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O PRIMEIRO CINEMA
Flávia Cesarino Costa. "O Primeiro Cinema, espetáculo, narração, domesticação". São Paulo, Scritta, 1995. Quando a Exposição Universal de Paris foi inaugurada em 14 de abril de 1900, os irmãos Lumière estavam patrocinando demonstrações públicas do seu Cinematógrafo e do processo de fotografia em cores que tinham inventado. Eles promoveram a apresentação de um cinematógrafo gigante onde, numa tela de 21 metros de largura por 18 metros de altura, instalada no Champs-de-Mars, um programa de 25 minutos de duração incluía a projeção de 15 filmes e 15 fotografias em cores. As 326 sessões deste espetáculo, de 15 de maio a 12 de novembro, foram vistas por quase 1,5 milhão de pessoas Estes números não significam, porém, que o cinema tivesse então alguma respeitabilidade, nem como atração autônoma, muito menos como uma forma de arte. A demonstração dos irmãos Lumière era mais uma forma de propagandear seu produto do que uma aparição apoteótica de uma mídia economicamente promissora. Nesta exposição, o cinema foi usado, em geral, como uma técnica meramente auxiliar, para incrementar as atrações de alguns pavilhões. Participava como coadjuvante em atrações visuais mais numerosas e populares, como era o caso dos panoramas e dioramas ou mesmo das performances teatrais. Por isso, como afirma Emmanuelle Toulet, "em 1900 o cinema, ainda longe de obter uma forma definitiva, moldava-se a formas mais antigas de espetáculo". Poderíamos dizer que as exposições universais da passagem do século funcionavam como um microcosmo do mundo civilizado. Uma espécie de vitrine onde as várias nações mostravam sua cultura e sua tecnologia. Cada país se fazia representar com grandes prédios ou instalações onde exibia suas particularidades culturais, seus principais produtos, seus sinais de progresso. Estas exposições eram também um espaço para as indústrias. Fabricantes, cientistas e comerciantes exibiam para o mundo seus novos produtos, serviços e invenções. Eram feiras de novidades tecnológicas, artísticas e culturais. Por que estas feiras nos interessam? Um pouco porque elas corporificam o hábitat cultural e social do tempo dos primeiros filmes A confiança positivista no progresso técnico e nas descobertas da ciência materializa-se com o advento da eletricidade e com o aumento da produção industrial através da mecanização e da divisão do trabalho. O cinema surgiu nos Estados Unidos e na Europa, no final do século XIX, em plena vigência de uma.cultura racionalista e de crença nas vantagens da modernidade. Emergiam novas técnicas e novas invenções que prometiam acelerar o ritmo dos processos industriais. As nações mais poderosas competiam encarniçadamente por novos mercados, lançando-se à disputa imperialista que é característica do período anterior à Primeira Guerra. Com a revolução científico—tecnológica ocorrida a partir de 1870, uma série de fatores passaram a alterar drasticamente a vida das pessoas que habitavam as cidades da Europa e dos Estados Unidos. A estrutura de produção industrial, até então baseada em pequenas fábricas, deu lugar à formação de grandes conglomerados produtivos. Por suas dimensões, essas indústrias exigiam o investimento de capitais privados, associados a setores estatais que passam a viabilizar a produção em escala de siderurgia, produtos químicos, energia. A chegada da eletricidade certamente transformou as percepções. A invenção dos aparelhos ligados a captação e recriação de imagens em movimento também acompanhou o movimento destas transformações. lnicialmente seguindo o modelo artesanal das produções científicas de então, os aparelhos de produção/reprodução visual de imagens entraram na corrente da industrialização massiva no momento mesmo em que acenaram com capacidades de gerar lucro e de expandir mercado. Como eram as várias atrações visuais representadas na feira de Paris? Em que consistiam estes espetáculos, que inicialmente influenciaram as exibições de cinema? A maioria deles se resumia a métodos de ilusionismo utilizando imagens, fotográficas ou não, para simular viagens no tempo e no espaço. Eram o que os contemporâneos chamavam de espetáculos totais ou ultra-realistas, muito comuns no início do século, e neles o cinema era um dos componentes, mas não o único. Emmanuelle Toulet descreve-nos alguns tipos de espetáculo apresentados na Exposição de Paris. Existiam, em primeiro lugar, os panoramas estacionários. Neles, pinturas detalhadas reproduziam paisagens de terras distantes, particularmente as colônias francesas, como para mostrar aos incrédulos a pujança do expansionismo francês. Era o caso do Panorama do Congo ou do Panorama de Madagáscar, do Diorama do Saara ou o Diorama de Fachoda. Mas havia também os panoramas animados, que pretendiam criar atrações ainda mais emocionantes, através do movimento, como o Stereorama ou o Mareorama. O Stereorama estava "instalado no pavilhão da exposição argelina, (era) um trabalho de pintores orientalistas, e reproduzia uma viagem pelo Mediterrâneo ao longo da costa argelina, partindo de Bône ao amanhecer e chegando em Orã no pôr-do-sol". Uma tela móvel e efeitos de luz davam ao público uma sensação indescritível (pelo menos era isso que o catálogo de publicidade prometia) de deslocamento, dentro da paisagem que se movia lentamente diante dos olhos do espectador. Mareorama era ainda mais sofisticado. Estava construído num prédio de quarenta metros de altura, onde cabiam 1,5 mil pessoas. Sua atração era a simulação de uma viagem também pelo Mediterrâneo, entre Marselha e Constantinopla. Os espectadores entravam numa cabine simulada de navio, diante da qual uma imensa tela de 15 metros de altura mostrava uma paisagem pintada. Atores vestidos de marinheiros e eventuais músicos e dançarinos recebiam os passageiros. Enquanto isso, uma equipe escondida trabalhava para movimentar a cabine dos passageiros simulando oscilações marítimas. Desenrolavam lentamente os mil metros de comprimento da tela fazendo desfilar a paisagem e controlavam os efeitos de luz — que variavam conforme a hora do dia que estava sendo representada. Movimentavam ainda uma plataforma coberta de algas marinhas, para criar a ilusão (olfativa!) de uma brisa marítima. Este tipo de atração tinha um objetivo principal: maravilhar o espectador. Na passagem do século, cada novo tipo de performance era batizado com um nome inédito, e muitas vezes era patenteado, no caso de envolver maquinário específico. Os empreendedores deste tipo de espetáculo escondiam seus segredos e enfrentavam acirrada competição. Em 13 de novembro de 1896, Grimoin-Samson patenteou um Panorama que, ao invés de utilizar telas pintadas, mostrava filmes de paisagens panorâmicas: o Cineorama. Era a simulação da viagem de um balão que voava sobre a Europa. A audiência subia numa plataforma circular e assistia à projeção, numa tela circular em 360 graus, de um filme em 70mm, colorido à mão, que tinha sido filmado a partir de um balão real. Havia também, na Exposição de Paris, o Phono-CinémaThéatre, que envolvia a projeção de filmes e a execução de gravações fonográficas. Ao seu lado estava instalado o théatroscope, que combinava "imagens cinemáticas e ilusões de ótica, misturadas com dioramas e acompanhadas de performances musicais e gravações fonográficas". E ainda se podia visitar o Pavilhão das Viagens Animadas, onde sete programas diferentes mostravam filmes dos Lumière e fotos em cores de Gaumont e Lévy acompanhados por música e declamações ao vivo Dentro de um contexto como o desta feira, os filmes que se exibiam eram em geral aqueles que reproduziam paisagens externas, com caráter documentário: gente tomando banho de rio, o mar batendo nas pedras, desfiles de autoridades, cenas urbanas, multidões. Mas já desde 1895 circulavam pela França outros tipos de filmes, que reproduziam números de Magia, gags burlescas, encenações de canções populares, contos de fada. Estes filmes estavam sendo mostrados em quermesses, vaudevilles, lojas de departamento, museus de cera, circos e teatros populares. Na verdade, este era o caminho principal pelo qual o cinema se expandia nos seus primeiros anos. As feiras universais deste período funcionaram como um mostruário espetacular das maravilhas tecnológicas que o novo século prometia. Mas, como afirma Toulet, embora tenham oferecido muitos usos diferentes para o cinema, não o viam como uma atividade promissora. O cinema permaneceria ainda alguns anos como uma atividade marginal e acessória. Durante esse período, os filmes produzidos para o cinema tinham este caráter de espetáculo popular e, ao contrário dos panoramas, não eram vistos como diversões sofisticadas, nem encarados como formas narrativas construídas segundo o modelo das artes nobres do período. Os espetáculos ultra-realistas também existiram nos Estados Unidos. Raymond Fielding pesquisou o mais importante destes espetáculos na América, os Hale’s Tours. Ele conta que George C. Hale era um ex-chefe de bombeiros que, além de inventar novos instrumentos, encenava performances de combate