteriormente, posto
tenha assimilado as formas da vida civil, todavia, no fundo dalma, ele
é ainda uma criança; de bem pouco tem ultrapassado aquele estágio
infantil da humanidade em que se acha o seu co-irmão da África. Destes
escrevia Stanley no Times: Para dirigi-los e viver entre eles, é
necessário a gente resolver-se decididamente a considera-los como crianças
que requerem certos métodos diferentes de direção por parte dos cidadãos
ingleses ou americanos: devem, porém,
ser dominados com o mesmo espírito, com a mesma falta de
capricho, com o mesmo respeito essencial que se deve aos nossos
semelhantes. No dizer de todos os viajantes, escreve Letourneau, é
bem a meninos europeus que se deve comparar a maior parte das raças
negras da África : elas têm da infância a leviandade, o capricho, a
imprevidência, a volubilidade, a inteligência ao mesmo tempo viva e
limitada. Em outra obra, escrevia: Para o negro da África, abandonado a
si mesmo e vivendo segundo a própria natureza, o impulso dominante
parte menos freqüentemente do cérebro do que do estômago. Passar de
tal fase de desenvolvimento àquela que caracteriza as nações civis
modernas não é coisa, por certo, factível em um trintênio de vida
civil: não um trintênio, mas séculos e séculos são precisos para
que os dotes sociais, adquiridos pelos afro-americanos em seu contacto
íntimo com os brancos, transmitindo-se de geração em geração, se
tornem caracteres da raça negra na América. Na escala da civilização,
os afro-americanos ocupam ainda um dos últimos degraus, a raça
anglo-saxónica um dos primeiros, senão o primeiro: os americanos têm
plena consciência de tal fato e não se podem resolver a tratar de
igual para igual com uma gente tão inferior a eles, do mesmo modo que o
adulto não trata a criança de igual para igual, nem as classes
superiores às inferiores.”
Comentando
os conceitos de Mandarini, por demais favoráveis aos negros
americanos, pondera o prof. Morselli : “Nanhum antropologista poderá
jamais admitir uma igualdade de capacidade evolutiva entre o branco e o
negro. O mais humanitário dos antiescravistas jamais poderá cancelar
as diferenças biológicas entre os homens. Acaso não são elas tais e
de tal intensidade que induzem alguns dos mais competentes naturalistas,
qual um Linneu, um Fred Miller, e um Maeckel, a admitir que as chamadas
raças humanas são outras tantas espécies biologicamente distintas do
gênero Homo?... O negro, principalmente, é inferior ao branco,
a começar da massa encefálica, que pesa menos, e do aparelho mastigatório
que possui caracteres animalescos, até às faculdades de abstração,
que nele é tão pobre e tão fraca. Quaisquer que sejam as condições
sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela sua própria
morfologia e fisiologia a jamais poder igualar o branco. Para que se
pudesse verificar tal acontecimento histórico-antropológico fora
mister uma circunstância bem improvável, senão impossível: a perda
por parte do branco de sua capacidade de adaptação progressiva. Só
uma parada da civilização européia e anglo-americana daria tempo aos
negros para, na sua lentíssima e não espontânea evolução,
atingir-nos e igualar-nos. Mas enquanto a civilização americana for
progressiva, as aquisições que aquele grande povo realiza cada ano
aumentarão, fecundarão sucessivamente o mundo, e enquanto o negro
tiver dado um curto passo, os anglo-saxões terão tomado tal impulso
que excederão sempre aos seus concidadãos de cor. Por outro lado é
estranho que espere alguém possam os afro-americanos civilizar-se tanto
quanto os brancos. Estes otimistas não refletem que a civilização
nasceu na Europa de causas particulares da raça, clima e ambiente e que
bem diversa teria sido se nascesse espontaneamente em meio de populações
cafres ou sudanesas”.
No
entanto, por mais instrutivo que seja o conhecimento dessa desigualdade
na capacidade evolutiva e civilizadora de negros e brancos, ela não
esgota hoje a questão dos negros no Brasil.
Dada
a sua absorção na população compósita do país, e por outro lado
dadas as diferenças de capacidade e graus de cultura entre os povos
negros importados, está claro que a influência por eles exercida sobre
o povo americano que ajudaram a formar será tanto mais nociva quanto
mais inferior e degradado tiver sido o elemento africano introduzido
pelo tráfico. Ora, os nossos estudos demonstram que, ao contrário do
que se supõe geralmente, os escravos negros introduzidos no Brasil não
pertenciam exclusivamente aos povos africanos mais degradados, brutais e
selvagens. Aqui introduziu o tráfico poucos negros dos mais adiantados
e mais do que isso mestiços camitas convertidos ao islamismo e
provenientes de estados africanos bárbaros sim, porém dos mais
adiantados.
