folha
de s.paulo
de 3 de março de 2001
Tempo de colheita na árvore dos
Guimaraens
Cassiano Elek Machado
Diz a lenda que dona Francisca não podia fazer sopa de letrinhas para
seus filhos que eles ficavam subnutridos. Não queriam saber de comer.
Sentados no cadeirão, se esticavam todos para organizar versinhos com
os macarrões boiando na superfície do caldo. Lendas a parte, Francisca
de Paula Guimarães Alvim acabou alimentando, de alguma forma, uma das
famílias mais literatas de que se tem (ou não tem) notícia. Basta
seguir os galhos.
Sobrinha de Bernardo
Guimarães, que marcou a história do romantismo brasileiro (e tem pelo
menos seu "A Escrava Isaura" ainda bem fresco na memória popular),
ela criou os garotos Arcanjo Augusto e Afonso Henriques. O primeiro
virou o pouco conhecido escritor Archangelus de Guimaraens. O segundo
adotaria o nome de Alphonsus e entraria para o time dos maiores poetas
da literatura brasileira
Os ramos não pararam
de esticar. O filho mais velho de Alphonsus, João, recolheu prêmios
como o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e elogios
rasgados a seus contos, vindos das melhores cepas modernistas. Seu irmão
mais moço, Alphonsus de Guimaraens Filho, apanhou outra larga admiração
de nomes como Bandeira, Drummond e Mário de Andrade e esta nos
principais pais livros de literatura
brasileira
A
seiva da poesia correu adiante por netos do velho Alphonsus e já está
na corrente sangüinea de pelo menos três bisnetos. Essa envergada árvore
genealógica literária chega agora a um de seus períodos mais férteis.
Organizando
a colheita está Alphonsus de Guimaraens Filho (foto). Aos 82 anos, o poeta
publicou recentemente o seu 18º livro de versos, "O Tecido do
Assombro", pela editora carioca 7 Letras. Quando o livro saiu, no
final de 2000, ele já
trabalhava no projeto mais ambicioso do clã.
Está
chegando às livrarias, ainda na primeira quinzena de março, a
"Poesia Completa" de seu pai, Alphonsus de Guimaraens. Editado
pela prestigiada Nova Aguilar, com a tradicional capa de couro verde e
papel-bíblia, o volume traz
a versão definitiva da obra poética do autor de versos como "Ismália"
-- "Quando Ismália enlouqueceu,/Pôs-se na torre a sonhar ... /Viu
urna lua no ceu,/Viu urna lua no mar (...)".
O
projeto, organizado com colaboração de Afonso Henriques Neto (o
neto) e o extrafamiliar Alexei Bueno, poeta e ensaísta, faz a chamada
fixação da poesia guimaraense, ou seja, a revisão meticulosa
de seus versos, de modo a retirar qualquer erro de digitação, diagramação,
grafia. “Resolvi preservar a parte fundamental dele, a poesia",
diz Guimaraens Filho, explicando por que resolveu deixar de lado a prosa
e trabalhos como os "textos humorísticos", que entraram em
edição preliminar da obra do pai.
Além
da produção poética de Guimarães, o volume traz subsídios para
entender por que ele é "uma das poucas unanimidades poéticas
brasileiras", nas palavras de Alexei Bueno.
Um
estudo de Eduardo Portela, uma “notícia biográfica” que o filho João
Alphonsus havia elaborado
para edição que Manuel Bandeira organizou de poesias de Guimaraens em
1938, urna cronologia da carreira do poeta e um caderno com todas as
fotos conhecidas dele são outras
atrações.
Completando
o elenco, estão reunidas "homenagens poéticas" a Alphonsus,
como texto feito para ele por Drummond e "Contemplação de
Alphonsus", poema de 422 versos de Murillo Mendes que foi
considerado por nomes como o
crítico Alfredo Bosi o melhor trabalho de Mendes.
Em
meio a todas essas centenas de textos, o fruto mais suculento talvez
seja um poema curto, o único soneto ainda inédito da obra centenária
de Guimaraens. Nos versos, que a Folha publica com exclusividade, está
algumas das marcas mais fortes da poesia do "solitário de Mariana",
como o mineiro Alphonsus de Guimaraens foi conhecido.
