FEDERICO GARCÍA LORCA






García Lorca, irmão:
Sou eu, mais uma vez...
Venho negar à humana condição
A humana pequenez
Da ingratidão.

Venho e virei enquanto houver poesia,
Povo e sonho na Ibéria.
Venho e virei à tua romaria
Oferecer-te a miséria
Duma oração lusíada e sombria.

Venho, talefe branco da Nevada,
Filho novo de Espanha!
Venho, e não digas nada;
Deixa um pobre poeta da montanha
Trazer torgas à rosa de Granada!

Indomável cigano
Dos caminhos do tempo e da ventura,
Sensual e profano,
O teu génio floresce cada ano...
Venho ver-te crescer da sepultura!

Bruxo das trevas onde alguém te quis,
Nelas arde a paixão do que escreveste!
Sete palmos de terra, e nenhum diz
Que secou a raíz,
Que partiste ou morreste!

Uma luz que é o oceano da verdade
Abre-se onde os teus versos vão abrindo...
A eternidade,
Na pureza da sua claridade,
Sobre o teu nome, universal, caindo...

E o peregrino vem,
Reza devotamente,
Põe no altar o que tem,
E regressa mais livre e mais contente...
Assim faço, também!


Poemas Ibéricos, (1952-1965)




Miguel Torga - O segundo maior poeta português do século XX. Se Fernando Pessoa sofreu psicologicamente a censura salazarista, que muito contribuiu para o seu aniquilamento  » , Miguel Torga a sentiu na pele: foi prisioneiro, entre Dezembro de 1939 e Fevereiro de 1940, nas prisões políticas do Limoeiro e do Aljube, o mesmo onde "Carlos Duarte" encontrou a sua "redenção" e "salvação" nas mãos da "valquíria Marilia"  » . Nada disso impediu ao poeta de escrever belíssimos poemas como este acima dedicado a Federico García Lorca, que é acompanhado de outro dedicado a Dolores Ibarruri, La Pasionaria (transcrito abaixo), ambos surgidos durante o auge das ditaduras salazarista, em Portugal, e franquista, em Espanha.

Miguel Torga é o pseudónimo do médico otorrinolaringologista Adolfo Rocha, nascido em 12 de Agosto de 1907, em São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, no Nordeste de Portugal. Torga, o mesmo que queiró ou urze, é o nome dado à planta silvestre que nasce sobre as rochas, o que ajuda a compreender o sentido do poema dedicado a Lorca, também bem expresso no poema Flor da Liberdade, igualmente incluído abaixo.

Ao contrário de Fernando Pessoa, citadino e emigrante na África do Sul, esteve sempre ligado ao interior e foi emigrante no Brasil, durante a sua juventude. Entre 1920 e 1925 trabalhou na fazenda de um tio naquele país, retornando em seguida para terminar os estudos liceais e graduar-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, onde viveu e exerceu a sua actividade profissional, iniciada como médico-rural.

Também foi colaborador da revista literária Presença, da qual desligou-se em 1930, vindo a fundar as revistas Sinal (um único número em 1930) e Manifesto (1936-38). Foi um dos poucos intelectuais portugueses que viajou por Espanha durante a Guerra Civil, em 1937. A sua prisão em 1939 deveu-se em especial à publicação de O Quarto Dia da Criação, uma das suas séries em prosa, onde se destacam os seus Diários (16 volumes, 1941-1994), que também incluem poemas. Os trabalhos em prosa mais conhecidos são O Bichos (1940) e Contos da Montanha (1941).

A obra poética, em geral reunida num único volume, é composta por Rampa (1930), Tributo (1931), Abismo (1932), O Outro Livro de Job (1936), Lamentação (1943), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Alguns Poemas Ibéricos (1952), Penas do Purgatório (1954), Orfeu Rebelde (1958), Câmara Ardente (1962), Poemas Ibéricos (1965). Também escreveu quatro peças de teatro e ensaios. Os seus livros têm sido traduzidos em todo mundo desde começo da década de 1950.

Miguel Torga faleceu em Coimbra em 17 de Janeiro de 1995.






NÃO PASSARÃO


Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo,
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!


Poemas Ibéricos, (1952-1965)




FLOR DA LIBERDADE


Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.


Orfeu Rebelde, (1958)





Poemas e dados biográficos retirados de

Antologia Poética, Miguel Torga
Obra Completa
Círculo de Leitores  » , por cortesia de Publicações Dom Quixote
Lisboa, Fevereiro de 2001

Imagem retirada de

Miguel Torga - Fotobiografia
Clara Rocha
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2000

Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais
- Reprodução não oficial -


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