VI.
De fato, a primeira discriminação a fazer entre os africanos vindos
para o Brasil é a distinção entre os verdadeiros negros e os povos
camitas que, mais ou menos pretos, são todavia um simples ramo da raça
branca e cuja alta capacidade de civilização se atestava
excelentemente na antiga cultura do Egito, da Abissínia, etc.
Temos
assentado que o Brasil recebeu camitas puros como os fulás ou filanis,
do Haussá, e talvez com os fulas-fulas, do Futa-Djalan, vindos com os
escravos da Senegâmbia. Para os fulás, do Haussá, o fato está
comprovado no testemunho dos contemporâneos. Somente, tendo sido muito
reduzidos em número, não se lhes pode atribuir grande influência na
colônia africana do Brasil. Ao contrário, o número dos mestiços
camitas foi muito considerável e muito poderosa a ação por eles
exercida. Sangue camita pelos fulás orientais recebemos nós com os
haussás, adamauás e bornus; e pelos fulás ocidentais, do Futa-Djalan,
com os pretos fulos da Gâmbia e da Guiné Portuguesa. Mas sangue
camita recebemos ainda com os bantos orientais, vizinhos e aparentados
com os camitas Wahuma e Massai, da região dos lagos, e ainda com os
galos e somalis. Não sabemos se outros camitas vieram ao Brasil. Dos
negros que vieram escravos para a colônia, o Visconde de Porto Seguro
inclui bérberes. Sem explicação como está feita esta indicação, não
se sabe se ela se refere a fulás ou a outros camitas, do Saara ou da África
Setentrional. Mesmo sangue semita nos devia ter entrado com os bantos
orientais, tão expostos a incursões e misturas com os árabes, que
neles julgou Stanley predominar esta influência. Também não é fácil
nos mestiços bornus separar a influência camita da semita. O que
sabemos por experiência própria da superioridade em inteligência e
cultura do mestiço ário-africano sobre os negros, se confirma na influência
exercida pelos fulás e seus mestiços nos povos mais cultos do Sudão.
Por toda parte estiveram eles á frente dos grandes impérios e reinos e
com eles penetrou o islamismo na África.
Se
não é lícito depor nestes mestiçamentos esperanças exageradas,
pois, embora irrequietos, inteligentes, ativos e empreendedores, os
taucaulenses (3)
se revelam simples povos negros, em todo caso se compreende que, no meio
americano muito mais favorável, estes mestiços possam adquirir valor
comparável ao do cruzamento ário-africano. Como quer que seja, a existência
de camitas pretos, puros ou mestiços, entre os escravos africanos que
vieram para o Brasil, retira todo valor ao argumento que leva a invocar
a favor da capacidade da raça negra e o exemplo de alguns homens negros
de reconhecida superioridade intelectual. Quando mesmo estes não fossem
mestiços ário-africanos, bem podiam ser apenas camito-africanos.
Esta
tangente apenas corre o risco de multiplicar demais a prole de Cã,
deste outro lado do Atlântico.
Mas,
se deixados à parte os camitas e seus mestiços, procuramos julgar
das qualidades dos colonos negros, verificamos que entre eles força é
estabelecer desde logo distinções e agrupamentos.
VII.
A distinção principal, a mais geral e conhecida é em negros bantos e
sudaneses. Mas começam as desinteligências quando se tem de
estabelecer de estabelecer qual deles é o verdadeiro ramo negro ou de
negro puro-sangue.
Lepsius
admite que, sob o ponto de vista lingüístico, - e a distinção acima
é uma distinção lingüística, - se pode dividir a África em três
zonas : a zona banto, ao sul do equador ; a zona média, entre o equador
e o Saara; zona Mchamita, do Saara ao Mediterrâneo, vale do Nilo à Somália
inclusive. A língua banto seria para Lepsius peculiar à raça negra,
primitiva e originária da África. As línguas da zona intermediária
seriam ao contrário línguas mistas, participando do banto e da camítica.