ao fogo. Hale conheceu as atrações de Paris quando foi fazer um de seus espetáculos na Exposição Universal. Ao retornar, comprou os direitos sobre um tipo de diversão que ele batizou de Hale’s Tours and scenes of the world. Era um vagão artificial de trem, que ficava estacionário, enquanto numa grande tela à frente eram projetadas imagens de cinema, filmadas a partir da frente de um trem em movimento. O primeiro show aconteceu em 28 de maio de 1905. O vagão era sacudido, o trem apitava, as rodas faziam barulho, ventava. Compunha-se assim um tipo de experiência de simulação que se espalhou pelos Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha. Era uma diversão sempre nos parques de diversão. Muita gente teve o seu primeiro contato com o cinema através do Hale’s Tours. E também seu primeiro contato (ainda que não exatamente real) com a experiência(cara)de andar de trem.Segundo Raymond Fielding, os jornais da época diziam que (...)a ilusão era tão boa que quando se mostrava o trem atravessando cidades, membros da audiência freqüentemente acenavam para que os pedestres saíssem do caminho e não fossem atropelados. Um destes espectadores começou a voltar todos os dias, pensando que mais cedo ou mais tarde o maquinista iria cometer um erro e ele veria um desastre de trem. Os cinco anos que separam as primeiras apresentações dos Hale’s tours das atrações da Exposição Universal de Paris viram acontecer, porém, grandes transformações nas formas de produção e de concepção dos filmes. Na Exposição de 1900, os filmes dos Lumière mostravam cenas documentárias reais, filmadas ao redor do mundo. Mas em 1906, o Hale’s Tours de Nova York concluía, entre seus filmes, The hold-up of the Rocky Mountain express (Biograph, Bitzer, 1906) e The great train robbery(Edison, Porter, l903). Esses filmes eram já pequenas ficções, que possuíam uma estrutura narrativa mínima e refletiam muitas mudanças. Estas mudanças serão um dos assuntos dos quais tratará este trabalho. Paradoxalmente, o intervalo de tempo que decorre desde as primeiras projeções de filmes até a consolidação do cinema como uma forma narrativa auto—suficiente é pequeno, mas crucial. Crucial não apenas porque engloba um conjunto de rápidas e importantes transformações, mas principalmente porque estas transformações resultam de um jogo de tendências múltiplas, muitas vezes conflitantes, que então determinam a maneira de se fazer e consumir filmes. Estas tendências agem no contexto cultural de transição entre o século XIX e o século XX. Estão ligadas ao nascimento de uma nova forma de percepção diante do que se chamaria de mundo contemporâneo: urbanização, industrialização, aceleração dos transportes e das comunicações, expansão da classe média. Um mundo que via nascer uma outra velocidade, outras demandas e que estava começando a gerar outros medos. A invenção da fotografia, ao mesmo tempo em que atualizou o sonho de reprodução total da realidade, trouxe uma nova forma de visibilidade para a passagem do tempo: o instantâneo. Como afirma Lúcia Santaella, a eternização do instante na fotografia "inevitavelmente aponta para seu avesso: a irrepetibilidade e morte irremediável do flagrante capturado." É intrigante como os primeiros filmes nos trazem essa consciência incômoda do instante assassinado muito mais fortemente do que nos filmes mais recentes. O que certamente ajuda a explicar a força dos atuais modelos narrativos sobre nossa percepção. A narração atua, talvez, como uma espécie de conforto psicológico, fazendo-nos esquecer aquela morte do instante e criando a sensação de uma duração perpétua, sempre repetida, imortal. Os primeiros filmes evidentemente escancaram essa morte do instante mesmo quando tentam ser narrativos. Para o nosso olhar contemporâneo, a narratividade deles é precária, fugidia. Precisa ser retomada a todo momento, pois se desfaz em cada erro na manutenção dos efeitos ilusórios da ficção. Ao contrário do cinema narrativo posterior, em que o espectador sabe-se protegido pelo muro invisível dessa ficção, o primeiro cinema exibe numerosas descontinuidades. Além disso, o observador é repetidamente chamado a participar da cena e responder aos acenos e piscadelas dos atores, que se dirigem ostensivamente à câmera e deixam claro que sabem de nossa presença. Há, enfim, inúmeros momentos em que se rompe a diegese. Costuma-se usar o termo diegese para designar o ambiente autônomo da ficção, o mundo da história que está sendo contada. Diegese é o processo pelo qual o trabalho de narração constrói um enredo que deslancha de forma aparententemente automática, corno se fosse real, mas numa dimensão espaço-temporal que não inclui o espectador. O efeito diegético será mais intenso quanto menos evidentes forem as marcas de enunciação do discurso. A diegese articula-se diretamente com certas formas de narração, seja ela literária, teatral ou cinematográfica. Quanto maior é a impressão de realidade, mais diegético é o efeito da ficção. A diegese pode ser solapada, inversamente, todas as vezes em que aparecem sinais de que se trata de um discurso construído: é o que acontece no teatro de Brecht, no cinema experimental, no descompasso de som e imagem dos filmes de Godard ou de Glauber Rocha e mesmo nos espetáculos de canto e dança dos filmes musicais clássicos. No primeiro cinema percebemos claramente a precariedade desse efeito diegético, mesmo nos documentários daquela época, que se chamavam "atualidades" e misturavam "realidade" e "ficção". Diante dos primeiros filmes, temos hoje várias impressões contraditórias. Percebemos neles uma gritante energia, meio anárquica, meio irreverente. Mas estes filmes nos dão, ao mesmo tempo, uma sensação estranha de morte. Todas as coisas que vemos ali já desapareceram, mudaram, morreram, incrustadas na finitude de uma duração que se extinguiu. O curioso, e é isso que nos interessa, é que esta sensação desaparece à medida que vemos filmes mais recentes, isto é, à medida que os filmes vão se tornando narrativos. Um filme dos anos 30 tem certamente tantos mortos quanto um filme do início do século, mas no primeiro caso nós facilmente nos esquecemos disso. Talvez seja uma certa mágica pacificadora da narrativa. Não é à toa que os grupos reformadores dos anos 10, nos Estados Unidos, atacavam no cinema exatamente suas formas não-narrativas, que, para eles, "estimulavam um nervosismo insalubre", já que os eventos mostrados não tinham uma conexão real entre si e poderiam gerar uma espécie de intranqüilidade explosiva. O fato é que assistir desavisadamente a qualquer filme do primeiro período nos dá hoje uma grande sensação de desconforto, de dificuldade de entender exatamente o que se passa. Começamos a nos perguntar sobre como é que, afinal, se entendiam, naquela época, tais filmes. O que teria acontecido para que a linguagem do cinema saísse desse estado que tanto nos estranha para se tornar algo tão automático em nossa percepção? A partir destas indagações pretendemos descrever o que era este primeiro cinema e, desta forma, dimensionar o abismo histórico que nos separa das primeiras imagens em movimento. Sabemos que nosso desconforto é uma sensação contemporânea, a sensação de quem está acostumado a assistir, no escuro do cinema, a histórias narradas. Esquecemo-nos de que algum dia tivemos de aprender a linguagem dessas histórias narradas em imagens. Precisamos, antes de tudo, tentar resgatar o tipo de experiência que os primeiros filmes representavam em sua própria época. Designaremos como primeiro cinema os filmes e práticas a eles correlatas surgidos no período que os historiadores costumam localizar, aproximadamente, entre 1894-5 e 1906-8. É a chamada primeira década do cinema. Optamos pelo termo primeiro cinema para traduzir o termo em inglês early cinema. Sabemos que early cinema muitas vezes se refere às duas primeiras décadas do cinema, onde se destaca um primeiro período (1894-5 a 1906-8), não narrativo (que vamos trabalhar aqui), e um segundo período (1906-8 a 1913-15), de crescente narrativização. Ocorre que as características atribuídas geralmente aos early films são aquelas que nos interessam neste trabalho e que servem para lidar com os primeiros filmes no sentido em que nos propomos fazer aqui. Da mesma maneira, traduziremos early films por primeiros filmes. Não consideramos adequados os termos cinema primitivo ou filmes primitivos, utilizados, por exemplo, por Noel Burch. Do nosso ponto de vista, o termo primitivo ainda permanece muito associado a uma visão determinista da história do cinema - que considera os primeiros filmes como pouco evoluídos dentro de uma escala ascendente de aperfeiçoamento da linguagem do cinema. O próprio Burch critica este tipo de historiografia, mas não se separa totalmente de seus pressupostos — a primazia da linguagem institucional ou clássica — ao manter este termo. Também não quisemos traduzir early cinema pela expressão cinema dos primeiros tempos, criada em francês por André Gaudreault para eliminar a carga teleológica do termo primitivo quando associado a este cinema. Quisemos, ainda, evitar os