As lembranças dos bastidores da telenovela brasileira
mais exportada rendem outra grande história.
O
vento não levou "A Escrava Isaura". Passados 25 anos de sua estréia na
Globo, a novela resiste. E não apenas na memória de quem a assistiu, mas também
nas referências das novas gerações do Brasil e, quiçá, do exterior.
Atualmente o folhetim está sendo reexibido na Indonésia e na Grécia - mais dois
capítulos da saga da escrava branca, que começou em outubro de 76 e percorreu 80
países.
Na China, por exemplo, "Ninu Isola" já foi vista por 1
bilhão de pessoas. Na Rússia, a palavra fazenda passou a integrar o vocabulário
dos eslavos. Na Itália, Isaura tornou-se mártir de causas libertárias, com seu
nome pichado em muros. Em Cuba, Fidel Castro mudou o horário de reuniões para
não perder a novela.
Enquanto isso, no Brasil, "A Escrava Isaura" mantém sua
aura de um dos maiores fenômenos da teledramaturgia nacional. Concurso recente do
"Vídeo Show" escolheu Lucélia Santos (foto) e Rubens de Falco como
melhor mocinha e melhor vilão da TV. Na semana passada, os dois foram aplaudidos
de pé ao serem identificados na platéia de um teatro. Na mesma noite, uma fã
adolescente posou emocionadíssima para uma foto com Lucélia. A garota nunca
havia assistido à novela (sua última exibição foi em 1991) e nem a viu atuar.
Considera, porém, o fato irrelevante. Ela também nunca viu um filme com James
Dean, ao lado de quem Isaura passará a conviver nas paredes de seu quarto.
A novela desfruta, portanto, do status de mito, tornando-se uma
questão de fé. Os caminhos que a levaram até lá são também um mistério. Só
para ilustrar suas contradições: por causa da precária produção,
funcionários da Globo tinham de distrair seus potenciais compradores em
exibições promocionais no exterior. Isso porque as cenas mais emocionantes eram
também as mais problemáticas tecnicamente.
De fato, o que pegava era a emoção. Uma aposta é seu libelo
libertário, como justificou o autor Gilberto Braga. "Numa sociedade
escravocrata e machista, as mulheres estão psicologicamente entre a casa e a
senzala. Não é só a história de uma escrava em busca de sua liberdade. É a
história de uma mulher, por acaso nascida escrava, que procura, auxiliada por
outras mulheres, muitas vezes não-escravas, encontrar na liberdade o direito de
escolha."
A outra possibilidade é o espírito romântico que impregna seus
cem capítulos. Braga - adaptador do romance homônimo de Bernardo Guimarães
(1825-1884) - confessa ter encontrado inspiração após assistir à reprise de
"O Morro dos Ventos Uivantes". Mas, na verdade, a novela está no meio
do caminho do épico de William Wyler. Isaura é um autêntico melodrama, a
essência da telenovela: a filha de uma mulata com um feitor é criada com
requinte pela mulher de seu dono. Com a morte de sua protetora, a escrava, com a
face da cor de marfim, come o pão que o diabo amassou nas mãos de Leôncio, o
malévolo herdeiro. Entre os dois, surge Álvaro, um abolicionista, que salva sua
heroína de tantas agruras. A história é cheia de clichês lacrimosos, mas seus
bastidores também têm um irresistível sabor de almanaque.
OS BASTIDORES DA NOVELA
Valor reúne Lucélia Santos, Rubens de Falco, Edwin Luisi
e Roberto Pirillo para falar sobre "A Escrava Isaura"
Para relembrar os 25 anos de Isaura, a escrava branca que sofria
nas mãos de um senhor de engenho, o Valor promoveu um reencontro entre Lucélia
Santos (Isaura), Rubens de Falco (Leôncio), Edwin Luisi (Álvaro) e Roberto
Pirillo (Tobias). Eles foram os protagonistas da novela brasileira mais exportada
em todos os tempos - atingiu 80 países. Adaptada por Gilberto Braga, a partir de
romance de Bernardo Guimarães, "A Escrava Isaura" foi exibida entre
outubro de 1976 e fevereiro de 77, às 18h, na Globo. A direção era de Herval
Rossano. Leia trechos do bate-papo.
