CARTA APOSTÓLICA
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
ORIENTALE LUMEN
AO EPISCOPADO, AO CLERO E AOS FIÉIS
NO CENTENÁRIO DA ORIENTALIUM DIGNITAS
DO PAPA LEÃO XIII
Veneráveis Irmãos
Caríssimos Filhos e Filhas da Igreja
1. A LUZ DO ORIENTE iluminou a Igreja Universal, a partir do momento em que sobre nós apareceu «a luz do alto» (Lc 1, 78), Jesus Cristo nosso Senhor, que todos os cristãos invocam como Redentor do homem e esperança do mundo.
Aquela luz inspirara ao meu Predecessor o Papa Leão XIII a Carta Apstólica Orientalium dignitas, com a qual ele quis defender o significado das tradições orientais para a Igreja inteira 1.
Ocorrendo o centenário daquele acontecimento e das iniciativas concomitantes, com as quais esse Pontífice pretendia favorecer a recomposição da unidade com todos os cristãos do Oriente, quis eu que um apelo semelhante, enriquecido por tantas experiências de conhecimento e de encontro que se realizaram neste último século, fosse dirigido à Igreja Católica.
Visto que, de facto, acreditamos que a veneranda e antiga tradição das Igrejas Orientais é parte integrante do património da Igreja de Cristo, a primeira necessidade para os católicos é conhecê-la para se poderem nutrir dela e, na maneira possível a cada um, favorecer o processo da unidade.
Os nossos irmãos orientais católicos têm viva consciência de que são os portadores, juntamente com os irmãos ortodoxos, desta tradição. É necessário que também os filhos da Igreja Católica de tradição latina possam conhecer em plenitude este tesouro e sentir assim, juntamente com o Papa, a paixão por que seja restituída à Igreja e ao mundo a manifestação plena da catolicidade da Igreja, que não se exprime apenas por uma única tradição, nem tampouco por uma comunidade contra a outra; e para que também a todos nós seja concedido saborear plenamente aquele património divinamente revelado e indiviso da Igreja universal 2, que se conserva e cresce na vida tanto das Igrejas do Oriente como das do Ocidente.
2. O meu olhar dirige-se para a Orientale lumen que resplandece de Jerusalém (cf. Is 60, 1; Ap 21, 10), a cidade na qual o Verbo de Deus, feito homem para a nossa salvação, hebreu «nascido da descendência de David» (Rm 1, 3; 2 Tm 2, 8), morreu e ressuscitou. Naquela cidade santa, quando chegou o dia de Pentecostes e «se encontravam todos reunidos no mesmo lugar» (Act 2, 13), o Espírito Paráclito foi enviado sobre Maria e os discípulos. De lá, a Boa Nova foi irradiada pelo mundo, porque, cheios do Espírito Santo, «anunciavam a Palavra de Deus com desassombro» (Act 4, 31). De lá, da mãe de todas as Igrejas 3, o Evangelho foi pregado a todas as nações, muitas das quais se gloriam de ter tido num dos apóstolos a primeira testemunha do Senhor 4. Naquela cidade, as mais variadas culturas e tradições encontraram hospitalidade no nome do único Deus (cf. Act 2, 9-11). Dirigindo-nos a ela com saudade e gratidão, encontramos a força e o entusiasmo para intensificar a procura da harmonia naquela autenticidade e pluriformidade que permanece o ideal da Igreja 5.
3. Um Papa, filho de um povo eslavo, sente particularmente no coração o apelo daqueles povos aos quais se dirigiram os dois santos irmãos Cirilo e Metódio, exemplo glorioso de apóstolos da unidade, que souberam anunciar Cristo na procura da comunhão entre Oriente e Ocidente, embora no meio das dificuldades que já, por vezes, contrapunham os dois mundos. Várias vezes me detive sobre o exemplo das suas acções 6, dirigindo-me também a todos aqueles que são seus filhos na fé e na cultura.
