2.2. Identificação.
Antes de discorrer sobre identificação devemos tornar claro como os conceitos de identidade e identificação se inter-relacionam na teoria social sobre sociabilidade para que possamos expor as hipóteses sobre as mesmas no espaço da Internet. Seguindo Uriarte (1999), apresentamos que a "lógica da identidade" se dá a partir de dois pólos: a presença de iguais com quem se dá a identidade e a presença do diferente (ou Outro), que se faz presente para garantir que os iguais possam manter a identidade ou, em outras palavras "a identidade se constrói a partir do reconhecimento de uma alteridade - o diferente". Os processos de ambigüidade e de contradição é que formam a identidade, através da afirmação da mesma. O igual é o que constitui o nós no jogo ou palco das representações. Esse nós serão aqueles com os quais se guardam afinidades (afetivas ou não, a depender do desenvolvimento e motivações das interações) e fidelidades num determinado espaço ou numa determinada interação. Contrapondo a este nós está o eles, que são justamente o Outro (o diferente), de quem o nós se diferencia na construção de sua identidade. Para Goffman (1999), o eles também seria a "platéia", o público, o interlocutor para quem o nós atua durante a interação. Mas o importante a que se notar aqui é que não é possível existir um nós (uma identidade) sem um eles (um outro) para se contrapor (comparar afinidades). Já a "lógica da identificação" tem como pólo básico o semelhante; não concentrado numa afirmação de identidade, os semelhantes se aproximam sem a necessidade de terem um "diferente" para lhes fazer reconhecer a alteridade. O processo de identificação tende a ter um caráter muito mais fugaz e temporário que a identidade; fazendo parte de um contexto de diversidade amplo, onde as identidades (o reconhecimento das diferenças) se tornam difíceis. Há muitos nós possíveis e muitos eles possíveis, com os quais se podem gerar múltiplas identificações relacionadas com o espaço, com as intenções dos indivíduos, as afinidades contextuais possíveis ou outra conjuntura ou variável qualquer que, a menos que haja intenção e motivação para formação de uma identidade , esta não deve ocorrer, pois o Outro não deve aparecer como diferente, e sim como semelhante. A multiplicidade de afinidades possíveis no espaço da Internet leva a uma reflexão sobre como se compreende essa multiplicidade de interações nos processos contemporâneos de sociabilidade. Como se dá a identidade e/ou identificação nesses espaços. Georg Simmel (1967) diz que "À medida que o grupo cresce - numericamente, espacialmente, em significado e conteúdo de vida - na mesma medida, a unidade direta, interna, do grupo se afrouxa e a rigidez da demarcação original contra os outros é amaciada, através das relações e conexões mútuas." (21) Em grupos Net, possivelmente, não é nem necessário que ele aumente (número ou espaço) para "afrouxar-se" em suas diferenças, regras e rituais, pois eles já se formam cheios de "relações e conexões mútuas" (em rede), que é o que chamo de inter-afinidades (categoria que veremos mais adiante). Manuel Castells (1999) diz que as "comunidades virtuais" são mais uma expressão da diferenciação entre indivíduos que se fecham em suas identidades próprias, quase numa forma de individualização dos grupos em cada participante que pretende se afirmar a partir daquela identidade: "A formação de comunidades virtuais é apenas uma das expressões dessa diferenciação." (393) São semelhantes que se separam do resto; não há o diferente. Essa análise se aprofunda ainda mais na questão da distribuição da possibilidade de uso de tecnologias de multimídia entre países mais ricos e mais pobres, como também entre camadas econômicas diferentes das sociedades. Possibilidades coerentes diante das formas de vida atuais nas sociedades ditas complexas, onde... "O que emerge muito mais nestas últimas são o isolamento e a encapsulação dos indivíduos em suas relações uns com os outros." (Elias, 1994: 103) Prosseguindo no contexto contemporâneo, podemos ainda formular que todo diferente seria tratado como semelhante, convenções tácitas de informalidade e pessoalidade não trazem regras para tratar o diferente de modo impessoal. O que Anthony Giddens chama de "desatenção civil" (1991) - uma espécie de troca de sinais entre desconhecidos na modernidade, que afirma que um não é ameaça para o outro - faz refletir o quanto não se tem regras para tratar o desconhecido (diferente) na época contemporânea e por isso essa semelhança de comportamentos informais. Já no espaço da Internet, o impessoal inicial possível é rapidamente sobreposto por um pessoal inevitável, pois aparentemente os indivíduos anseiam transpor uma espécie de barreira moderna nas relações pessoais, barreira essa que começaria já na "desatenção civil". Reconstruindo o exemplo de Giddens, as pessoas não tem o costume de confiar em quem lhes puxa conversa num ônibus, pelo contrário, geralmente um finge que não vê o outro ao se cruzarem