Considerado
o grande poeta do simbolismo brasileiro, ao lado de Cruz e Sousa
(ultimamente mais celebrado), o
escritor coloca no soneto algumas de suas características, como a
obsessão com o tema da morte, o ambiente místico, a referência à
noite e à cor branca (comum
ao simbolismo). "E dos melhores sonetos de papai", vibra Alphonsus de
Guimaraens Filho.
Poesia
Completa traz obra inédita
“É
um dos sonetos mais bonitos do simbolismo brasileiro e talvez de nova
poesia.” A frase comenta poema
publicado abaixo. O dono dessa voz grave, é bom que se esclareça, não
está em nenhum dos galhos da frondosa árvore da família Guimaraens.
Quem
fala é o poeta e ensaísta Alexei Bueno, que, além de trabalhar na
reunião da “Poesia Completa” de Alphonsus de Guimaraens, que a Nova
Aguilar está lançando, foi um dos artífices da publicação pela
mesma editora das “Obras Completas” de Cruz e Sousa, o outro grande
simbolista.
Bueno não poupa nenhum
elogio a Guimaraens (“É o maior poeta religioso da poesia
brasileira”) e atribui o certo desconhecimento que reveste hoje a obra
dele à dificuldade de sua poética. “Simbolismo nunca deu
popularidade”, comenta.
Alphonsus de Guimaraens
Filho não é um simbolista (foi classificado por Alfredo Bosi como um
poeta situado entre a primeira geração modernista e a chamada geração
de 45), mas está em sinfonia com Bueno: “Bandeira me disse uma vez:
‘Poesia não dá dinheiro, mas ajuda o poeta a ganhar’”
Alphonsus concorda.
“Fui assessor de Juscelino Kubitschek por oito anos e sei que ele não
me chamou pelos meus belos olhos, mas pelo meu texto”, brinca.
Ultimamente, Guimaraens
Filho andava meio ressabiado com a poesia. Mas descobriu que não
escaparia dela e lançou recentemente
o seu 18º livro (o primeiro deles, “Lume de Estrelas”, virou
até nome de rua no Rio). “Não se consegue fugir. Isso é uma
perseguição. Outro dia uma amiga me perguntou se eu era feliz por ser
poeta. Não cabe ser feliz por ser poeta, devo obedecer ao decreto.”
Entre seus orgulhos,
está, além do casamento de 58 anos com Hymirene, frisa ele, o fato de
quem tem três netos que também seguem o mandamento: “São poetas de
verdade”, fala com a boca cheia. São eles Augusto, Domingos e
Francisco, cada um deles filho de um de seus três filhos. O trio de
aspirantes a poetas inclusive já tornou pública parte de sua produção.
“Os três já
publicaram na revista ‘Poesia Paratodos’, aqui do Rio, conta Afonso
Henriques Neto, pai de Francisco, 23, que nasceu dois anos depois de sua
obra mais famosa, “O Misterioso Ladrão de Tenerife”, marco da
literatura marginal reeditado no ano passado pela 7 Letras.
Henriques diz que
decidiu não usar o Alphonsus que seu pai e avô adotaram como pseudônimo
para “evitar confusão”.
Por outros motivos, de
concisão, outra integrante da família Guimaraens também deixou para
trás esse sobrenome (no seu caso grafado anda como Guimarães).
É a escritora e
colunista da Folha Nina Horta, sobrinha-neta de Alphonsus de Guimaraens.
A poesia de Horta seguiu um galho diferente da maioria dos parentes. A
qualidade poética de seu escrito está hoje voltada principalmente para
a crítica gastronômica.
Poema
inédito de Alphonsus Guimaraens
Apesar
do teu fundo olhar agonizante,
E dos esgares dos teus últimos arrancos,
E das rugas que tens sobre o morto semblante,
Alma coroada de hibernais cabelos brancos:
Apesar,
e talvez por causa disso, diante
De ti houve alguém pasmo, a contemplar-te os flancos
Estrelados, e o manto às virações flutuantes,
E todo esse pavor dos teus olhos estancos...
Mirou-se
de alto a baixo, e teve, como tantos,
Um olhar de piedade imortal que te esconde
Em ritmos (até hoje) incessantes de prantos.
Compreendeu-se talvez, pobre alma de remansos
Quietos e tristes, lago imenso que se expande
Para além, para além, cheio de cisnes mansos...
O parentesco entre os
Guimarães com os Guimaraens
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