O propósito de escrever sobre Elvira Foeppel apareceu de uma vez, com toda força, mas não rompeu a minha casca, ficou remoendo a ânsia de virar papel. Foi quando ela morreu. Enviou-me Maria Schaun a fotocópia da “Crônica da Capitania” do dia 3 de agosto de 1998, coluna de Hélio Pólvora no “A Região” de Ilhéus.

Naquele dia meu espírito se encheu da dor e da doçura da saudade de uma vida. A bela e extraordinária Elvira jazia agora, como suas letras, entre estantes esquecidas. Prometi acordá-la. Prometi não deixar que os bichos comessem suas palavras.

Lá de trás veio um menino de dez anos, rolando um puff redondo sobre os compridos sofás do acolhedor apartamento da Glória. Rolava a meninice irreverente diante de uma mãe aflita que insistia em não ouvir a displicência de Elvira pelo “problema”. Ela parecia ter uma atenção especial por minha mãe, sua prima, talvez por serem duas Elviras. Desfilava suas idéias para trazê-la mais para perto do seu irrequieto mundo. Mundo de “gente” a quem se referia sempre tocando a ponta do indicador na têmpora, sugerindo que “gente” era quem pensava.

Outra onda trouxe pedras de gelo tilintando no copo do drink de Elvira, e a música de Ray Charles. Aos treze anos o menino ficou apaixonado por aquela melodia e aquela voz, impressionado com os graves da rádio-vitrola de Elvira.

- Quem é?

A professora vinda de Ilhéus foi quem respondeu, sorrindo o batom vermelho e aproximando os expressivos olhos escuros, sempre muito delineados.

- É Ray Charles, um cantor e pianista cego.

Falou cheia da paciência que aprendera na sua primeira profissão, mas com um jeito de quem queria seduzir, arranjar um cúmplice. A imagem do mundo escuro dele me veio através de sua música e da apresentação dela. Acho que foi a primeira vez que tive contato com um sentimento assim.

Não a imaginava grapiúna, flor nascida no chão do cacau. Nem cogitava de onde vinha - era cosmopolita. Sua prosa era da alma universal, sua curiosidade buscava o fundo do coração humano, angustiado em qualquer canto. Desabrochara no meu mundo. Cabia no meu querido Júlio Verne, encaixava-se na utopia que eu lia, e também na que eu sonhava.

Em março de 1997, quando em viagem ao Rio, fui ver sua irmã na Cândido Mendes. Soube então que ela estava doente. Saí com dois exemplares de “Muro Frio” - foram tirados de uma fileira de mais de vinte. Apartada de sua “gente”, Elvira não governava mais seus livros. Vendo os milhares de páginas estáticas, implorando que alguém lhes cheirasse o papel, tive novamente aquela sensação que Elvira esquadrinhara durante toda a sua vida.

O gosto pelos graves que Elvira trouxe no mesmo cesto que Ruby e Georgia on my Mind, me acompanha até hoje.

Foi de novo Maria Schaun quem me provocou. Com “A Violeta Grapiúna” me fez mostrar finalmente a violeta que guardava na minha memória.

Armando Schaun
Salvador, 12 de março de 2002.
Criada em 26.07.2002
Atualizada em 06.07.2004