termos cinema das origens ou cinema dos inícios porque a discussão em torno da questão das origens do cinema é polêmica e por si só exigiria um trabalho bem mais extenso do que aquele pretendido aqui. Na verdade, o termo de Gaudreault é o que nos parece mais adequado para indicar uma definição o mais isenta possível de conotações. O problema é que Gaudreault criou o termo dentro de uma tentativa de construir uma teoria dos processos narrativos do cinema, já nossa preocupação é descrever este primeiro cinema de um ponto de vista não apenas semiótico, mas também histórico. As datas referentes ao primeiro cinema não são arbitrárias. A delimitação do período abarcado pelo primeiro cinema fundamenta—se na constatação, por parte da historiografia recente, da presença de algumas características constantes no cinema até 1906-08. São características relativas aos modos de produção e exibição dos filmes, à composição e comportamento do público e às formas de representação destes filmes. A dificuldade em descrevermos o primeiro cinema decorre do fato de que este período é um momento de constantes transformações. Há, como afirma Musser, poucos elementos de estabilidade. Existe mudança e diversidade nas formas de produção de filmes, nas práticas de exibição destes filmes, na composição do público, nas estratégias de comercialização, nos temas filmados e na maneira de filmá-los. É um tempo em que a falta de controle institucional e também a ausência de rígidas regras, tanto formais quanto morais, dão aos primeiros cineastas uma certa liberdade de criação. Mas à medida em que os filmes vão dialogando com as mudanças de seu tempo, eles vão também se modificando rapidamente. O primeiro cinema é sobretudo um processo de transformação. Transformação que é visível na evolução técnica dos aparelhos e da qualidade das películas, na rápida transição de uma atividade artesanal e quase circense para uma estrutura industrial de produção e consumo, na incorporação de parcelas crescentes do público. E, paralelamente, o primeiro cinema inclui também as transformações formais na linguagem que este contexto propicia. Todas estas mudanças acontecem, como já afirmamos, num período relativamente curto, que merecerá nossa atenção. Charles Musser explica que para entendermos o início do cinema é preciso lembrar que a história das "imagens em movimento" não inclui apenas as "imagens fotográficas projetadas na tela para um grupo de pessoas" (como habitualmente se define o cinema). A história das "imagens em movimento" inclui também formas individualizadas de exibição de imagens,que não envolviam projeção: O quinetoscópio e o motoscópio. O quinetoscópio era uma máquina que apareceu em 1894 nos Estados Unidos, inventada por Thomas Edison. Possuía um visor através do qual se podia assistir, mediante a inserção de uma moeda, a exibição de uma pequena tira de filme onde apareciam imagens em movimento de lutas de boxe, bailarinas, cenas eróticas, números cômicos, animais amestrados ou quadros da Paixão de Cristo. Filmes como Sandow (Edison, Dickson/Heise, março 1894), Cock fight (Edison,James White/Heise, dezembro 1896), ou Anabele serpentine dance (Edison, Dickson/Heise, inverno de 1895) foram feitos no estúdio da Cia. Edison, o Black Maria, para serem mostrados nessas maquininhas . Sandow mostrava o artista Eugene Sandow exibindo seus músculos da mesma maneira como ele se apresentava ao vivo, quando atuava para quadros vivos acompanhado de música. Cock fight mostrava uma briga de galos que teve de ser refilmada, já que a primeira versão, de 1894, perdeu-se. Anabelle serpentine dance mostra a dançarina Annabelle Whitford (que apareceu em muitos filmes de Edison) executando uma dança muito popular no final do século XIX. Tanto o quinetoscópio como o quinetógrafo — a câmera que fazia os filmes para o quinetoscópio — eram invenções que tinham sido desenvolvidas nos laboratórios de Thomas Edison em West Orange, New Jersey por Wiiliam Kennedy Laurie Dickson, a partir de 1887. O quinetógrafo patenteado em 1891, é a câmera com a qual todos os filmes nos Estados Unidos, até 1896, foram filmados. O primeiro quinetoscópio foi vendido em abril de 1894. O invento fez sucesso rapidamente. Em poucos meses os quinetoscópios tinham se espalhado pelos salões de diversões da época (penny arcades, phonograph parlors), além de saguões de hotéis e parques de diversões. O mutoscópio também era uma máquina que mostrava imagens fotográficas por um visor. Eram imagens semelhantes aos fotogramas dos filmes, só que impressas em papel. Um mecanismo folheava estas fotos, dando a ilusão de movimento. Os mutoscópios também foram inventados por Dickson em 1895. Neste ano, Dickson saiu da Cia. Edison e fundou, em 27 de dezembro, com outros três sócios, a American Mutoscope Company: A empresa também aperfeiçoou um projetor, o Biograph, que conseguia mostrar filmes "maiores e fotograficamente superiores" aos que existiam. A empresa tornou-se a principal concorrente de Edison. Passaria a se chamar American Mutoscope and Biograph Company e teria um papel importante na década seguinte. Apesar do interesse pelas pequeninas e bruxuleantes imagens mostradas pelos quinetoscópios ter diminuído logo, estas máquinas conseguiram arrecadar muito mais dinheiro do que as outras atrações óticas do período. Como aponta Michael Chanan , o conhecido historiador Jacques Deslandes tem razão ao dizer que o sucesso econômico do quinetoscópio é que explica o início do cinema, já que evidenciava a viabilidade comercial deste tipo de diversão: É inútil reanimar as controvérsias de anterioridade concernentes as particularidades técnicas dos primeiros aparelhos de projeção ou de filmagem cinematográfica. O fio condutor não está ali. (...) O fato essencial, o ponto de partida que conduziu enfim à realização prática das projeções animadas, é o níquel que o espectador americano fazia deslizar da fenda do Quinetoscópio Edison, são os 25 centavos que o passante parisiense pagava em setembro de 1894 para poder grudar os seus olhos no visor do Quinetoscópio(...). É isso que explica o nascimento do espetáculo cinematográfico na França, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, durante o ano de 1895. As fotografias animadas não eram apenas experiências de laboratório,curiosidades científicas, mas elas podiam de agora em diante, ser consideradas como uma forma rentável de espetáculo. Quando os irmãos Lumière mostraram pela primeira vez o seu Cinematógrafo, a 28 de dezembro de 1895, em Paris, Edison ainda não tinha conseguido aperfeiçoar um projetor que funcionasse satisfatoriamente. Mas em janeiro de 1896, diante da notícia de que o cinematógrafo Lumière estava chegando à América, Edison começou a fabricar o Vitascópio, um projetor que tinha sido inventado em Washingtou por Thomas Armat e Francis Jankins. Norman Raff e Frank Gammon, vendedores exclusivos de quinetoscópio desde setembro de 1894, também se tornaram os únicos licenciados para a venda de vitascópios e de filmes. Mas eles acabaram falindo no final de 1896, porque não tinham privilegiado, em sua estratégia de vendas, o principal comprador de filmes naqueles anos: a rede de vaudevilles e teatros de variedades. Os irmãos Lumière estavam muito melhor adaptados para servir ao mercado dos vaudevilles, que eles dominaram até serem expulsos pelas ameaças de Edison no verão de 1897. Os primeiros filmes apareceram em 1895. Começaram a ser exibidos em feiras, circos, teatros de ilusionismo, parques de diversões, cafés e em todos os locais onde havia espetáculos de variedades. Mas o principal local de exibição de filmes eram os vaudevilles. Os vaudevilles tinham surgido a partir dos teatros de variedades — com conotações exclusivamcnte eróticas — que, em geral, funcionavam anexos aos chamados "salões de curiosidades" (curio halls, que exibiam coisas como mulheres barbadas, anões, bichos de duas cabeças e outras aberrações) dos dime museums (museus cujas atrações custavam dez centavos). Mas nas últimas décadas do século XIX o vaudeville já estava deixando de ser um espaço pervertido. Eileen Bowser descreve esta transformação: Antes o vaudeville tinha sido domínio de uma audiência de classe baixa, predominantemente masculina, um lugar onde se vendiam bebidas alcoólicas e onde não era difícil encontrar prostitutas. Mas no período que estamos considerando, (1900—1906), os vaudevilles tinham eliminado a venda de álcool, criaram ambientes elegantemente decorados, limparam os números oferecidos pelos performers e começaram a atrair uma audiência familiar. A atmosfera de baixo nível continuou, apesar disso, nos espetáculos burlescos, que tomaram o lugar do antigo vaudeville e eram o segundo maior setor de consumo de filmes. Filmes eram mostrados nos dime museuns, freak shows, peep shows, espetáculos itinerantes mas eram os vaudevilles que mais usavam os filmes, e continuaram a usá-los bastante. Mesmo depois do surgimento dos nickelodeons e dos story-front cinemas. Assim, em 1896, o vaudeville estava se tornando a forma mais freqüente de diversão popular e a competição entre os