Um
dos etnologistas modernos mais reputados, Keane, sustenta ao contrário,
como muitos outros, que o verdadeiro negro é o sudanês. “Falando em
geral, diz ele, as populações bantos mostram modificações notáveis
do tipo negro na sua cor mais clara, na sua maior capacidade craniana,
nos dentes menores e no prognatismo menos pronunciado. Elas são
notavelmente mais inteligentes, mais civilizadas e mais capazes de
ulterior desenvolvimento do que o negro puro-sangue. . . As raças de língua
Banto são povos negróides mestiços, sendo indubitavelmente o negro o
elemento predominante, como bem mostra o predomínio geral do preto, de
cabelo lanzudo, a cor escura, além das superstições grosseiras
associadas à feitiçaria, de caráter essencialmente negro. Com o
substrato negro estão misturados invasores semitas (árabes) na Costa
oriental e por toda parte, mais provavelmente camitas, principalmente
galos, provenientes do Noroeste”.
No
entanto, se se comparam os povos bantos aos sudaneses, tem-se a impressão
de que, através de toda a culta e sanguinária barbaria dos últimos,
povos há no Sudão que atingiram a uma fase de organização, grandeza
e cultura que nem foi excedida, nem talvez atingida pelos bantos. Quando
se acompanha a história movimentada da família mandê, a sua remota
influência nos impérios da bacia central do Niger, embora talvez sob o
influxo dos bérberes e fulás, a sua atividade atual, inteligente e
progressista, a competência vantajosa, segundo Binger, que move aos Fulás,
é difícil acreditar que lhes sejam superiores os negros austrais. Mas
não é só esta família. Os achantis são, no acordo geral dos
observadores, um dos povos mais civilizados da África. E o c.el
Ellis mostra que os povos da Costa dos Escravos, em particular os
daomeanos e iorubanos, têm atingido um período adiantado de organização.
Mais adiantados são, por ventura, os haussás, em cujos domínios,
ainda talvez por influxo e ascendência dos fulás, se constituíram nações
muito policiadas. E achantis, emas, nagôs e haussás foram longamente
introduzidos no Brasil. É digno de nota que muito se acreditou na colônia
portuguesa a opinião expressa por Debret que os negros do Norte eram
mais fortes e resistentes do que os negros do Sul da África. Não está
claro, porém, em Debret, se esta diferença é entre negros bantos e
sudaneses, ou se, como afigura Martius, entre negros bantos do Norte e
do Sul. Martius considera os macuas menos inteligentes, menos ativos,
mais fracos e menos aclimáveis no Brasil do que os congos, angolas e
cabindas.
NOTAS
(1)
Eis como Morselli aprecia recentemente as conseqüências, nos Estados
Unidos, do cruzamento de negros e brancos ainda nas suas melhores hipóteses.
"Se questa fusione si intende nel senso biologico - cioè che dalle
unione fra i Negri e i Bianchi debba uscire una razza meticcia veramente
Afro-Anglosassone, - l'avvenire della grande nazione ne sarebbe
minacciato. Sono, infatti, vantaggiose soltanto le mescolange di
elementi etnici non troppo dissimili Sotto tale riguardo 1'immigrazione
Olandese, la Tedesca, 1'Italiana portano utilissimo contributo alla
definitiva formazione del neo-tipo etnico Nord-Americano, temperando
vicenderalmente le tendenze eccessive delle singole stirpi ed arrecando
ognuna il suo corredo di buone attitudine nazionali. Ma i Negri sono al
disotto dei Bianchi in tutto: nella energia vitale, nella intelligenza,
nel carattere. Ove il loro numero fosse soverchio, il tipo misto che
uscirebbe dall'unione completa fra le due Razze non potrebbe a meno dal
ritenere parte di quella deficienza, e quindi si abbasserebbe. Che se
1'elemento Negro sará invece soasso, avrá luogo il suo completo
assorbimento, e dopo poche generazioni tutti, i discendenti saranno
tornati al tipo attonito più forte: ad ogni modo, il lavoro di fusione
avrá sempre apportato alla razza superiore
una notevole perdita avrá con ciò ritardato i progressi della
civiltà Americana”.
Julgada
nas condições particulares da colonização do Brasil, seria erro
deplorável reconhecer a utilidade seletiva do cruzamento afro-lusitano
em que se vai absorvendo o elemento negro da nossa população. Mas
impossível desconhecer que esta melhor hipótese para que apelamos como
para uma nossa vantagem sobre os Estados Unidos na solução do problema
"o negro", pelo menos incide na última alternativa formulada
por Morselli.
(2)
Tive a satisfação de ver confirmadas neste asserto observações mim
feitas e demonstradas para o negro brasileiro (Ilusões da catequese
no Brasil, in "Rev. Bras.", 1896), numa época em
que eu ainda não conhecia a obra de Ellis.
(3)
Palavra não muito nítida no original (Nota de H. P.).
Nina
Rodrigues. Os Africanos no Brasil. 6.ed. Ed. Nacional; [Brasilia]
Ed. Universidade de Brasilia, 1982. cap. VIII. p.261-271.
