<%@ Language=VBScript %> Vida de pensão no Recife - depoimento

     

Trabalhador ou estudante, que não passou por pensão no Recife, desconheceu esse lado duro e alegre da cena recifense 

CENA RECIFENSE DO PASSADO

Pensões do Recife 

 

 

       Em 1956, aos 19 anos, o autor iniciou seu contacto com a vida de pensão. Viera assumir um emprego no Banco Auxiliar do Comércio na rua 1ª de Março. A pensão era a de dona Zuquinha  na rua Nova, 155, 1º andar, onde conterrâneos seus ficavam quando vinham ao Recife.  Mas lá só ficou 15 dias, porque recebeu logo o bilhete azul no trabalho (era ruim em datilografia).  

            O emprego quente da época (falava-se muito na pensão), depois dos públicos, era trabalhar em laboratório farmacêutico. Era o sonho geral dos hóspedes. Entre estes, havia um solteirão, comerciante, das bandas da região do autor. Esse tipo celibatário, em regra com melhor condição financeira, viria a ser comum nas pensões por que passaria tempos depois.

 

Esperteza

   

             Depois disso, nessa época, o autor passou  alguns dias em pensões da rua da Praia (só para dormir), à procura de emprego ou para ingressar na Aeronáutica. Como naquele tempo o mais caro (como ainda é hoje) era a dormida,  ele bancou o esperto algumas vezes. Ao chegar ao Recife, em geral à tarde, ficava a perambular pela cidade com a bagagem na mão. Anoitecia e continuava a caminhada solitária entre os bairros de Santo Antônio e do Recife (Recife antigo, hoje), então zona de prostituição. Nesse vaivém, atravessando pontes, passava a noite inteira. Incrível como não havia perigo de assalto, furto ou violência! O raiar do dia o pegava na calçada dos Correios na avenida Guararapes. Mais ou menos às 6 horas da manhã chegava apressado à pensão para reservar e pagar uma dormida:

             -- Vai dormir agora ? – perguntavam.

             -- Não. Cheguei de viagem. Vou resolver um problema às 7 horas na Base Aérea. Só vou dormir à noite. Estou só reservando a dormida – respondia.

            De posse da chave do quarto, quando o atendente saía, metia-se na cama e dormia até meio-dia. Depois, almoçava caldo de cana e, disposto, enfrentava o batente.  O artifício lhe garantia duas dormidas (uma de dia e outra à noite) pelo preço de uma. Ginástica de quem, fora de casa, estava com muito pouco dinheiro!  

           Quem hoje, neste clima de insegurança, atravessaria a pé, só e à noite uma simples ponte do Recife, depois das 21 horas, sem perigo de assalto?

 

Aventura

            Num anoitecer, nesse tempo, sem resistir ao sono e sem ter reservado dormida na pensão, aproximou-se de um camelô que vendia meias perto do Mercado de São José, a fim de ganhar a confiança dele e poder dormir no local onde ele dormia. O camelô disse logo: 
           
-- Poder você pode dormir lá. O negócio é o velho que toma conta não ver. Se ele ver, vai botar você pra fora. Mas eu acho que dá. Vamos!
           Ao chegar lá, um sobrado na rua Direita, o escuro da escada ajudou-o a livrar-se dos olhos do velho e a chegar ao sótão, acima do terceiro andar. Ali a escuridão era maior.  Dormiu no chão. Deitado, pegava no telhado. No outro dia cedinho, com ginástica maior, deixou o sobrado, satisfeito porque ficara com alguma grana até o retorno para casa, à tarde. 
          Hoje, neste quadro de violência, quem se arriscaria a uma aventura dessa?  

  

Sobrados

   

            As pensões, de um modo geral, ficavam em velhos sobrados,  em algum andar ou em todos eles. Ir a uma delas era, quase sempre, enfrentar a subida de uma longa escada de madeira. Cobravam mais pelo andar. O primeiro era o melhor deles. No segundo, podia faltar alguma coisa. Daí por diante, a coisa piorava. Havia até quem quisesse morar no sótão (quando havia), a preços mais baixos e em condições muito precárias.

Reencontro

 

            Somente em 1965, o autor voltaria à vida de pensão, na rua Princesa Isabel, esquina com rua da Saudade, onde já moravam alguns estudantes de sua terra. Era só para dormir. Almoçava no restaurante do Banco do Brasil, agência centro, onde trabalhava. Os outros hóspedes, em sua maioria, eram xepeiros da Casa dos Estudantes, de onde ele também foi xepeiro por algum tempo. Nessa pensão ficou pouco tempo. Mudou-se para outra completa (comida e dormida) na rua da União, perto da Câmara dos Deputados. Mas só agüentou um mês: a comida era pouca e ruim. Ficava-se com raiva e com fome depois de cada refeição. Saiu para outra (só dormida) na rua Princesa Isabel, esquina com rua da Aurora, onde passou pouco tempo também.