Estas considerações desejam agora alargar-se para abraçar todas as Igrejas Orientais, na variedade das suas diferentes tradições. Aos irmãos das Igrejas do Oriente vai o meu pensamento, com o desejo de procurarmos juntos a força de uma resposta às interrogações que o homem, hoje, lança em todas as latitudes do mundo. Ao seu património de fé e de vida quero dirigir-me, consciente de que o caminho da unidade não pode conhecer hesitações, mas é irreversível como o apelo do Senhor à unidade. «Caríssimos, temos esta tarefa comum: devemos dizer juntos, o Oriente com o Ocidente: Ne evacuetur Crux! (cf. 1 Cor 1, 17). Não se desvirtue a Cruz de Cristo, porque, se se desvirtua a Cruz de Cristo, o homem perde as raízes, já não tem perspectivas: destrói-se! Este é o grito no final do século XX. É o grito de Roma, o grito de Constantinopla, o grito de Moscovo. É o brado de toda a cristandade: das Américas, da África, da Ásia, de todos. É o grito da nova evangelização» 7.
Às Igrejas do Oriente dirige-se o meu pensamento, como numerosos outros Papas o fizeram no passado, sentindo dirigido, antes de mais, a si mesmos o mandato de manter a unidade da Igreja e de procurar incansavelmente a união dos cristãos onde tivesse sido dilacerada. Um laço particularmente estreito já nos une. Temos em comum quase tudo 8; e sobretudo temos em comum o anelo sincero da unidade.
4. A todas as Igrejas, do Oriente e do Ocidente, chega o grito dos homens de hoje que pedem um sentido para a vida. Nele divisamos a invocação de quem procura o Pai esquecido e perdido (cf. Lc 15, 18-20; Jo 14, 8). As mulheres e os homens de hoje pedem-nos que lhes indiquemos Cristo, que conhece o Pai e no-Lo revelou (cf. Jo 8, 55; 14, 8-11). Deixando-nos interpelar pelas perguntas do mundo, ouvindo-as com humildade e ternura, em plena solidariedade com quem as formula, nós somos chamados a mostrar com palavras e gestos de hoje as imensas riquezas que as nossas igrejas conservam nos cofres das suas tradições. Aprendamos do próprio Senhor que, ao longo do caminho, parava no meio da gente, escutava-a, comovia-Se quando a via «como ovelhas sem pastor» (Mt 9, 36; cf. Mc 6, 34). D'Ele devemos aprender aquele olhar de amor com o qual reconciliava os homens com o Pai e consigo próprios, comunicando-lhes aquela força que é a única que pode sarar o homem todo.
Prante este apelo, as Igrejas do Oriente e do Ocidente são chamadas a concentrar-se sobre o essencial: «Não podemos apresentar-nos diante de Cristo, Senhor da História, tão divididos como infelizmente nos temos encontrado ao longo do segundo milénio. Estas divisões devem ceder o lugar à reaproximação e à concórdia; devem ser cicatrizadas as feridas no caminho da unidade dos cristãos» 9.
Para além das nossas fragilidades, devemos dirigir-nos a Ele, único Mestre, participando na sua morte, de maneira e purificar-nos daquele apego cioso aos sentimentos e às recordações, não das grandes coisas que Deus fez por nós, mas das vicissitudes humanas de um passado que ainda pesa muitíssimo sobre os nossos corações. Que o Espírito Santo torne límpido o nosso olhar, para que juntos possamos ir ao encontro do homem contemporâneo, que espera a boa nova. Se, perante os anseios e os sofrimentos do mundo, dermos uma resposta concorde, iluminante, vivificadora, contribuiremos verdadeiramente para um anúncio mais eficaz do Evangelho no meio dos homens do nosso tempo.
I
CONHECER O ORIENTE CRISTÃO,
UMA EXPERIÊNCIA DE FÉ
5. «No estudo da verdade revelada, o Oriente e o Ocidente usaram métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. Não admira, por isso, que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um que por outro. Nestes casos, deve dizer-se que aquelas várias fórmulas teológicas, em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente» 10.
Tendo no coração as perguntas, as aspirações e as experiências a que fiz referência, a minha mente dirige-se ao património cristão do Oriente. Não é minha intenção descrevê-lo nem interpretá-lo: coloco-me em atitude de escuta das Igrejas do Oriente, sabendo que são intérpretes vivas do tesouro tradicional que guardam. Contemplando-o, vejo aparecer elementos de grande significado para uma compreensão mais plena e integral da experiência cristã, e, portanto, para dar uma resposta cristã mais completa aos anseios dos homens e das mulheres de hoje. Em relação a qualquer outra cultura, o Oriente cristão tem, de facto, um papel único e privilegiado enquanto contexto original da Igreja nascente.