teatros começou a se acirrar intensamente. É nesse contexto, em maio de 1895, que o Cinematógrafo Lumière estreou nos Estados Unidos, fazendo um tremendo sucesso. Ficou em cartaz por várias semanas no Union Square Theater de Nova York, pois dobrou o faturamento habitual da casa. No final do século XIX o show de vaudeville compunha-se de uma série de atos, de dez a vinte minutos, encenados em seqüência e sem nenhuma conexão narrativa ou temática entre si: Uma sessão típica de Vaudeville em 1895 podia incluir um ato de acrobacia de animais, uma comédia pastelão, uma declamação de poesia inspirada, um tenor irlandês, placas de lanterna mágica sobre a África selvagem, um time de acrobatas europeus e um pequeno número dramático de vinte minutos encenado por um casal de estrelas da Broadway. Os primeiros filmes tinham herdado portanto essa característica de serem atrações autônomas, que se encaixavam facilmente nas mais diferentes programações. Os filmnes, em sua ampla maioria compostos por uma única tomada, eram pouco integrados a uma eventual cadeia narrativa. Os irmãos Lumière ofereciam um esquema de marketing muito interessante para os vaudevilles, que eram seu alvo predileto no mercado. Eles forneciam os projetores, o suprimento de filmes e os operadores das máquinas, e se encaixavam nas programações locais. Mas parte do sucesso do cinematógrafo Lumière deve-se ao seu design. Enquanto o Vitascópio pesava cerca de quinhentos quilos e precisava de eletricidade para funcionar, a máquina dos Lumière era ao mesmo tempo câmera e projetor, utilizava luz não elétrica e era acionada por manivela. Devido ao seu pouco peso, podia ser transportada facilmente e assim filmar assuntos mais interessantes que os de estúdio, encontrados nas paisagens urbanas e rurais, ao ar livre ou em locais de acesso complicado . Além disso, os operadores dos Lumière atuavam também como cinegrafistas e multiplicavam as imagens do mundo para fazê-las figurarem nos seus catálogos. Em 1897, Edison conseguiu expulsar os irmãos Lumière da América e aperfeiçoar outro projetor, o Projecting kinetoscope. Mas, como afirma Allain, os Lumière criaram "um padrão de prática industrial que sobreviveu para a década seguinte: o fornecimento, para os vaudevilles, de um ato completo incluindo projetor, filmes e operador", num esquema que o mesmo autor chama de pré-industrial e que foi determinante para o período do primeiro cinema nos Estados Unidos, pois mantinha a autonomia dos exibidores de filmes em relação à produção: Os irmãos Lumière, a Biograph, a Vitagraph forneciam um serviço ao vaudeville. Esta dependência do vaudeville adiou temporariamente a necessidade de o cinema americano desenvolver seus próprios caminhos de exibição, mas impediu que o filme adquirisse autonomia industrial. A estrutura industrial do vaudeville não requeria uma divisão do trabalho no sentido usual, ela acontecia, ao invés disso, dentro da própria apresentação do vaudeville: cada ato era uma entre oito ou mais unidades funcionais(...).O uso dos filmes no vaudeville não requeria uma divisão da indústria entre as unidades de produção, distribuição e exibição. Na verdade, ele queria que estas funções recaíssem sobre o operador, que era quem, com seu projetor, tornava-se um número autônomo de vaudeville. Tal esquema de autonomia dos exibidores durou até cerca de 1900, quando as próprias produtoras de filmes começaram a ter maior controle sobre os filmes, enquanto produtos finais. Elas aumentaram a duração dos filmes e a número de planos, ao mesmo tempo que tentaram descobrir técnicas de montagem. Uma crise de público aconteceu entre 1900 e 1903. Aparentemente a platéia começou a se aborrecer com os filmes. De qualquer modo, os exibidores estavam menos dispostos a se preocupar com o acompanhamento sonoro dos filmes e com a ordem das atrações dos programas, enquanto as companhias produtoras de filmes começaram a assumir a tarefa de construir números acabados, antes exercida pelos exibidores. Controlada pelos operadores/exibidores, ou determinado pelos produtores, a verdade é que o 1º cinema manteve o caráter anárquico do espetáculo de variedades. Durante toda a primeira década, a fronteira entre ficção e documentário era tênue. Como afirma Eileen Bowser, misturavam-se livremente filmes encenados e aqueles chamados de "atualidades". Nas atualidades apareciam não apenas cenas reais da vida cotidiana, cenários naturais, paisagens de terras distantes, desfiles e multidões nas ruas, mas também encenações de acontecimentos recentes — as "atualidades reconstituídas" — como guerras, incêndios, terremotos e assassinatos famosos, não havendo uma clara diferenciação no tratamento daquilo que tinha sido captado no calor da hora e o que tinha sido representado diante das câmeras por atores de teatro ou até parentes dos realizadores. Estas encenações de acontecimentos reais "eram mostradas como uma novidade dentro do programa do vaudeville, onde a livre mistura entre artifício e realidade aparentemente não incomodava a audiência", talvez porque ninguém duvidasse de que se tratava realmente de uma série de truques. A intenção realista no cinema só viria muito depois, acompanhando de certa forma a narrativização. Até 1906, os filmes de atualidades ou pequenas gags, iguais às que eram encenadas no circo ou nos vaudevilles, superavam em número os filmes de ficção, já que a maioria dos filmes encenados não tinha pretensão narrativa. Em geral, os filmes exibidos nos vaudevilles incluíam filmagens dos próprios números encenados nos vaudevilles, além do número de magia e ilusionismo, e quadros vivos sobre temas religiosos ou populares, muitas vezes retratados em músicas, piadas e cartoons. Incorporadas às atrações de feiras típicas do século XIX, circos, espetáculos itinerantes e encenações burlescas, tais filmes não eram, definitivamente, produtos acabados. As apresentações constavam de filmes curtos, compostos na sua maioria por apenas um plano. Quando um filme incluía muitos planos, estes eram comercializados em rolos separados e ficava a critério do exibidor a escolha e a ordem dos rolos que ele julgasse mais interessantes ou adequados para o seu público. Em seus primeiros catálogos, as produtoras de filmes exibiam cada um destes rolos como um quadro diferente. Os primeiros filmes foram influenciados pelos espetáculos de lanterna mágica, muito populares na época e que eram sempre apresentados por um conferencista. Estes espetáculos descreviam viagens a terras distantes, histórias populares ou canções e misturavam filmes com projeção de imagens coloridas das placas das lanternas mágicas. Também a Igreja se utilizava de sessões de lanterna mágica com o objetivo de atrair os fiéis nos seus momentos de lazer, segundo Georges Sadoul, para lhes mostrar "os horrores do inferno." Quando apareceram os primeiros filmes, eles foram incorporados nestas apresentações. As Paixões de Cristo foram alguns dos primeiros exemplos de filmes formados por mais de um plano. Eram compostas de planos autonômos, que descreviam os diferentes momentos da vida de Cristo na forma de quadros vivos, encenados segundo o modelo das Passion Plays. A tradição do uso da lanterna mágica para mostrar lugares exóticos e distantes, nos travelogues (palestras ilustradas sobre viagens), também levou os produtores a fazerem muitos filmes com esses assuntos. Até 1903, a maioria dos filmes que foram produzidos mostravam atualidades. Este tipo de filme se tornou muito popular por causa do envolvimento da Europa e dos Estados Unidos em guerras imperialistas. Havia filmes de atualidades que documentavam situações reais, como os dos Lumière. Mas alguns filmes também misturavam encenações e maquetes aos eventos reais. Eram as chamadas "atualidades reconstituídas", em que fatos recentes eram mostrados de forma muitas vezes sensacionalista. Os vários planos dos filmes, quando havia mais de um, eram juntados sem muita preocupação de continuidade ou inteligibilidade, já que se pressupunha que seriam explicados pelo comentador no momento da apresentação. Havia filmes que, como as Paixões Filmadas, consistiam numa série de quadros (tableaux) ligados entre si pelo tema e visualmente determinados pela estética do final do século: presença de molduras, alegorias personalizadas por atores, imobilidade. Eram filmes sobre temas políticos como de The martyred presidents (Edison Porter, 1901),alusivos à natureza como The four seasons ( Biograph, Bitzer, 1904), ou alusivos à natureza humana como The seven ages ( Edison, Porter, 1905). Segundo Tom Gunning, este tipo de filme surgiu muito cedo e desapareceu antes de 1905. A maioria dos filmes de ficção era composta de comédias — em 1903 elas representavam 30% dos filmes norte-americanos. Mas havia também os trick films (filmes de truques ou com trucagens), gags curtas e breves encenações de situações dramáticas. Exemplos de trick films são aqueles que utilizavam as paradas para subtituição e arranjo da cena, sobreposições e máscaras (como os filmes de transformações, mutilações e explosões). Havia poucos filmes sentimentais ou