           Foi parar, dessa vez, na pensão de seu Torres (era raro um homem na chefia de pensão), na rua da Aurora, 379, 3º andar em frente ao rio Capibaribe, apenas para dormir, onde hoje funciona o Museu da Imagem e do Som (Mispe), referido em Pernambuco.com -Turismo. Ficou lá de um a dois anos. A pensão, com três andares, atendia com e sem refeições. A maioria dos hóspedes comia lá.  No térreo funcionou durante muito tempo o Restaurante Ofir, considerado de luxo, onde os  habitantes do 379 sonhavam almoçar ou jantar algum dia.

 

Ao lado, rua da Aurora, em frente ao rio Capibaribe. Da esquerda para a direita, o segundo sobrado é o de nº 379, onde nos anos 60 funcionava a pensão de seu Torres. Hoje é o Museu da Imagem e do Som (Mispe). Havia outras pensões ao longo da extensa rua.

 

Foto extraída da página Recife e suas Atrações

 

 

Hóspedes

 

           Os hóspedes eram, em geral, comerciários, bancários e estudantes. Os que podiam bancavam dois ovos fritos no almoço, melhorando a bóia. Os que tinham com freqüência esse gasto extra eram tidos como ricos. Comida de pensão, como já foi dito, era pouca e ruim. Para o pouco cobrado, mesmo para a época, não podiam oferecer coisa melhor.

 

Golpe e repressão

           
O após golpe militar de 1964 pegou-o em atividade na Carteira Agrícola do Banco do Brasil, agência de Vitória de Santo Antão/PE, município foco das Ligas Camponesas, um dos motivos da "revolução". Os bancários, brincando, perguntavam à matutada que aparecia no banco:
            -- O senhor é camponês?
            -- Deus me livre! Já me chamaram pra ser, mas eu nunca quis ser -- respondia na bucha o indagado, ao entender camponês como filiado a Liga Camponesa.
            Meses depois, já em 1965, em plena repressão da ditadura militar, morando na pensão de seu Torres na rua da Aurora, 379,  vizinha à Secretaria de Segurança, o autor via chegar todo dia caminhões lotados de camponeses para entrarem em cana e, talvez, noutros paus-de-arara. Na prática, devem ter prendido todos os associados das Ligas Camponesas. Hoje, pensa ele, atitude como essa seria inviável. Faltaria cadeia para prender os milhões do MST, sucessores dos camponeses de 1964. Estes poucos  viraram milhões que serão quantos daqui a 50 anos, se não fizerem a reforma agrária?  -- indaga 

 

Elegância

 

            Boa parte dos hóspedes procurava andar nos trinques nos dias de folga. Roupa completa (com paletó e gravata) para ir ao cine São Luiz (quando havia dinheiro), ao passeio do Quem-me-quer ou da Rua Nova. Isso era básico para eles, mesmo à custa de uma barriga meio vazia (só com a comida da pensão) e de um bolso liso. Ditos pontos eram na época os locais chiques do Recife para encontros e paqueras da juventude. Havia também, embora em menor número, os “pensionatos”, só para mulheres.

 

Endividamento

  

            Certas donas de pensão induziam os hóspedes ao endividamento para tê-los à mão. Como faziam? Hóspede novo dirigia-se a elas para pagar o devido e estas diziam, mais ou menos: “Precisa não! Deixe pra pagar depois. Você começou a trabalhar agora e tem muita roupa pra comprar, muita coisa pra ajeitar”. O devedor aceitava de cara a proposta. No segundo ou no terceiro mês, a mesma história. Daí por diante, pau! O atrasado ficava pendurado. 

            Os hóspedes, geralmente, falavam baixinho na hora da refeição, com medo de reclamar desta. A dona da pensão, ao saber de qualquer queixa, dizia na bucha: “Aqui todos me devem de dois a três meses. Quem tiver achando ruim, pague o que deve e saia” Como todos ou quase todos deviam, ninguém saía, em regra. O mercado cativo era mantido com a força de dívidas.

