Agulha do Diabo

Agulha do Diabo Era ruim. O pôr do sol estava lindo, mas ainda faltavam duas enfiadas de corda para chegar ao cume. Havíamos deixado nossas lanternas algumas dezenas de metros abaixo e a lua, minguante, só nasceria depois de muitas horas. Íamos descer no escuro e, para agravar a situação, eu estava sem agasalhos e a temperatura logo começaria a cair. A descida, na verdade, seria bem mais complicada do que eu imaginava. Por três vezes, teríamos problemas com a corda, que se enroscou de várias maneiras. Em pé, sobre o Platô Grande, um ombro com vegetação, eu contemplava a paisagem ao redor: os cumes do São Pedro, a Nordeste, do Mirante do Inferno, a Sudeste e da Pedra do Sino e do Garrafão, a Noroeste. Na parede em frente, uma placa metálica afixada na rocha homenageava os conquistadores que, na década de 40, abriram a via pela qual escalávamos, até hoje a única existente na Agulha do Diabo (na foto, a Agulha vista do Mirante do Inferno - © Maurício Grego, 1996).

A Agulha é mesmo impressionante. Ergue-se verticalmente, de uma cela na extremidade do Caldeirão do Inferno, um vale de paredes íngremes e acesso difícil. Cercada por picos mais altos, fica oculta mesmo para quem percorre as trilhas mais populares do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Na vizinha cidade de Teresópolis, muitos moradores nem sabem que ela existe. A via de escalada, no lado Norte, tem uns 200 metros de extensão, com grau de dificuldade 4º IV A0. A parede sul, ainda virgem, passa dos 300 metros. Parece improvável que alguém consiga conquistar uma via de escalada livre nessa face. O mais provável é que ela acabe sendo, algum dia, vencida com técnicas de escalada artificial.

Campo-Base

Nosso projeto era bem mais modesto do que esse. Saímos de Teresópolis no dia 6 de junho de 1996, quinta-feira de Corpus Christi, depois de uma noite viajando de ônibus de São Paulo. Estávamos em seis: Bel, Hsu, Breno, Marcelo, Heleno e eu, todos com mochilas pesadíssimas às costas. Da portaria do Parque, caminhamos por quase um dia inteiro até o acampamento-base, uma clareira simpática à beira de um riacho no meio da floresta. O local tinha o espaço certo para nossas duas barracas. Felizmente, estava vazio. À noite, chegou um grupo de cinco paranaenses. Mais duas horas e vieram três montanhistas de Petrópolis. Milagrosamente, todos conseguiram se ajeitar na clareira.

Choveu à noite e, no dia seguinte, saímos muito tarde do acampamento. Bel e eu ainda subimos até o Mirante do Inferno para fotografar a agulha e, de lá, tivemos que voltar à barraca para buscar os lanches que havíamos esquecido. O resultado é que entramos na trilha que desce ao Caldeirão do Inferno muito tarde. No caminho, cruzamos com os fluminenses, que haviam desistido da escalada. A trilha segue pelo leito de um riacho, rumo sudoeste, contornando o Mirante pelo sul, até encontrar um outro riacho, vindo do norte. Sobe, então, por dentro dele, em direção à cela, uma minúscula área de bivaque conhecida como Geladeira Modelo. O caminho todo é muito íngreme, pedregoso e úmido.

Cachoeira

Quando chegamos à base da via, a rocha estava bem molhada, com água escorrendo pela parede por onde deveríamos escalar. Hsu tinha feito a gentileza de abandonar algumas fitas penduradas em grampos. Com a parede transformada em cachoeira, escalar em artificial era a única maneira de, talvez, chegar ao cume. Mesmo assim, Bel e eu tivemos bastante dificuldade. Havíamos deixado nosso material de ancoragem móvel na barraca e sentíamos muita falta dele. Bel nunca havia escalado uma chaminé antes. Quando chegamos à base da primeira chaminé, ela - exausta e desanimada - resolveu desistir. Os paranaenses, bem mais rápidos, passaram por nós em seu caminho de volta do cume.