moralistas. A Biograph era líder na produção de filmes eróticos, cuja principal forma de exibição não eram as telas, mas os mutoscópios. Segundo Tom Gunning, o próprio Griffith teria dirigido vários destes filmes em 1908. As comédias eram o gênero mais comum e popular entre os filmes de ficção, e envolviam sempre algum tipo de malvadeza. As vítimas eram muitas: "amantes, policiais, cozinheiros, vagabundos, tintureiros chineses, proprietários de mercearias". Havia bagunça de todo tipo: guerras de travesseiros entre internas, guerras de farinha de trigo e de tortas entre adultos, brigas entre policiais e civis. Estas comédias eram "freqüentemente cínicas em relação a autoridade e a moralidade vigente. Esperava—se a infidelidade .. a corrupção era motivo de piada. Proliferavam estereótipos raciais e profissionais. Este clima de irreverência e avacalhação invadia também os filmes de perseguição, que foram as primeiras formas de narrativa freqüentes entre os anos de 1903 e 19O6. Tom Gunning esclarece que "apesar de haver protótipos da chase form tão cedo como 1901 (em Stop thief!, de Williamson)" esta forma só se tornou importante em 1904 , pois "o gênero aparentemente dominante (em número de filmes feitos) até 1903 era a narrativa de um plano só. Os filmes de perseguição compunham-se de um quadro inicial, onde acontecia uma ação que gerava algum tipo de perseguição, e de quadros subseqüentes onde a perseguição se desenrolava e terminava. Eram portanto filmes mais longos, que passaram a utilizar cenários naturais, cuja amplitude podia conter as pequenas multidões que estas histórias geravam. A existência destes filmes, demonstra, para Bunning, que "estava em curso uma síntese entre atrações e narrativa". Por um lado, "a perseguição tinha sido a narrativa verdadeiramente original do cinema, fornecendo um modelo para a causalidade e para a linearidade assim como para a montagem em continuidade". Mas, por outro lado, as perseguições construíam cada plano como uma verdadeira atração, na medida em que cada plano mostrava o perseguido e os perseguidores tendo que ultrapassar obstáculos variados: cercas, lagos, subidas etc. A atração podia estar na possibilidade de ver as roupas de baixo ou as pernas das personagens femininas (algumas vezes encarnadas por homens) que participavam da confusão. Estava também na destruição da postura comportada destes homens, mulheres, crianças e até animais, por força do desespero histérico que os atingia devido a múltiplas causas. O motivo podia ser o simples roubo de uma salsicha ou até mesmo, como em Personal (Biograph, Mc.Cutcheon, 1904), um solteiro rico procurando uma noiva. A estrutura dos filmes de perseguição revela alguns traços de ambiguidade nesse cinema, apesar de tender à linearização dos planos e à ligação entre estes planos, como aponta Burch, o filme de perseguição tem cada plano estruturado como uma atração. Vemos o perseguido chegando bem de longe. Ele se aproxima correndo, supera algum tipo de obstáculo, tropeça, cai, mas continua até sair do quadro. A multidão aparece, se aproxima, sem corte. Alguns superam o obstáculo, outros caem, forma-se uma pequena confusão, até que todos se repõem no caminho original e saem do quadro. Ao final, depois de vários planos que repetem esta estrutura, vem um último plano em que a multidão alcança o perseguido: Fim da narrativa, Fim das atrações. A perseguição esboça uma tentativa de construção de um espaço contínuo fictício. Mas esta construção não se completa, fica apenas indicada. Se, para o cinema narrativo clássico, foi fundamental inventar gradualmente uma maneira de representar, através de imagens, uma ficção de continuidade do tempo e de homogeneidade do espaço, este não era o projeto do cinema antes de 1906. Charles Musser compara estes dois tipos de cinema: O primeiro cinema era predominantemente sincrético, apresentativo e não linear, enquanto o cinema hollwoodiano clássico posterior apoiava—se na consistência, na verossimilhança e numa estrutura narrativa linear, particularmente nos seus dramas e comédias leves. Outro historiador do primeiro cinema, Tom Gunning, explica por sua vez como ele entende o cinema anterior a 1906, que ele chama de cinema de atrações: O que é, precisamente, o cinema de atrações? Em primeiro lugar, é um cinema que se baseia na (...) sua habilidade de mostrar alguma coisa. Em contraste com o aspecto voyeurista do cinema narrativo analisado por Christian Metz, este é um cinema exibicionista. Há um aspecto do primeiro cinema(...) que representa esta relação diferente que o cinema de atrações constrói com seu espectador: as freqüentes olhadas que os atores dão na direção da câmera. Esta ação, que mais tarde é considerada como um entrave à ilusão realista do cinema, aqui é executada enfaticamente, estabelecendo contato com a audiência. Dos comediantes que interpelam a câmera à gestualidade afetada e reverente dos prestidigitadores nos filmes de mágica, este é um cinema que mostra sua própria visibilidade, disposto a romper o mundo ficcional auto-suficiente e tentar chamar a atenção do espectador. Neste sentido, se a tendência dominante no primeiro cinema é o cinema de atrações, é equivocada a oposição, freqüentemente apontada, entre as obras fantásticas de Georges Méliès e as imagens realistas de Louis Lumière, como representando a oposição respectivamente entre filmes narrativos e não-narrativos. "Pode-se uni-los numa concepção que vê o cinema menos como uma forma de contar histórias e mais como uma forma de apresentar uma série de vistas (views) para uma audiência". O autor explica que utiliza o termo atrações por dois motivos. Em primeiro lugar, para marcar uma relação que o primeiro cinema estabelecia com o espectador e que seria posteriormente retomada por Eisenstein e as vanguardas. Gunning explica que o futurismo de Marinetti: (...) não apenas prezava a estética do espanto e da estimulação, mas particularmente o fato dela criar um novo espectador, que contrastava com o voyeur estúpido e estático do teatro tradicional. O espectador do teatro de variedades sentia-se diretamente atingido pelo espetáculo e juntava-se a ele. Em segundo lugar, o termo atrações tem a ver com o tipo de experiência visual que se tem nas Feiras e parques de diversões: atrações são performances cujo objetivo é espantar, maravilhar o espectador, e cuja aparição já é, em si, um acontecimento. Assim, nos primeiros anos do cinema muitas vezes não eram The great train robbery ou L’homme à la tête de caoutchout(Star Film, Méliès, 1902) que entravam em cartaz, mas se anunciava apresentações do Bioscópio, do Vitascópio ou do Cinematógrafo Lumière. É o tipo de experiência que se promovia tanto nas Feiras universais da passagem do século, que descrevemos no início deste capítulo, quanto nas Feiras populares. Até 1906, o cinema está, portanto, ligado ao espetáculo de variedades, que era a principal forma de exibição de filmes. Para Charles Musser, as formas de representação do primeiro cinema são apresentativas no "estilo de atuação, no desenho do cenário e na composição visual, assim como na sua forma de representar o tempo, o espaço e a narrativa". A forma de atuação é baseada no teatro do século XIX, onde os atores usam gestos estilizados e afetados, sempre de frente para o público e sempre se dirigindo a este público, ou para a câmera. No final do século XIX, este estilo apresentativo foi substituído, no teatro, por uma encenação mais contida e verossimilhante (como pedia o teatro naturalista). "Mas as antigas técnicas de representação continuaram em outras formas culturais mais populares, que incluíam não apenas gêneros teatrais como o melodrama e o burlesco, mas também a lanterna mágica, as histórias em quadrinhos(cartoon strips) e o cinema. Os elementos dos cenários dos primeiros filmes eram organizados como no teatro, não de forma realista, mas sim de modo a poderem ser vistos pela audiência. Não havia o desejo de verossimilhança, razão pela qual muitos ambientes são apenas indicados por painéis e objetos pintados. Comentado um cenário de filme onde o lustre é um objeto real, mas os raios de 1uz são pintados, Charles Musser afirma que este cinema é "sincrético", porque mistura elementos do estilo apresentativo com elementos de um estilo mais realista. Os próprios filmes de atualidades assumem ora a característica de espetáculos apresentativos (pelo uso constante de composições frontais no caso das encenações de estúdio ou uso de maquetes)ora a característica de espetáculos mais realistas (quando filmados em ambientes externos com uso da profundidade do campo para captar o movimento de automóveis, trens ou cavalos que se movem em direção ao câmera). Misturam-se locações naturais com cenários ostensivamente artificiais, e mesmo dentro dos cenários "alguns elementos são desenhos planos enquanto outros são tridimensionais ou reais".Toda esta mistura entre o artificial e o realista é mais um elemento que diferencia o primeiro cinema do cinema clássico que viria depois, como bem aponta Charles Musser: Os realizadores de filmes rotineiramente alternavam