A tradição oriental cristã implica certa maneira de acolher, compreender e viver a fé no Senhor Jesus. Nesse sentido, ela está muitíssimo perto da tradição cristã do Ocidente, que nasce e se alimenta da mesma fé. E, contudo, diferencia-se legítima e admiravelmente, enquanto o cristão oriental tem uma forma própria de sentir e compreender, e, portanto, também uma forma original de viver a sua relação com o Salvador. Quero, aqui, abeirar-me com temor e tremor do acto de adoração que exprimem estas Igrejas, mais do que assinalar este ou aquele ponto teológico específico, que emergiu ao longo dos séculos em contraposição polémica no debate entre Ocidentais e Orientais.
O Oriente cristão, desde as suas origens, mostra-se multiforme no próprio interior, capaz de assumir os traços característicos de cada cultura individual, e com um respeito máximo por cada comunidade particular. Não podemos deixar de agradecer a Deus, com profunda comoção, a admirável variedade com que permitiu a composição, com tesselas diferentes, de um mosaico tão rico e variegado.
6. Existem alguns traços da tradição espiritual e teológica, comuns às várias Igrejas do Oriente, que distinguem a sua sensibilidade, em relação às formas assumidas pela transmissão do Evangelho, nas terras do Ocidente. O Concílio Vaticano II sintetiza-as da seguinte maneira: «É conhecido de todos com quanto amor os cristãos orientais realizam as cerimónias litúrgicas, principalmente a celebração eucarística, fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura, pela qual os fiéis unidos ao bispo, tendo acesso a Deus Pai mediante o Filho, o Verbo encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, conseguem a comunhão com a Santíssima Trindade, feitos "participantes da natureza divina" (2 Ped 1, 4)» 11.
Nestes traços, delineia-se a visão oriental do cristão, cujo fim é a participação na natureza divina, mediante a comunhão no mistério da Santíssima Trindade. Ali se delineiam a «monarquia» do Pai e a concepção da salvação segundo a economia que apresenta a teologia oriental na linha de Santo Ireneu de Lião e como se espelha nos Padres Capadócios 12.
A participação na vida trinitária realiza-se através da liturgia e, de maneira particular, através da Eucaristia, mistério de comunhão com o corpo glorificado de Cristo, semente de imortalidade 13. Na divinização e sobretudo nos sacramentos, a teologia oriental atribui um papel muito particular ao Espírito Santo: pela força do Espírito que habita no homem, a deificação inicia-se já na Terra, a criatura é transfigurada, e o Reino de Deus inaugurado.
O ensinamento dos Padres Capadócios sobre a divinização entrou na tradição de todas as Igrejas Orientais e constitui parte do seu património comum. Isto pode-se resumir no pensamento já expresso por Santo Ireneu, em finais do século II: Deus fez-Se filho do homem, para que o homem pudesse ser filho de Deus 14. Esta teologia da divinização permanece uma das aquisições particularmente queridas do pensamento cristão oriental 15.
Neste caminho de divinização, precedem-nos aqueles que a graça e o empenho no caminho do bem tornaram «muito semelhantes» a Cristo: os mártires e os santos 16. E, entre estes, ocupa um lugar muito particular a Santíssima Virgem Maria, da qual germinou o Rebento de Jessé (cf. Is 11, 1). A sua figura aparece não só como a Mãe que nos espera, mas também como a Puríssima que — realização de tantas prefigurações do Antigo Testamento — é ícone da Igreja, símbolo e antecipação da humanidade transfigurada pela graça, modelo e esperança segura para todos aqueles que dirigem os seus passos para a Jerusalém do Céu 17.
Embora acentuando fortemente o realismo trinitário e a sua implicação na vida sacramental, o Oriente associa a fé na unidade da natureza divina à incognoscibilidade da essência divina. Os Padres Orientais afirmam sempre que é impossível saber o que é que Deus é; pode saber-se apenas que Ele é, pois que Se revelou na história da salvação como Pai, Filho e Espírito Santo 18.