 

Festas

  

           Havia um grupo na pensão de seu Torres, que não perdia as melhores festas em residências em fins de semana nos subúrbios. Bastava consultar colunas sociais de jornais para escolher, entre as anunciadas, a festa mais animada, de casamento em geral  Depois, era só meter a beca (paletó e gravata).  Chegados ao local, usavam a hora certa para entrarem como convidados. Lá dentro, ficavam a uma mesa, onde eram bem servidos com bebidas e comidas. Até danças não faltavam, por vezes. Preferiam as festas de bodas, pois nela tudo corria bem: o noivo ficava a pensar que eles eram convidados da noiva, e esta os julgava convivas do noivo. Viviam uma noite de gala, com tudo de graça, como finos convidados. Se não conheciam os donos da festa, isso pouco importava. O importante era divertir-se muito e passar bem, mesmo com o bolso liso ou quase liso. Era um refrigério, sem dúvida, para quem vivia a dureza da vida de pensão. Esse "golpe social" devia ser feito também por gente de outras pensões.

 

De escada em escada

 

           Havia quem deixasse a pensão por absoluta falta de pagamento. Expulso, arrumava os troços e saía, de mala na mão, a procurar outra escada. De calote em calote, subia e descia muitas escadas. Outros eram expulsos porque davam uma de furão. Chegavam de mansinho e ficavam a dormir em quartos de conhecidos, mesmo no chão. Tinham assim a dormida garantida até o dia em que a dona da pensão sabia. Depois, reiniciavam a romaria por novas escadas.

 

Visitantes

 

           Outros se organizavam nos domingos para visitar ex-colegas ou conhecidos que haviam casado. Quatro ou cinco levavam alguma bebida e garantiam, na casa do amigo, um almoço melhor, aliviando a barriga. Quem não gostava disso era a patroa do visitado, com o serviço duplicado ou triplicado.

 

Canário-de-pensão

           Havia também as pensões próximas à rodoviária ou à estação do trem. De preço acessível, usavam-nas mais motoristas e outros em trânsito para dormir uma noite e viajar no dia seguinte, de madrugada ou cedinho. O despertador era o "canário-de-pensão", empregado da casa, rapaz sonolento, a cochilar o tempo todo, a anotar a hora de chamar cada hóspede. Com um despertador de verdade a seu lado, naturalmente. Por várias vezes, o autor usou essas pensões no interior (em Caruaru) e no Recife. Aliás, quem não as usou? Hoje elas devem existir ainda, talvez com a mesma figura curiosa do canário-de-pensão.


Casa dos Estudantes


           Semelhante a uma grande pensão quanto ao convívio, tinha a  vantagem de oferecer comida e hospedagem melhores e a custo zero. Destinada a estudantes pobres do interior, era mantida pelo governo estadual. Ainda existe no presente, mas não é nem a sombra do que foi no passado. A entrada na Casa, como interno ou simples xepeiro, era muito cobiçada. Um pistolão político podia resolver logo a parada. De qualquer forma, ela beneficiou muitos estudantes pobres do interior, que só saíam de lá quando se formavam. Muita gente de destaque hoje na profissão passou pela Casa dos Estudantes.

 

Sonho da "república"

 

           Sair da pensão e ir morar numa "república", em geral num apartamento, era o sonho distante de uns. Era coisa muito difícil,  pois precisava ter um capital inicial para instalação, além de arranjar um fiador para alugar um imóvel, ou pagar dois ou três meses de aluguel adiantado. Para um monte de endividados, isso era, de fato, tarefa impossível que, na prática, não passava do mundo da fantasia, pelo menos enquanto a situação financeira de apertura não melhorasse. 

 

União

 

          Apesar da vida difícil em pensão, seus hóspedes formavam uma grande e unida família, com muita alegria e brincadeiras. Era uma vida dura e feliz. Muito rara mesmo era uma simples discussão entre eles. Parece que a dureza da vida  os unia cada vez mais. Essas muitas pensões espalhadas pelo Recife, que tiveram destaque na luta de estudantes e trabalhadores pobres vindos do interior e de outras regiões, sumiram em grande parte ou adquiriram talvez, novos formatos nestes tempos atuais.  


Xepeiros - estudantes que apenas comiam na Casa dos Estudantes, onde havia também os internos que moravam lá, com cama e mesa.

Quem-me-quer - passeio noturno de moças e casais de namorados ao longo do cais do Capibaribe, sobretudo nas proximidades do cine São Luiz e em fins de semana, com a maioria dos rapazes fixada no cais, a conversar, paquerando as garotas. Centro de papos, namoros e encontros. O nome dizia bem a intenção desse evento espontâneo dos anos 50/60, que os novos tempos acabaram.

 

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Página atualizada em 15/04/2004