Continuei a escalada sozinho, primeiro pela chaminé e, depois, pelo artificial que vencia um trecho completamente encharcado de parede. No final dele, estavam o Platô Grande, meus amigos e o pôr do sol. Abandonei lá uma parte do equipamento que eu levava e me encordei na metade de uma das cordas que os outros estavam usando para escalar. A via, nesse ponto, atravessa uma curta fissura inclinada (off-width) para, então, entrar na espetacular Chaminé da Unha. Esse trecho segue pelo vão entre a pedra principal da Agulha do Diabo e uma impressionante unha de pedra que se ergue paralela a ela.

No Escuro

No final da unha, um cabo de aço possibilita o acesso imediato ao cume. Quando cheguei, já estava praticamente escuro. A pedra era mesmo pontuda, com espaço para bem poucas pessoas lá em cima. A lua, minguante, demoraria muitas horas para nascer. Nossas lanternas haviam ficado na base da primeira chaminé, onde estava a Bel. Até lá, seria uma descida completamente às cegas. Hsu instalou a primeira corda e iniciou o rapel (técnica de descer deslizando pela corda). Os demais aguardaram, um a um, sua vez de descer. Eu me ofereci como voluntário para ficar por último e recolher o material.

Quando chegou a vez do Heleno, a corda se embaraçou no cabo de aço. Com uma segunda corda, Breno desceu para ajudá-lo. Sem ter muito o que fazer, sentei-me encolhido sobre o cume, tremendo de frio e dando palpites sobre como os dois poderiam resolver o problema. No vale, um mar de nuvens encobria as cidades da Baixada Fluminense. No segundo lance de rapel, sobre a Unha, Heleno perdeu o equilíbrio, pendulou para a direita e foi parar quase dentro da chaminé. Na minha vez de descer, novo enrosco da corda no cabo de aço. Algum trabalho tateando no escuro e consegui desembaraçá-la.

Mais Enroscos

Quando cheguei à parada no topo da unha, a primeira corda de descida ficou presa. Tive que subir novamente pelo cabo de aço para soltá-la e, então, fazer a recuperação do equipamento. Na escuridão quase total, até mesmo desfazer um nó tinha se tornado uma tarefa das mais complicadas. Eu tinha que tomar o máximo cuidado para não deixar cair nenhum material e para não esquecer nada na parede. Quando cheguei ao platô grande, Hsu já tinha instalado a próxima corda, que ia até a base da chaminé onde estava a Bel. Por ela, conseguimos içar nossas lanternas. Podíamos, enfim, enxergar o que fazíamos.

Na base da chaminé, constatamos um novo enrosco de corda. Alguém havia se esquecido de desafazer o nó de segurança na ponta da corda. Quando tentamos recuperá-la, ela ficou presa na ancoragem de rapel. Hsu escalou novamente pela chaminé e, em seguida, subiu o artificial para liberar a corda, rearmar o rapel e descer de volta até onde estávamos. Nesse local, nossas mochilas nos esperavam, com água e comida. Eu sentia muito frio, e, desde o cume, vinha sonhando com uma blusa que deveria estar na minha mochila. Quando cheguei, percebi que, em vez da blusa, eu havia pego uma calça de underwear, que seria inútil nessa hora.

O penúltimo lance de rapel é feito a partir de um trecho horizontal da via onde há dois grampos, distantes uns dez metros um do outro. Não sabíamos ao certo em qual deles iniciar o rapel. Comecei a armar uma das cordas no segundo grampo, enquanto Hsu instalava outra no primeiro. Como ele já iniciava a descida, aguardei em posição. Se ele não aterrissasse no lugar esperado, eu desceria. Hsu desapareceu na escuridão e, poucos segundos depois, ouvi sua voz dizendo que o caminho era por lá. Recolhi a corda e o resto do equipamento e escalei de volta a horizontal. Em poucos minutos, estávamos todos na base, comendo os últimos chocolates e comemorando o sucesso da escalada.

Maurício Grego -- São Paulo, 16/jul/96

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© - O texto e a foto desta página são da autoria de Maurício Grego. Página atualizada em 15/jan/1997.