Valor: Como vocês avaliam o fenômeno de "A
Escrava Isaura" 25 anos depois?
Rubens de Falco: Acho incrível que nesses 25
anos, nós continuamos iguais. A Lucélia tinha 12 anos quando fez a novela. O
Edwin tinha... (risos)
Edwin Luisi: Dezessete. Tive de tirar o alvará
de menor para poder trabalhar... Falando sério, acho muito emocionante o fato de
nós quatro termos feito parte de um grande momento da história da TV com,
talvez, um dos maiores sucessos mundiais...
Lucélia Santos: Deixe-me afirmar
categoricamente: "A Escrava Isaura" é considerado o maior sucesso do
gênero no mundo. Esses dados são de um programa americano chamado "Good
Morning America", que analisou o impacto nos países onde era exibida.
Valor: Qual era a conclusão?
Lucélia: Nenhuma. Eles só apresentavam a
questão. Mas "A Escrava Isaura" mereceu um estudo na Universidade de
Pequim, no qual se afirmava que isso ocorria porque a novela tinha protagonistas e
antagonistas fortes e uma trama centralizada. Hoje em dia, a teledramaturgia se
dissolveu, criando vários núcleos paralelos. Mas quase nenhum acontece. O mesmo
ocorre no cinema. Os filmes inesquecíveis são de bons protagonistas, como
"Beleza Americana", que estourou com o personagem de Kevin Spacey.
Luisi: Se perguntarem o porquê do sucesso, não
sei. Não acho que seja a melhor novela do Gilberto, que estava apenas começando.
Mas considero que 70% do sucesso se deva a Lucélia. Ela imprimiu uma empatia
absoluta ao personagem. Em Cuba, ela é santa até hoje.
De Falco: Concordo.
Pirillo: Eu também.
Lucélia: Que absurdo isso tudo... Quando entrei
no estúdio, não tinha qualquer experiência em TV. Tinha trabalhado em teatro e
muita vontade de fazer aquele trabalho. Por isso, devo muito aos meus colegas e,
particularmente, ao Rubens, que me punha em cena. Ele olhou para mim e disse:
"Você acontece."
Luisi: E era tudo contra você, não é,
Lucélia? Você era baixinha, não era sensual...
Lucélia: Sensual eu era.
Luisi: Vamos admitir que você não tinha os
peitos grandes e não era a mulata gostosa.
De Falco: Mas a Lucélia agüentava ficar 18
horas em cima de um salto enorme para ter uma estatura adequada e apertava bem a
roupa porque não tinha peitos grandes. Ela ainda era uma menina de 18 anos.
Valor: Por que a chamaram para a novela?
Lucélia: Fui convidada pelo Herval Rossano e
pelo Borjalo (executivo). Antes disso, havia sido reprovada em um teste na Globo e
achava que eles iam me humilhar novamente. Quando entrei na sala do Borjalo, ele
comentou: "Você é baixinha, né? Eu respondi: "Se o senhor vai me
ofender, já estou indo embora". Mas não. Ele me convidou para fazer "A
Escrava Isaura" e a minha reação foi de dúvida, dizendo que dependeria do
papel. Ele me revelou que era para ser a própria Isaura. "Ah, bom! Começou
a me interessar."
Valor: E você, Edwin, como foi?
Luisi: Estava fazendo uma peça e o Gilberto
Braga, crítico de teatro na época, a assistiu e me indicou. Foi engraçado
porque eu tinha muito medo do Rubens. Não sei se era porque ele ia ser meu
antagonista ou se era porque o Rubens tinha uma empáfia de personagem que me
confundia. Com o Pirillo eu também tinha problemas. Quando eu ia entrar na
novela, houve insinuações de que eu não daria conta de superar o romance com o
Tobias.
Pirillo: Sabem que o Tobias não existia no
original? Foi criado para dar romantismo à história. Eu deveria participar de 15
capítulos, mas fui até o 50. O personagem pegou.
Luisi: Por mim, ele teria morrido bem antes. A
minha entrada na novela ficou muito complicada porque eu tinha um distanciamento
do veículo. Por isso, ficava tão nervoso, que as minhas lentes de contato
pulavam dos olhos. O diretor dizia: "Gravando". "Ploft",
minhas lentes caíam. Claro que foi difícil o público me aceitar. Mas, em dez
dias, não podia mais andar na rua. No entanto, não soube aceitar. Tive atração
e repulsa.