Este sentido da inefável realidade divina reflecte-se na celebração litúrgica, onde o sentido do mistério é apreendido tão fortemente por todos os fiéis do Oriente cristão.
«No Oriente, encontram-se as riquezas daquelas tradições espirituais que o monaquismo, sobretudo, expressou. Pois, desde os gloriosos tempos dos Santos Padres, floresceu no Oriente aquela elevada espiritualidade monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente e da qual a vida religiosa dos Latinos se originou como de sua fonte, e em seguida, sem cessar, recebeu novo vigor. Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se abeirem com mais frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente, que elevam o homem todo à contemplação das coisas divinas» 19.
Evangelho, Igrejas e culturas
7. Já outras vezes pus em evidência que um primeiro grande valor vivido particularmente no Oriente cristão consiste na atenção aos povos e às suas culturas, para que a Palavra de Deus e o seu louvor possam ressoar em todas as línguas. Sobre este tema, já me detive na carta encíclica Slavorum Apostoli, pondo em relevo que Cirilo e Metódio «quiseram tornar-se semelhantes, sob todos os aspectos, àqueles a quem levavam o Evangelho; procuraram integrar-se naqueles povos e compartilhar em tudo a sua sorte» 20; «tratava-se de um novo método de catequese» 21. Agindo assim, eles manifestaram uma atitude muito difundida no Oriente cristão: «Ao encarnarem o Evangelho na cultura peculiar dos povos que evangelizavam, os Santos Cirilo e Metódio tiveram méritos particulares na formação e no desenvolvimento dessa mesma cultura, ou, melhor dito, de numerosas culturas» 22. O respeito e consideração pelas culturas particulares unem-se neles à paixão pela universalidade da Igreja, que incansavelmente se esforçam por realizar. A atitude dos dois irmãos de Salonica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas Igrejas: a revelação anuncia-se adequadamente e torna-se plenamente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e estes podem ler a Escritura e cantar a Liturgia na respectiva língua e com as suas expressões características, como que a renovar os prodígios do Pentecostes.
Numa época em que se reconhece ser cada vez mais fundamental o direito de cada povo se exprimir segundo o próprio património de cultura e de pensamento, a experiência das várias Igrejas do Oriente apresenta-se-nos como um exemplo autorizado de inculturação bem sucedida.
A partir deste modelo, aprendemos que, se queremos evitar o renascimento de particularismos e também de nacionalismos exacerbados, devemos compreender que o anúncio do Evangelho deve ser, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na especificidade das culturas e aberto para confluir numa universalidade, que é permuta para o enriquecimento comum.
Entre memória e expectativa
8. Hoje, muitas vezes, sentimo-nos prisioneiros do presente: é como se o homem tivesse perdido a percepção de fazer parte de uma história que o precede e o segue. A esta dificuldade de situar-se entre passado e futuro, com espírito grato pelos benefícios recebidos e pelos esperados, as Igrejas do Oriente, em particular, oferecem um acentuado sentido da continuidade, que assume os nomes de Tradição e de expectativa escatológica.
A Tradição é património da Igreja de Cristo, memória viva do Ressuscitado, encontrado e testemunhado pelos Apóstolos, que transmitiram a sua recordação viva aos sucessores, numa linha ininterrupta que é garantida pela sucessão apostólica, através da imposição das mãos, até aos Bispos de hoje. A Tradição articula-se no parimónio histórico e cultural de cada Igreja, nela plasmado pelo testemunho dos Mártires, dos Padres e dos Santos, bem como pela fé viva de todos os cristãos, ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Não se trata de uma repetição rígida de fórmulas, mas de um património que guarda o núcleo querigmático vivo e original. É a Tradição que livra a Igreja do perigo de recolher apenas opiniões mutáveis, e garante a sua certeza e continuidade.
Quando os usos e costumes próprios de cada Igreja são entendidos como pura imobilidade, certamente corre-se o risco de tirar à Tradição aquele carácter de realidade viva, que cresce e se desenvolve, e que o Espírito lhe garante precisamente para que ela fale aos homens de todos os tempos. E como a Escritura cresce com quem a lê 23, assim qualquer outro elemento do património vivo da Igreja cresce na compreensão dos crentes e enriquece-se de contributos novos, na fidelidade e na continuidade 24. Somente uma zeloza assimilação, na obediência da fé, daquilo que a Igreja chama «Tradição», permitirá a esta encarnar-se nas diferentes situações e condições histórico-culturais 25. A Tradição não é jamais pura nostalgia de coisas ou formas passadas, ou lamento de privilégios perdidos, mas memória viva da Esposa mantida eternamente jovem pelo amor que nela habita.