em diferentes níveis de representação da realidade. Este sincretismo pode ser contrastado com a ênfase na consciência mimética predominante no cinema posterior. Pode-se perguntar como a consciência recebia estes filmes, como ela os entendia, já que eram feitos de forma tão pouco homogênea. Charles Musser responde quanto a isso, que a própria audiência e seus mecanismos de compreensão eram bastante diversificados e que por isso...o primeiro cinema pode ser definido negativamente: seu sistema representativo não podia apresentar uma narrativa inédita, capaz de ser compreendida independentemente das circunstâncias de exibição do conhecimento cultural específico do espectador. Dentro desta negatividade, Musser considera que havia três formas básicas de entendimento destes filmes. O assunto precisava ser conhecido de antemão pelos espectadores, remetendo a fatos ou ficções já tratados por outras mídias: a Paixão de Cristo, canções populares, contos de fada, catástrofes ou crimes recentes, peças de teatro famosas etc. Outra possibilidade era a explicação da história mostrada na tela, através de narração ao vivo feita por um conferencista ou pelo exibidor do filme, que podia utilizar por sua vez vários outros recursos sonoros como ruídos e música. Havia ainda uma terceira possibilidade: o filme podia ter uma narrativa tão simples que ela podia ser entendida pelo espectador sem ajuda externa. É, por exemplo, o caso das comédias e piadas curtas, ou de alguns filmes de Méliès. Dada a diversidade do público, a p1uralidade de suas respostas e a variedade de formas de exibição do primeiro cinema. Podemos dizer que os filmes da época constituíam, na grande maioria dos casos, formas abertas de relato, já que poderiam ser entendidos de mú1tiplas maneiras. É evidente que hoje a interpretação dos filmes também está atravessada pelo imaginário individual, e pelo ambiente cultural do público. Mas, nos primeiros tempos, a existência de enredos imprecisos, pouco narrativos, dava uma amplitude muito maior a esta leitura diferenciada. No momento em que se instala a narrativa, existe a possibilidade de modalizações do relato, mas há uma uniformidade mínima no enredo perceptível pelo público. Tal pluralidade de sentidos era reforçada pela falta de individualização dos personagens, no caso das ficções. Havia uma forte tendência a frontalidade da câmera em relação à cena. A concepção do plano como uma unidade que pudesse conter o desenvolvimento de uma ação inteira obrigava a um certo afastamento da câmera, suficiente para que não se vissem direito as feições dos autores. Daí a interpretação normalmente afetada e gestualmente exagerada dos atores, cujas faces não podiam ser vistas com clareza. Outra característica era a configuração temporal pouco ou nada linear, seja no arranjo entre os p1anos, seja nas entradas e saídas de cena. Disso resultavam as eclipses freqüentes e exageradas e muitos encavalamentos temporais. Musser comenta, neste sentido, a elipse que aparece no filme Lost in the Alpes (Edison Porter, 1907): Uma pobre mãe resolve procurar seu filho e sai de cena. Volta logo em seguida, apesar da procura ter demorado muito tempo. A audiência sabe que foi uma longa procura, porque já conhece a história. Os encavalamentos temporais, bastante freqüentes, eram uma forma que os cineastas encontraram para retomar a ação de um outro ponto de vista. A concepção de cada plano como unidade autônoma impedia, porém, que se pensasse em cortá-los para serem montados em continuidade, como acontece hoje. Da mesma forma, na maioria das vezes, as ações simultâneas ocorridas em locais diferentes eram mostradas sempre de forma sucessiva. Apenas nos últimos quinze anos é que a história do cinema vem sistematicamente se dando conta das diferenças entre o primeiro cinema e o cinema que se seguiu a ele, mostrando inclusive que não há exatamente oposição entre estes dois tipos de cinema, mas uma convivência "dialética entre espetáculo e narrativa" que permanece em proporções diferentes no próprio cinema narrativo clássico. Neste sentido, Tom Gunning sublinha que é importante conceber a radical heterogeneidade que vemos no primeiro cinema não como "um problema verdadeiramente oposto e irreconciliável com o crescimento do cinema narrativo", pois "esta visão é muito sentimental e muito ahistórica." A convivência do espetacular e do narrativo é considerada por este autor como uma "herança ambígua do primeiro cinema", que existe tanto nos primeiros filmes quanto no "recente cinema de efeitos do tipo Spilberg-Lucas-Coppola". Já comentamos que o vaudeville era a forma dominante de exibição de filmes entre 1895 e 1900, mas não era a única. Havia também exibidores itinerantes que levavam os filmes para as áreas afastadas dos grandes centros urbanos. Eram showmen que alugavam salões e exibiam os filmes, misturados a outras atrações, inclusive decidindo a ordem dos quadros e a maneira de exibi-los segundo as diferentes demandas do público. Todo este período caracteriza-se por uma grande autonomia dos exibidores de filmes, que já tinham tanto poder de intervir na apresentação final quanto os produtores. Nos locais onde os primeiros filmes eram mostrados os exibidores—operadores decidiam a ordem, o acompanhamento, enfim, a maneira de apresentar os filmes. Muitas vezes, eles também atuavam como comentadores e narradores. As apresentações da Paixão de Cristo poderiam em alguns casos incluir a anunciação, a dança de Salomé diante de Herodes e pular direto para a crucificação. Em outros casos, era melhor mostrar o nascimento de Cristo, o batismo, a última ceia, Pilatos, a crucificação e a ascensão. A ação do exibidor era decisiva: O operador era responsável pela ordem em que os filmes(muitos deles constituindo num único plano)eram mostrados. Ele podia fazer mudanças de acordo com a relação da audiência. Podia fazer o filme ir mais rápido ou mais devagar, ou até para trás. Seu monólogo explicava a ação e dirigia a atenção do espectador. Pode-se dizer, nesse sentido, que os filmes eram recriados pelos exibidores a cada vez que eram exibidos. Os comentadores eram fundamentais nas apresentações de lanterna mágica e em todas as conferências ilustradas que utilizavam imagens projetadas. Podiam ser padres que patrocinavam sessões de catequese ou leigos que faziam conferências sobre viagens a terras distantes e exóticas — os travelogues — feitas muitas vezes por eles mesmos. Os filmes de viagens que começaram a aparecer nos travelogues ficaram muito populares entre 1902 e 1903. Figuravam nos catálogos de todas as companhias produtoras e companhias exibidoras da época. Charles Musser mostra que metade dos filmes que aparecem, por exemplo, no catálogo de atrações principais da Cia. Vitagraph em 1903 eram assuntos de viagens. Havia empresas especializadas na exibição performática destes filmes de viagens. Uma delas era, por exemplo, a Sociedade Geológica e Histórica de Wyoming, que anunciava para o seu tour anual de 1903 "sete grandes séries de imagens em movimento" sobre Índia, Japão, Arábia, ÁFrica, Suíça, Inglaterra e América comentadas pelo senhor Lyman Howe, famoso apresentador de relatos de viagem. As conferências de viagem, que existiam antes da chegada dos filmes, pressupunham uma proposta de educação para conhecimentos gerais que revelava a mentalidade característica daqueles anos. Provavelmente faziam a apologia de valores ocidentais cultivados pela classe média, como a racionalidade e o senso comum, mas através de imagens espetaculares e de retórica sensacionalista. Segundo Charles Musser as imagens mostradas, seja através das placas de lanterna, dos diapositivos estereoscópicos ou dos primeiros filmes, "podiam transmitir ricos e freqüentemente inquietantes significados: idéias relativas ao imperialismo, à superioridade cultural e racial, ao sexismo e ao darwinismo como concepção de sociedade". O tema do trem, nas suas aparições na tela ou nas imagens tomadas dele, era uma presença recorrente nos filmes mostrados nestas conferências de viagem e em muitos dos primeiros filmes. O mundo visto a partir do trem, mostrado como uma paisagem que desfila rapidamente diante do retângulo da janela, aludia a uma experiência sensorial da velocidade que era inteiramente inédita. Estava surgindo uma nova percepção do mundo, mediatizada pelas formas mecanizadas de deslocamento, mas transformada em percepção visual com o auxílio direto do próprio cinema, única mídia capaz de reproduzir a sensação de velocidade. Proliferavam no primeiro período as imagens de cinema tomadas a partir de meios de transporte rápido: trens e automóveis. Assim, além de serem os organizadores do espetáculo, os exibidores faziam as vezes também de professores de uma certa ideologia e mestres de cerimônia de uma nova forma de percepção visual. Podemos dizer que o período do primeiro cinema termina quando começa a se generalizar esta nova forma de percepção, no momento em que esta percepção começa a se materializar em linguagem codificada e massificada. O filme, como espetáculo industrializado de massa, só pôde se