Valor: Como foi a recepção do grande vilão?
De Falco: Nunca sofri uma agressão. O Leôncio
era muito mau, mas muito apaixonado. E eu não tinha pudor em fazê-lo. Veja bem.
Eu era o opressor dos negros. Mas os meus maiores fãs são eles. Acho que é
porque o Leôncio tinha a dimensão do amor. Na verdade, a Isaura era negra. Era
uma branca de sangue negro e eu também tinha relações com uma outra escrava.
Lucélia: Eu tinha pesadelos com o Leôncio me
torturando.
De Falco: Era uma época de censura e não podia
ter cenas muito ousadas. Por isso, tudo era feito no olhar. O Herval me colocava
deitado em cena porque o Leôncio sonhava que torturava a Isaura e chegava ao
orgasmo. Era tudo contido e fechado na expressão do rosto. Isso pegava o público
de uma forma incrível. Além disso, nós todos temos um lado bom e um mau. Quando
se consegue cutucar o lado perverso das pessoas, você nunca é rejeitado. Elas se
identificam com o personagem. Até hoje, não posso pegar um táxi que o motorista
pergunta por que não faço mais novelas. Respondo que não sou convidado. E ele
diz: "Mas quando o senhor fez 'A Escrava Isaura', hein?" É
impressionante a memória da novela.
Valor: Você disse que a Globo estava certa em
não convidá-la para trabalhar por tanto tempo...
Lucélia: A Globo está sempre certa.
Valor: Quanto tempo você ficou fora?
Lucélia: Foram 14 anos. Meu último trabalho foi
"Sinhá Moça"e estou voltando agora em "Malhação". A Globo
nem percebe, mas eles estão me dando uma geração que não me conhece. Os
garotos vão dizer: "Ah! Essa é a famosa tia Isaura".
Valor: "A Escrava Isaura" rompeu o
cerco que havia da teledramaturgia do Sul para o hemisfério Norte. Por que ela
teve essa penetração, sobretudo nos países socialistas?
Lucélia: Foi uma experiência muito forte, que
não consigo compreender bem. Até por medida de proteção. Não podia achar que
aquilo era o dia-a-dia de um ator brasileiro. Mas a gente viveu coisas de
Hollywood.
Pirillo: A audiência da novela era uma torcida
contra a opressão.
Lucélia: São muitas histórias. A novela foi
comprada sem grande entusiasmo pela Venezuela e exibida em um canal estatal, que
não tinha espaço para publicidade. Mas ela estourou e não tinha espaço para
anunciantes. Foi uma bagunça. Em Cuba, não havia vôos na hora da novela por um
acerto entre os comandantes e a população. Os taxistas também não trabalhavam.
No Brasil, chegaram a mudar os horários de alimentação dos orfanatos e dos
hospitais. No Leste Europeu, éramos tratados como cantores de rock.
Pirillo: E ninguém perguntava por mim?
Lucélia: Não. Você teve o azar de morrer no
capítulo 50.
De Falco: Eu me lembro que no caminho para a
Cracóvia era como se fôssemos a rainha Elizabeth e o príncipe consorte. Tenho
em casa um saquinho com moedas falsas, que me deram para comprar a alforria da
Isaura.
Valor: Você ainda é celebridade na China?
Lucélia: Até hoje. Fui na China pela primeira
vez porque o povo votou em mim como melhor atriz do ano. Foram 300 milhões de
votos. O prêmio foi entregue em um estádio com 20 mil chineses. Como não falava
a língua deles, me pediram para cantar e dançar. Cantei um chorinho, cuja letra
não lembrava e, então, pedi para descer uma Carmem Miranda rápida em mim.
Depois disso, saí despretensiosamente para ver a muralha, mas não pude andar.
Fui obrigada a me refugiar. Teve um cara que escalou a muralha só para me ver. Eu
acenava de lá completamente sozinha para a multidão. Nem sabia direito o que era
a muralha da China na época.