Se a Tradição nos coloca em continuidade com o passado, a expectativa escatológica abre-nos ao futuro de Deus. Cada Igreja deve lutar contra a tentação de absolutizar aquilo que faz e, portanto, de autocelebrar-se ou de abandonar-se à tristeza. O tempo é de Deus, e tudo aquilo que se realiza nunca se identifica com a plenitude do Reino, que é sempre dom gratuito. O Senhor Jesus veio morrer por nós e ressuscitou dos mortos, enquanto a criação, salva na esperança, sofre ainda as dores de parto (cf. Rm 8, 22); o mesmo Senhor voltará para entregar o cosmos ao Pai (cf. 1 Cor 15, 28). A Igreja invoca este retorno, e dele são testemunhas privilegiadas o monge e o religioso.
O Oriente exprime de maneira viva as realidades da tradição e da expectativa. Toda a sua liturgia, em particular, é memorial da salvação e invocação do retorno do Senhor. E, se a Tradição ensina às Igrejas a fidelidade àquilo que as gerou, a expectativa escatológica leva-as a serem aquilo que ainda não são em plenitude e em que o Senhor deseja que se tornem, e a procurarem, portanto, sempre novos caminhos de fidelidade, vencendo o pessimismo porque projectadas para a esperança de Deus que não desilude.
Devemos mostrar aos homens a beleza do memorial, a força que nos vem do Espírito e que nos torna testemunhas porque somos filhos de testemunhas; fazer-lhes saborear as coisas maravilhosas que o Espírito disseminou na História; mostrar que é precisamente a Tradição que as conserva, dando, assim, esperança àqueles que, não tendo visto coroados de êxito os seus esforços de bem, sabem que outros os levarão a cabo; então o homem sentir-se-á menos só, menos fechado no canto estreito das suas acções individuais.
O monaquismo como paradigma de vida baptismal
9. Desejaria agora olhar para o vasto panorama do cristianismo do Oriente, a partir de uma altitude particular, que permite distinguir muitos dos seus traços: o monaquismo.
No Oriente, o monaquismo conservou uma grande unidade, não conhecendo, como no Ocidente, a formação dos diferentes tipos de vida apostólica. As várias expressões da vida monástica, desde o rígido cenobismo, como o concebiam os santos Pacómio e Basílio, até ao eremitismo mais rigoroso de Santo Antão ou de S. Macário o Egípcio, correspondem mais a fases diferentes do caminho espiritual do que à escolha entre diferentes estados de vida. De facto, todos fazem apelo ao monaquismo em si, qualquer que seja a forma com a qual se exprima.
Além disso, o monaquismo não foi visto no Oriente apenas como uma condição à parte, própria de uma categoria de cristãos, mas particularmente como ponto de referência para todos os baptizados, na medida dos dons oferecidos a cada um pelo Senhor, propondo-se como uma síntese emblemática do cristianismo.
Quando Deus chama de uma forma total como na vida monástica, então a pessoa pode atingir o ponto mais elevado de tudo aquilo que a sensibilidade, cultura e espiritualidade são capazes de exprimir. Isto é válido com maior razão para as Igrejas Orientais, nas quais o monaquismo constituiu uma experiência essencial e que ainda hoje floresce nelas, logo que termina a perseguição e os corações podem elevar-se livremente para os Céus. O mosteiro é o lugar profético no qual a criação se torna louvor de Deus, e o preceito da caridade, vivida concretamente, se torna ideal de convivência humana, e onde o ser humano procura Deus sem barreiras nem impedimentos, tornando-se referência para todos, levando-os no coração e ajudando-os a procurar Deus.
Desejaria recordar também o fulgurante testemunho das monjas no Oriente cristão. Ele representa um modelo de valorização da especificidade feminina na Igreja, forçando mesmo a mentalidade do tempo. Durante recentes perseguições, sobretudo nos países do Leste europeu, quando muitos mosteiros masculinos foram encerrados à força, o monaquismo feminino conservou acesa a chama da vida monástica. O carisma da monja, com as características que lhe são específicas, é um sinal visível daquela maternidade de Deus à qual muitas vezes alude a Sagrada Escritura.