Obs:
as notas também são do texto original.
|
A sobrevivência psíquica na criminalidade dos negros no Brasil |
I.
A propósito dos meus estudos sobre atavismo paranóico, escreveu o
insigr.e psiquiatra russo Dr. Jacoby:
"Nina
Rodrigues combate a teoria da paranóia (Tanzi e Riva), mas o seu belo
trabalho sobre animismo dos negros brasileiros, de uma importância
capital e do mais alto valor para o estudo da psicologia social,
pleiteia contra ele. Evidentemente nessas epidemias psíquicas os
fatores determinantes são a sugestão coletiva e o contágio moral,
como o tinha mostrado Sergi, mas há ainda o fator predisponente, o
terreno psíquico, e Nina Rodrigues nos faz tocar com o dedo, por assim
dizer, o caráter reversivo, o retorno da mentalidade dos negros e dos
mulatos brasileiros".
II.
Acredito que, nesta apreciação dos meus trabalhos, como nos seus
brilhantes estudos de psicopatologia social, o eminente escritor russo
confunde indevidamente num fato único dois fenômenos psíquicos
distintos, o atavismo e a sobrevivência.
O
atavismo é um fenômeno mais orgânico, do domínio da acumulação
hereditária, que pressupõe uma descontinuidade na transmissão, pela
herança, de certas qualidades dos antepassados, saltando uma ou algumas
gerações. A sobrevivëncia é um fenômeno antes do domínio social, e
se distingue do primeiro pela continuidade que ele pressupõe:
representa os resquícios de temperamentos ou qualidades morais, que se
acham ou se devem supor em via de extinção gradual, mas que continuam
a viver ao lado, ou associados aos novos hábitos, às novas aquisições
morais ou intelectuais
De
uma e de outro tenho tido conta nos meus estudos da criminalidade negra
no Brasil. Considero a reversão atávica uma modalidade da degeneração
psíquica, da anormalidade orgânica que, quando corporizada na inadaptação
do indivíduo à ordem social adotada pela geração a que ele pertence,
ou, para servir-me de uma expressão predileta de Tobias Barreto, quando
se corporizou na inadaptação às condições existenciais de uma
sociedade, que é a sua, constitui a criminalidade normal ou ordinária.
A
sobrevivência criminal é, ao contrário, um caso especial de
criminalidade, aquele que se poderia chamar de criminalidade étnica,
resultante da coexistência, numa mesma sociedade, de povos ou raças em
fases diversas de evolução moral e jurídica, de sorte que aquilo que
ainda não é imoral nem antijurídico para uns réus já deve sê-lo
para outros. Desde 1894 que insisto no contingente que prestam à
criminalidade brasileira muitos atos antijurídicos dos representantes
das raças inferiores, negra e vermelha, os quais, contrários à ordem
social estabelecida no país pelos brancos, são, todavia, perfeitamente
lícitos, morais e jurídicos, considerados do ponto de vista a que
pertencem os que os praticam.
III.
A contribuição dos negros a esta espécie de criminalidade é das mais
elevadas. Na sua forma, esses atos procedem, uns do estádio da sua
evolução jurídica, procedem outros do das suas crenças religiosas.
A
persistência das idéias do talião explica um grande número de crimes
da nossa população negra e mestiça.
De
fato, na África ele “é sempre a grande lei e muitas vezes executado
diretamente pelos interessados” (Letourneau).
Da
persistência, na África, do talião organizado em forma de processo
regular, dão-nos conhecimento observações da atualidade. Binger
descreve assim uma execução a que ele assistiu a 19 de julho de 1887
no mercado de Uolosebigu, Senegal, na qual foram mutilados três ladrões
de cawries: “Um pouco antes da execução, dois sobas
fizeram calar e sentar-se toda a assembléia a golpes de tuqui
(?). Em seguida o chefe da aldeia, exercendo as funções de carrasco,
faz cada ladrão colocar a mão esquerda sobre um cepo, e, de um golpe
de sabre, decepou a mão, que era levada ao Kali (governador).
Terminada a execução, ninguém mais falou nisso. As três mãos foram
atadas a um poste e deixadas em exposição por muitos dias. Os três
mutilados partiram sem que ninguém se preocupasse com ele: um morreu no
dia seguinte; os outros dois sobreviveram a esse terrível suplício.
Nesta terra não é raro se ver curarem feridas deste gênero" (I,
pág. 35).
Numerosos
casos destes, em que particulares não fizeram mais que aplicar
modalidades do talião (sofrer pela parte que pecou), conheço eu na
nossa criminalidade negra.