generalizar depois de um período de aculturação, de transição, quando a compreensão uniforme das imagens se tornou uma prioridade e o cinema deixou de ser atividade marginal. Esta transição aconteceu, nos Estados Unidos, no período dos chamados nickelodeons, que sucede o período dos vaudevilles. Assim, de 1906-7 a 1913-15 os filmes passam a ser exibidos como atrações exclusivas devido ao seu enorme sucesso, em grandes armazéns que eram transformados em cinemas do dia para a noite, impulsionados pela altíssima lucratividade do empreendimento. E os filmes começam a enfrentar o desafio de terem que se tornar cada vez mais narrativos. A era dos nickelodeons, de 1906-7 até 1913-15, é um período em que ocorre um aumento do público do cinema, o surgimento de grandes empresas no controle dos distintos ramos da atividade cinematográfica e a gradual domesticação das formas de representação e exibição dos filmes. É também um tempo de repressão-institucionalização, quando a anarquia dos primeiros ambientes de exibição exclusiva de filmes passa a incomodar as elites. Os produtores e exibidores de filmes se organizam industrialmente e passam a tentar moralizar o cinema e criar formas de autocensura e auto-regulamentação. Objetivam com isso incorporar as classes médias que, dotadas de maior poder aquisitivo, garantiriam a sobrevivência econômica da indústria do cinema. Finalmente, um terceiro período se inicia depois de 1913-15, quando começam a aparecer os filmes de longa-metragem, ao mesmo tempo em que se dá o aperfeiçoamento dos dispositivos narrativos surgidos na fase anterior. Tratava-se, a partir dai, de assegurar a hegemonia da indústria cinematográfica norte-americana. Como surgiram os nickelodeons? A partir de 1905, muitos empresários de diversões começaram a utilizar espaços bem maiores que os vaudevilles, para a exibição exclusiva de filmes, depois de uma crise de público ocorrida entre 1900 e 1903. Ao contrário dos teatros, cafés ou dos próprios vaudevilles freqüentados por uma classe média de composição diversificada, estes novos ambientes eram, em geral, grandes depósitos ou armazéns adaptados para exibir filmes para o maior número possível de pessoas, em geral de poucos recursos: os storefront theaters ou nickelodeons. Eram locais rústicos, abafados e pouco confortáveis, onde muitas vezes os espectadores viam os filmes em pé se a lotação estivesse completa. Mas ali se oferecia a diversão mais barata do momento. Os nickelodeons foram adotados imediatamente pelas populações de baixo poder aquisitivo que habitavam os bairros operários das cidades norte-americanas. Os nickelodeons fizeram sucesso instantâneo, enriquecendo pequenos e grandes exibidores e se espalhando por todos os Estados Unidos. Eles marcam o início de uma atividade cinematográfica verdadeiramente industrial. Sua expansão traria grandes mudanças na composição do público do cinema, e nas formas de produção, comercialização e exibição de filmes, assim como também nos métodos de representação. A explosão na demanda de filmes causada pela expansão dos nickelodeons forçou uma reorganização da produção. As companhias produtoras de filmes dividiram-se nos diferentes setores da produção e organizaram-se industrialmente, adotando uma estrutura hierárquica centralizada. Esta especialização substituía o que Charles Musser denomina "sistema colaborativo" do período do vaudeville. Antes de 1907, empresas como a Edison, a Vitagraph e a American Mutoscope & Biograph produziam filmes, num sistema de trabalho regido pela parceria. Em geral, dois realizadores dividiam o trabalho de operação das máquinas e de confecção dos filmes (o que torna a discussão da autoria nos primeiros filmes uma tarefa particularmente complicada). Este sistema foi extinto com o aumento na produção de filmes logo depois deste primeiro período. Também a comercialização dos filmes se alterou a partir de 1907. Surgiram os distribuidores de filmes, uma vez que o antigo sistema de venda direta foi substituído pelo aluguel. A especialização na tarefa de distribuição era mais uma parte da industrialização do cinema. Os nickelodeons surgiram inicialmente como forma de diversão não controlada pelos poderes institucionais. Robert Sklar comenta que o fato destes locais de exibição terem se transformado em populosos centros de diversão, malgrado ainda não disciplinados pelas instituições, começou a se tornar um problema visível: O que ainda mais mortificava muita gente nos distritos e subúrbios prósperos da cidade, e nas cidades pequenas de população abastada era a idéia de que os trabalhadores e imigrantes tinham encontrado uma fonte própria de entretenimento e informação — uma fonte não supervisada e não aprovada pelas igrejas e pelas escolas, pelos críticos e pelos professores, que serviam de guardas e disseminadores da cultura norte-americana oficial. Os nickelodeons pareciam conter uma energia bruta que poderia se tornar perigosa para uma sociedade tão conservadora quanto a norte-americana: No meio do alarido de uma rua movimentada num distrito operário, multidões de homens e mulheres, moças desacompanhadas e crianças não-supervisionadas estudavam cartazes lúridos, entravam num teatro e saíam de outro. No interior da sala de espetáculos, a primeira impressão que se tinha era de ranço, de ar parado, de cheiro de suor e de corpos não-lavados. A escuridão era total, excetuando—se a tela e o fuste de luz do projetor debaixo do teto. É evidente que quando estes ambientes começaram a se multiplicar no mesmo ritmo de seus lucros, eles começaram a chamar a atenção dos "homens e mulheres da classe média que serviam as instituições de controle social — as igrejas, os grupos de reformadores, alguns segmentos da imprensa e, por fim, a polícia." Tom Gunning lembra-nos que a fisionomia das diversões populares é determinada pelas pressões cíclicas de grupos defensores da moralidade e de que, no caso do cinema, a resposta habitual é a auto-censura. Naquela conjuntura, a resposta das companhias produtoras às ameaças de fechamento dos cinemas e de lançamento dos filmes ao limbo das diversões não recomendadas foi a criação de um órgão de auto-regulamentação, em 1908: a Motion Pictures Patents Company. Mas a MPPC tinha também objetivos comerciais: pretendia monopolizar as atividades de produção, distribuição e exibição de filmes nos Estados Unidos. Gunning demonstra que, com a MPPC, a indústria do cinema queria sobretudo assentar sua atividade "sobre sólidas bases econômicas", precisando para isso aumentar o preço dos ingressos e conseqüentemente o preço dos aluguéis de filmes. Para isso, tinha de atrair as classes médias "transformando o cinema no divertimento de todas as classes sociais", e não mais no chamado "teatro de operárias". Em 1909, a MPPC propagandeava seus filmes como divertimentos morais, educativos e sãos. A aparição dos nickelodeons marca portanto o fim das formas de representação características do primeiro cinema. Se o tempo dos primeiros filmes compreendia a dominância do espetáculo na dialética entre atrações e narrativa, o período seguinte (de 1906-7 a 1913-15) "representa a verdadeira narrativização do cinema, culminando com a aparição dos longas-metragens, que reformulam radicalmente o formato das variedades". Esta transição se completa em 1914. É só a partir daí que, nos Estados Unidos, o filme toma a forma de uma narrativa "perfeitamente compreensível sem nenhuma ajuda exterior às imagens que desfilam na tela". Se antes o cinema se dirigia a uma platéia predominantemente pobre,operária e urbana, os anos 1908-9 podem ser entendidos como o que Gunning considera "a origem de um esforço unificado para atrair a classe média para o cinema". A indústria do cinema precisava conseguir "respeitabilidade social", trazendo os filmes para perto das "tradições burguesas de representação". Daí a multiplicação das tentativas de se adaptar para as telas romances, peças de teatro e poemas famosos O problema é que estas tentativas de contar histórias desembocaram em filmes que o público não entendeu. O cinema, cuja estética estava até então baseada em fontes como o "vaudeville, o burlesco, os contos infantis, as histórias em quadrinhos e as canções populares", favorecia mais "os efeitos espetaculares ou as ações físicas do que as motivações psicológicas" individuais que apareciam nos dramas burgueses e precisavam ser representadas na tela. Uma das formas de resolver este problema foi a tentativa de se aperfeiçoar o uso da montagem para representar, na linearidade dos filmes, a simultaneidade de duas situações afastadas. Os primeiros exemplos de montagem paralela aparecem por volta de 1907. "Em 1909 a montagem paralela tinha se tornado dominante nas situações de salvamento-no-último-minuto e tinha desalojado quase completamente o antigo formato dos filmes de perseguição". O papel de D.W Griffith foi crucial neste período de transição, de mudança na linguagem, após o primeiro cinema, entre 1908 e 1913-15. Seu trabalho, como demonstra Tom Gunning, foi o de responder ao desafio de "integrar o cinema à cultura dominante", em resposta