Por isso considerarei o monaquismo, para nele especificar aqueles valores que hoje tenho por muito importantes para exprimir o contributo do Oriente cristão para o caminhar da Igreja de Cristo em direcção ao Reino. Estes aspectos, embora às vezes não sejam exclusivos, quer da experiência monástica, quer do património do Oriente, todavia frequentemente adquiriram nele uma conotação particular. De resto, o que procuramos valorizar, não é a exclusividade, mas o enriquecimento recíproco naquilo que o único Espírito suscitou na única Igreja de Cristo.
O monaquismo foi desde sempre a própria alma das Igrejas Orientais: os primeiros monges cristãos nasceram no Oriente e a vida monástica foi parte integrante da lumen oriental transmitida ao Ocidente pelos grandes Padres da Igreja indivisa 26.
Os fortes traços comuns que unem a experiência monástica do Oriente e do Ocidente tornam-na uma ponte admirável de fraternidade, onde a unidade vivida resplandece até mais do que se pode manifestar no diálogo entre as Igrejas.
Entre Palavra e Eucaristia
10. O monaquismo revela de maneira particular que a vida está suspensa entre dois vértices: a Palavra e a Eucaristia. Isto significa que ele é sempre, inclusive nas suas formas eremíticas, resposta pessoal a uma chamada individual e simultaneamente acontecimento eclesial e comunitário.
A palavra de Deus é o ponto de partida do monge: uma Palavra que chama, que convida, que pessoalmente interpela, como aconteceu com os Apóstolos. Quando uma pessoa é atingida pela Palavra, nasce a obediência, isto é, a escuta que muda a vida. Diariamente o monge alimenta-se com o pão da Palavra. Privado dele, é como se estivesse morto, e não tem mais nada para comunicar aos irmãos, porque a Palavra é Cristo com quem é chamado a conformar-se.
Mesmo quando canta com os seus irmãos a oração que santifica o tempo, ele continua a sua assimilação da Palavra. A riquíssima hinografia litúrgica, da qual justamente se sentem orgulhosas todas as Igrejas do Oriente cristão, não é senão a continuação da Palavra lida, compreendida, assimilada e finalmente cantada: aqueles hinos são em grande parte paráfrases sublimes do texto bíblico, filtradas e personalizadas através da experiência do indivíduo e da comunidade.
Perante o abismo da misericórdia divina, ao monge não resta senão proclamar a consciência da própria pobreza radical, que imediatamente se torna invocação e grito de júbilo por uma salvação ainda mais generosa porque inesperada no abismo da própria miséria 27. Eis porque a invocação de perdão e a glorificação de Deus constituem a substância de grande parte da oração litúrgica. O cristão vive imerso no assombro deste paradoxo, o último de uma série infinita, toda ela enobrecida de reconhecimento na linguagem da liturgia: o Imenso torna-se limite; uma Virgem dá à luz; através da morte, Aquele que é a vida vence a morte para sempre; no alto dos Céus, um corpo humano está sentado à direita do Pai.
No apogeu desta experiência orante, está a Eucaristia, o outro vértice ligado indissoluvelmente à Palavra, enquanto lugar no qual a Palavra se faz Carne e Sangue, experiência celeste onde ela volta a ser acontecimento.
Na Eucaristia, manifesta-se a natureza profunda da Igreja, comunidade dos convocados à sinapse para celebrar o dom d'Aquele que é oferente e oferta: eles, participando nos Santos Mistérios, tornam-se «consanguíneos» 28 de Cristo, antecipando a experiência da divinização no laço, já inseparável, que, em Cristo, liga divindade e humanidade.
Mas a Eucaristia é também aquilo que antecipa a pertença de homens e coisas à Jerusalém celeste. Revela assim cabalmente a sua natureza escatológica: como sinal vivo de tal expectativa, o monge continua e leva à plenitude na liturgia a invocação da Igreja, a Esposa que suplica o retorno do Esposo num «maranatha» repetido continuamente, não só com palavras, mas com a existência inteira.
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