De Falco: De Varsóvia à Cracóvia o trajeto
demora 1h30. Nós levamos 6 horas. A estrada estava cheia de gente e éramos
obrigados a parar em cada província. Então, eles faziam uma festa folclórica e
nos davam presentes. Quando chegamos à Cracóvia, entramos em um restaurante,
saímos na janela e vimos uma multidão. Nós colocamos mais gente na rua do que o
Papa, que é de lá.
Lucélia: O Rubens me pedia para acenar um pouco
da janela porque ele não dava conta. Quando estive na Hungria, tinha de
autografar um livro a partir das 10h em uma loja de departamentos. O país
enfrentava a maior nevasca da história. Mas quando cheguei lá tinha uma fila de
milhares de pessoas que haviam chegado às 4h da manhã para ter o meu autógrafo.
No meio deles, tinha um menino de 9 anos que era cego. Ele estava havia horas no
frio. Fiquei muito emocionada com a situação. Realmente, eu não conseguia
entender. Ele não podia me ver e nem me ouvir. A novela tinha uma narradora que
contava a história. "A Escrava Isaura" não era dublada e nem legendada
na Hungria. Penso como ele podia se afeiçoar a mim.
De Falco: Nós somos as pessoas mais vistas do
mundo.
Lucélia: Na China, fomos vistos por 1 bilhão de
pessoas. Só falta passar na Índia, que é o único lugar onde não foi exibida
por causa do cinema local, que é muito forte. Estou doida para que passe lá. Só
quero desencarnar depois disso.
Pirillo: Não fui nem até São João do Meriti
por causa da novela.
Lucélia: Mas você sabe que acontecem fenômenos
de audiência quando passa a cena da sua morte queimado junto com a Malvina (Norma
Blum). Em Portugal, uma mulher atirou um tamanco na TV por causa da morte do
Tobias e depois me mandou uma carta cobrando um aparelho novo.
Valor: "A Escrava Isaura" trouxe fama
nacional e internacional para vocês; há algo de negativo sobre a novela?
Pirillo: Os direitos autorais. A lei foi assinada
em 1978 e não recebemos nada.
De Falco: Não me queixo disso. Eu e a Lucélia
tivemos uma chance de capitalizar esse sucesso. Eu tive muita sorte porque no
pacote que eles vendiam de telenovela, também comercializavam "A
Sucessora", na qual eu fazia um homem romântico.
Lucélia: Eu e Rubens ganhamos o concurso do
"Vídeo Show" para eleger quem chorou mais e quem deu mais porrada.
Pensei que fosse dar Ana Paula Arósio.
De Falco: E eu pensei que fosse dar o Tarcísio
Meira. Mas eu tive 27 mil votos, e ele, 23 mil.
Valor: Vocês tentaram recuperar o sucesso com
"Sinhá Moça".
Lucélia: Era uma novela para o mercado
internacional. Já saía do estúdio em outras línguas. É a segunda novela mais
exportada do Brasil.
De Falco: Em 76, fiz o homem que gostava da
Lucélia. Depois fiz o pai. Agora serei o avô.
Lucélia: As pessoas me perguntam se eu tinha
dimensão de que "A Escrava Isaura" seria esse sucesso. Então eu penso
naquela época, quando eu ficava chafurdando na lama de Santa Cruz, onde a novela
era gravada. Vocês se lembram? O que me fascina é que a novela tinha uma
produção muito simples se comparada ao que produzimos hoje. Até o cavalinho que
eu usava morreu de tanto trabalhar. A gente fazia por amor. Não pelo sucesso.
Eram outros tempos.
Valor: Eram outros tempos em que termos? Era mais
diletante?
Lucélia: Não tinha a infra-estrutura
de hoje. A gente se maquiava nos ônibus.
Luisi: Comíamos "quentinhas".
De Falco: Em Santa Cruz, não tinha lugar para
sentar e nem para urinar. Era tudo na raça, com um profissionalismo insuperável.
Valor: Qual a a avaliação que vocês fazem das
novelas atuais?
De Falco: Naquela época havia um escritor e um
diretor. A autoria era um fator importante. A linguagem era única. Agora são
cinco diretores e quatro autores, o que dilui tudo.
Luisi: Não sei como a Globo não pensou em fazer
um "remake" de "A Escrava Isaura".
De Falco: Um dia alguém me disse que havia feito
uma reunião na Globo sobre o "remake" de "Isaura". Respondi:
"