a uma verdadeira "crise da estética cinematográfica" revelada pela incapacidade de conseguir adaptar obras literárias famosas de uma maneira inteligível para a nova platéia. O uso que Griffith começou a fazer da alternância, de tempos e espaços, da técnica do campo/contracampo, da aproximação da câmera para definir psicologicamente e do ponto de vista subjetivo os personagens, deu aos filmes uma nova legibibilidade, capaz de transmitir "o conteúdo moral e psicológico da narração". Nos Estados Unidos, esse período de transição dominado pelos nickelodeons tem algumas particularidades. É uma espécie de intervalo, em que a maioria do público deixa de ser aquela predominantemente pequeno-burguesa dos vaudevilles e passa a ser composta por proletários e marginais. Este público operário e pobre é que vai alimentar os grandes lucros dos nickelodeons. Curiosamente, os filmes desse período ainda se dirigem àquele público pequeno-burguês branco que freqüenta os vaudevilles, mas que representa uma parte diminuta do total do público. Filmes com conteúdos racistas, sexistas, que ridicularizavam os imigrantes e os caipiras recém-urbanizados, bem ao gosto dos burgueses dos vaudevilles, eram na verdade consumidos em escala crescente pela massa de proletários dos nickelodeons. Isso mostra que os produtores de filmes não se adaptaram imediatamente à explosão de público e de demanda por filmes após 1907. Mas os espectadores dos filmes exibidos nos nickelodeons não tinham muitas outras opções de diversão barata. Para este público de trabalhadores pobres, os nickelodeons funcionavam como locais de encontro com seus pares de trabalho ou nação, mas não eram espaços de diversão saudável, familiar ou educativa. Ao mesmo tempo, é um período de alta lucratividade e de estabilização do cinema como indústria, que fomenta a discussão sobre as formas de se reconquistar as classes respeitáveis. Este esforço de atrair a classe média é visível tanto nas novas maneiras de fazer filmes, nas quais o papel de Griffith foi decisivo, quanto na tematização estética do cinema, feita pela crítica e pela imprensa especializada da época, que chegava a propor de maneira quase normativa a utilização de certas estratégias, como a proibição do olhar do ator na direção da câmera, a definição de padrões estéticos para heróis e heroínas e mesmo a freqüência dos finais felizes e do fracasso das opções pela marginalidade ou pelo crime. Procurava-se, propunha-se e debatia-se explicitamente a necessidade de uma estética mais refinada, que agradasse à sensibilidade das senhoras e à inocência dos mais jovens, bem como ensinasse às camadas mais baixas o valor do trabalho, da honestidade ou do senso comum. Num certo sentido, sabia-se que a burguesia só poderia entrar nos cinemas quando ver filmes se tornasse uma prática respeitável, familiar, educativa, e que evitasse os perigosos impulsos de afirmação das classes subalternas, pela repressão ou pela tutela didática de idéias sensatas. Deve-se lembrar que esses objetivos estavam em perfeita consonância com o contexto ideológico dentro do qual o cinema tinha surgido e que é assim resumido por lsmail Xavier: Um credo de fé na ciência positiva, a perspectiva otimista de seu progresso material ilimitado, conduzindo o homem ao domínio crescente da natureza, a hipertrofia do aspecto técnico da cultura como depósito das mais altas significações. Uma ideologia da solução material dos problemas humanos como efeito direto do aumento da capacidade produtiva da sociedade e da racionalização crescente das relações entre os homens, entendida como harmonização obtida pelo uso do bom senso próprio à atitude do sábio perante seu objeto". Há um grande esforço de domesticação destes espaços selvagens dos cinemas, para afastar os temores da gente refinada: diminuição da escuridão absoluta nas salas de projeção, presença do lanterninha, eventual presença de um comentador em alguns casos, manutenção de ambientes 1impos, arejados etc. Assim, junto com a estabilização da indústria do cinema inicia-se a criação de um padrão ambiental para o consumo de filmes, um padrão narrativo e um processo de massificação de um gosto pequeno-burguês. O período dos nickelodeons é a verdadeira transição entre o primeiro cinema e o cinema institucional, transição onde se apagam as evidências visuais, estéticas e ambientais das diferenças de classe, diferenças de sexo, diferenças étnicas. A transição é, neste sentido, uma forma de homogeneização. Noel Burch descreve muito bem tal processo, mostrando como nos Estados Unidos esta trajetória do cinema implica a negação de toda uma camada da sociedade que, apesar de tudo, era a maioria do público dos nickelodeons. Ele mostra como a criação de um público de massas é um processo especificamente norte-americano, baseado no humor racista e antimigrante que era típico dos vaudevilles. Mas aos poucos o espetáculo de vaudeville se tornou uma atividade destinada a inculcar nos pequenos funcionários de serviços "uma espécie de humanismo cientificista, uma fé na grandeza e na superioridade dos homens", implícitos nas antigas sessões de domesticação de animais, hipnotismo e magia desmistificada, que tentavam substituir, nos vaudevilles, as crenças religiosas tradicionais por um espetáculo sensato e respeitável. Enquanto o público dos vaudevilles era "socialmente homogêneo e sexualmente misto", puritano e familiar, o dos nickelodeons era masculino e impedia que qualquer homem de respeito ali trouxesse sua mulher. Daí que a conquista da respeitabilidade passava a significar a conquista, pelos cinemas, da mulher burguesa típica. Num clima de forte condenação moral do cinema, que culminou com o movimento de auto-censura pelas próprias companhias produtoras, impunha-se ao cinema retomar a função de tutela didática e pacificadora diante das influências malignas, por parte das classes trabalhadoras, de vícios como o alcoolismo ou das tentações de uma vida de criminalidade. Exaltavam-se, pelo contrário, valores como honestidade, temperança e trabalho. Daí o começo de toda uma tipificação da maneira adequada para se construir heróis e heroínas, enredos e formas de filmar. É possível que a opção de Griffith pelas estruturas do melodrama também se relacione com tudo isso. De qualquer forma, Burch parece estar certo em reconhecer o papel decisivo da "obliteração aparente das distinções de classe e o estabelecimento de todas as instâncias possíveis de consenso", não apenas no estabelecimento de um certo tipo de cinema nos Estados Unidos, mas na consolidação do próprio sistema sócio-econômico norte-americano como um todo. A possibilidade de designar como domesticação este processo de integração do cinema a uma cultura dominante e a sua transformação em espetáculo de massa justifica o título deste trabalho. Estamos chamando de domesticação esta transformação que começa a se operar no final do período do primeiro cinema. Daí o sentido de assim ordenar as palavras do título: espetáculo, narração, domesticação. É como que uma tentativa de metaforizar o percurso do cinema, da dominância do espetáculo popular até a dominância de um modelo narrativo consagrado pela tradição. Esta domesticação não se refere apenas à adequação do cinema a um novo público de classe média, à moralização temática dos filmes, à familiarização do ambiente em que eram exibidos, ou ao que Noel Burch chama de codificação capitalista da propriedade da imagem sobre um estado anterior (de apropriação do cinema pelas massas e pela cultura popular). Quando falamos em domesticação, estamos nos referindo também a uma submissão civilizatória, através da transformação do próprio código narrativo do cinema. O que se traduz também na perda daquele sentimento de desamparo mencionado no início deste capítulo, de desalento diante do decorrido, do irrecuperável, da vida que aparece para morrer a cada instante. A domesticação que vai se instaurando no primeiro cinema parece ter a chancela do senso comum. Ela se estabelece como um processo de homogeneização na representação do espaço e do tempo, como um processo de enquadramento de forças divergentes, de fabricação de personagens desambiguizados, de finais felizes necessários. Ela faz uma moralização das trajetórias, realiza um certo encarceramento dos movimentos histéricos e incontroláveis, presentes nos objetos repentinamente animados e nos personagens possuídos que povoam os filmes de transformações. A instalação gradual do princípio de alternância na narração do cinema está ligada a este movimento maior, talvez mais sutil, desta produção de uma causação necessária de aventuras, perdições e punições. A domesticação pode ser entendida nesse sentido como uma força homogeneizante — esta é a sua principal característica — e ela gradualmente se tornou hegemônica, seja dentro dos filmes, na sua linguagem, seja fora deles, no seu contexto. Expusemos até aqui as principais características daquilo que estamos denominando de primeiro cinema e do período que se seguiu a ele com uma série de contrastes.
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