A
gravura n.° I (1)
mostra as mãos aleijadas do menino J., a quem a sua avó meteu ambas as
mãos em uma panela dágua fervendo, para puni-lo d~e haver furtado
comida de uma marmita colocada no fogão.
A
gravura n.° II (2)
mostra as mãos da menina A., a quem a amante de seu pai meteu
igualmente as mãos em água fervendo, para puni-la de ter roubado. A
queimadura causou a morte da criança.
Conheço
em São Tomé de Príncipe um mulato aguadeiro, que tem uma mão
decepada por um negro, a quem ele havia aplicado uma bofetada.
A
gravura n.° III (3)
mostra a mão de um negro decepada pelo mesmo motivo. Já é o ponto de
honra do rifão: Bofetada, mão cortada.
A
gravura n.° IV (4)
mostra uma criancinha de dois anos, cuja avó, africana, lhe aplicou
sobre os lábios uma colher de metal muito quente, a fim de puni-la,
pela queimadura da boca, da indiscrição infantil de ter dito a
um cobrador, de quem se ocultava a velha, que esta se achava em casa.
Num
dos distritos de Serrinha, há cerca de uns dez anos, o processo de uma
mulher mulata, de certa posição, que puxou fora e deu largo talho na língua
de uma menina, por ter esta cometido ligeira indiscrição.
O
conceito do direito de propriedade das sociedades africanas dá, ao meu
ver, a justificação moral de grande número de crimes praticados pelos
negros brasileiros. Dos negros americanos, a este respeito escreveu
Thomas: “Furtos de coisas grandes ou pequenas não são uma ofensa
culposa aos olhos dos libertos, e o ladrão preto não é para eles um
objeto de aversão, senão quando o ato criminoso é praticado contra
sua própria pessoa ou bens; nesses casos, eles são os mais prontos a
denunciar o crime e os mais vociferadores na condenação do
criminoso”.
Antes
de ver neste fato, como pensa o autor citado, uma especial manifestação
de egoísmo criminoso, é lícito pensar numa persistência do estádio
da evolução jurídica, em que não há responsabilidade individuais
nos crimes praticados contra os representantes das gentes ou tribos
distintas e mais ou menos diferentes. Então os atos só são sentidos
como criminosos, só despertam e ferem a consciência jurídica, quando
praticados contra as membros da mesma comunidade, e não quando lesivos
de comunidades estranhas. Ora, era esta a fase da evolução jurídica
em que se achava grande número de povos negros, quando deles foram
retirados os escravos vendidos para a América.
(1)
Não foi encontrada (H. P.).
(2)
Não foi encontrada (H. P.).
(3)
Não foi encontrada (H. P.).
(4)
Não foi encontrada (H. P.).
Extraído
de
Nina
Rodrigues. Os Africanos no Brasil. 6.ed. Ed. Nacional; [Brasilia]
Ed. Universidade de Brasilia, 1982. Cap. VIII. p.272-275.
Obs:
as notas também são do texto original. |
Biografia de NINA RODRIGUES |
COMENTÁRIO
NOSSO. Os livros de história do Brasil de nossas escolas do ensino
fundamental e médio têm omitido, intencionalmente ou não, quando
tratam da promoção da imigração branca européia pelo governo
brasileiro no final do séc. XIX e início do XX, que entre suas motivações
havia todo um projeto de eliminação das raça negra e indígena, que
compunham há época bem
mais da metade da população brasileira. As propostas iam da 'diluição'
do sangue negro e indígena pelo branco, até à devolução dos negros à África.
Manifestações desse projeto de branqueamento deram-se nos protestos
contra a imigração de asiáticos por órgãos de nossa elite (algo
similar aos protestos contra as cotas para negros e pardos nas universidades
atualmente), e nas leis proibido imigrantes vindos da Ásia e da África
(vide Deodoro). Os livros de história não devem esconder
dos afro e indiodescendentes este capítulo de nossa história. Esse ensino ajudará a
fazer com que nossos jovens negros, indígenas, mestiços e asiáticos compreendam
porque, p. ex., eles vêem tão pouco dos seus na mídia e nos cargos de
comando deste país. Sobre o assunto recomendamos O Espetáculo das
raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930,
de Lilia Moritz Schwarcz, São Paulo: Companhia das Letras, 1993; e, Onda
Negra, Medo Branco; o negro no imaginário das elites – século XIX,
de Ana Celia Maria Marinho de Azevedo, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. |
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.FUSÃO RACIAL / RACIAL FUSION
INFORMATIVO DO MOVIMENTO NAÇÃO MESTIÇA
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