olhares acidentais. Situação repetida em muitas ocasiões no nosso cotidiano, às vezes vencida, às vezes não, e assim gerando esporádicas interações consideradas pela nossa memória. No entanto, a atitude de fugir a atenção (ignorar quem lhe interpela) nos espaços de interação da Internet é rapidamente repreendida a depender da situação: se num Chat alguém não responde aos contatos, logo deverá receber mensagens de desafora ou talvez seja completamente ignorado por todos, a não ser que possa dar uma explicação convincente logo em seguida ("meu computador deu problema", "minha conexão caiu" são as desculpas mais comuns), mas, de qualquer modo, a "desatenção civil" não poder ser praticada, o contato é feito e, é claro, não houve riscos (referindo aos existentes em outras interações: roubo, violência, etc.). Os casos nem sempre refletem essa generalização, mas pudemos aqui formular uma, pelo menos, diferença entre as situações de interação (pessoal e impessoal) no espaço da Internet e no face-a-face. Se antes, o que era pessoal era o trato com os próximo e iguais (comunidade local e família) e o que era impessoal era o trato (convencionado e institucionalizado) com o diferente (o de fora), seguindo Giddens: "A confiança em pessoas não é enfocada por conexões personalizadas no interior da comunidade local e das redes de parentesco. A confiança pessoal torna-se um projeto, a ser 'trabalhado' pelas partes envolvidas, e requer a abertura do indivíduo para o outro." (1990: 123) O que vemos é uma reconfiguração dos conceitos de pessoalidade com o de impessoalidade de antes, de modo a podermos compreender o que é essa separação hoje. Para Sennett (1976), por exemplo, tudo é transformado em pessoal de forma mercantil, pois não há um lugar prévio para o diferente, o qual termina sendo transformado em um semelhante por uma série de tentativas afinitárias, talvez derivadas da ideologia da igualdade Iluminista, mas que deixa pouca possibilidade móvel fora do eixo mais comum dessa pessoalidade contemporânea. O ponto de vista de Richard Sennett mostra também como o desenvolvimento da cultura urbana ocidental moderna fez com que os "espaços públicos" entrassem em decadência, de modo a fazer com que os diferentes grupos se isolassem ao contato com o outro. Manuel Castells reforça esta idéia com uma noção que podemos chamar de "encastelamento" (1999) e com a formação de "guetos ricos" (1999: 362), ambas se referindo ao isolamento de grupos fechados em suas igualdades e/ou semelhanças, e assim não confrontando o diferente, a alteridade, que lhes possibilitaria reconhecer e afirmar suas identidades . Um exemplo de conseqüência desse "encastelamento" também sugerido por Castells fala sobre o walkman que "dá oportunidade às pessoas, em particular aos adolescentes, de construir suas paredes de sons contra o mundo exterior." (1999: 362) Essa identificação é também considerada como fugaz e temporária, que se justifica em si mesma enquanto ocorre; sua existência estaria plenamente só na interação, em sua atualização; sua virtualidade como grupo seria quase nula, pois não é sustentada por uma identidade (não há provavelmente nada que identifique o indivíduo como do grupo quando não está no grupo). E os membros de um grupo podem (e provavelmente o fazem) participar de outras formas de coletividades do mesmo tipo, mesmo que por motivações diferentes. A Internet, como instrumento de múltiplas interações potencializa em grande intensidade esta possibilidade apresentada por Maffesoli (1987). Diante disso, vale lembrar Goffman (1999) com relação às diferentes apresentações de Eus em espaços diversos. Aqui, neste contexto, estando nestes grupos, o indivíduo pode representar diferentes eus (ou "papéis"). Logo, fazendo uma re-interpretação da identidade e da identificação, temos na primeira um nós e um eles, enquanto que na segundo podemos ter muitos eus dentro de muitos nós possíveis. E onde fica o eles? Os eles são todos semelhantes que compartilham o espaço. Enfim, Maffesoli (1987) supõe que no ritual cotidiano de afetividade desses pequenos grupos se estabelece o seu próprio reconhecimento como grupo; no entanto ainda lhe faltam as referências com relação ao outro, o eles que faz reconhecer a identidade, fazendo possivelmente fechar-lhes na identificação com o semelhante. As "tribos" afinal, que mesmo em redes de afinidade, não possuem o espaço adequado para a afirmação das identidades (o público); firmados apenas nas "afinidades afetivas" que as sustentam na temporalidade de sua interação, possivelmente preenchendo lacunas do cotidiano (acessório lúdico), mas não se tornando a nova revolução do mundo do futuro, como Maffesoli parece imaginar em alguns momentos. E, enfim, diante disso, temos indivíduos deste contexto (sem espaços públicos e "encastelados") que podem interpretar a Internet como "espaço" para a sociabilidade resgatada, num espaço de "caos" e fora da organização planejada/controlada das cidades, mas também protegido dos conflitos diretos com o outro.