Bruxismo     


Quando eu entrei com ela, o casal de velhos estava na sala e ela falou pai-e-mãe-Geraldo, Geraldo-pai-e-mãe. Foi melhor assim, pois não cheguei de namorado e nem de amigo, que amigo eu não era mesmo. Fiquei só Geraldo. O velho acenou com a cabeça e não disse nada. A tevê estava ligada na novela das seis, e ele continuou assistindo, sem sorrir. A velhinha estava com um pincel grande e fininho na mão, pintando um prato branco de porcelana colocado sobre duas folhas de jornal abertas, em cima do tampo de vidro da mesa da Sala. A velha largou o pincel bem devagar sobre o jornal, ao lado do prato, olhou para mim e disse eu tinha um sobrinho chamado Geraldo que morreu na construção da Ponte, bateu com a cabeça no vão central, o coitadinho. Ele era metido em política. Eu ensaiei uma cara de tristeza e ela acrescentou que foi há vinte anos. Eu só disse pois é. Ela, a filha não a mãe, me perguntou se eu queria beber alguma coisa e pensei em refrigerante mas sem querer eu disse coca-cola e ela disse que coca-cola achava que não tinha e a velha disse que nesta casa podemos até beber querosene, mas coca-cola aqui não entra, porque faz mal para os ossos. Eu pedi desculpas e disse que podia ser qualquer coisa, na verdade eu tinha me enganado, podia ser até água. Ela disse então trago soda e eu respondi que soda estava mais do que bom. Ela foi na cozinha e me deixou sozinho com os velhos. Eu fiquei ali parado, e se tivesse chapéu eu acho que ficaria apertando o chapéu com as mãos, mas hoje em dia ninguém mais usa chapéu, nem eu. E o velho falou, ainda sem me olhar, olha aquela vagabunda na tevê, agora fica ali, na novela das seis, com o vestido abotoado até o pescoço, séria, e ontem de noite estava nua na novela das oito. A velhota pintava o prato, alheia ao mundo, perguntando a si mesma, será que o Geraldo sofreu? Aí Ela veio lá da cozinha com um copo de soda limonada e um pratinho com dois ou três biscoitos recheados e disse vamos lá no meu quarto que a gente fica mais a vontade. Quando segui atrás dela pelo corredorzinho eu notei que o velho desviou rapidamente os olhos da tela da tevê e olhou para a velha com reprovação, esperando alguma providência da mãe pelo fato da filha estar levando o estranho (eu) para o quarto, mas a velha apenas olhou para ele e disse o nome dele é Geraldo, como o filho da Tânia, aquele comunista sem-vergonha que a Polícia jogou da Ponte. Nós entramos no quarto e ela fechou a porta e eu perguntei se não ficava chato a gente ficar trancados lá dentro e ela disse não, eles estão acostumados a verem eu trazer minhas amigas aqui e afinal de contas eu já estou com quase quarenta e não tem sentido eles me controlarem desse jeito. Na hora eu pensei que eu não sou amiga, que é diferente, mas resolvi não dizer nada. Ela fechou a porta e sentou na cama, cruzando as pernas, em posição de lótus e quando cruzou eu pude ver rapidamente que a calcinha dela era azul, pois a saia não era muito comprida. Senta aí, Ela me disse, e eu sentei na ponta da cama. À direita de quem entra fica a cama e na frente da cama tem um cabide cheio de coisas penduradas, chapéu de praia, bolsa e echarpe. No centro do quarto, de frente para a cama e antes da janela que fica à esquerda, uma cômoda larga, de umas quatro gavêtas. Sobre a cômoda, uma porção de bonequinhos de duendes, bruxas, gnomos, elefantes, budas, anjos, tudo em miniatura. Também uns dois ou três vidros de perfume pela metade. Umas coisas parecendo uns castiçaizinhos de cobre, com incenso dentro, uns tocos de incenso apagado, meio usados. Nas paredes, uma foto de dois meninos sentados numa bicicleta vermelha. São meus filhos, ela disse, que hoje estão na casa do pai. Eu disse legal, e mais nada, pois não me deu vontade de dizer mais nada, tenho pavor de criança. Ela pegou um isqueiro de plástico cor-de-rosa dentro da gavetinha ao lado da cama e acendeu um dos incensos, o maiorzinho. A fumacinha começou a subir branquinha, em espiral, e ela me perguntou, você sente? Sente o que, eu perguntei. As vibrações, ela disse. Eu respondi que achava que sim. Sim eu falei, agora eu sinto bem direitinho as vibrações. Ótimo, ela me disse, porque agora eu vou jogar o tarô para você, mas é preciso que você acredite, você acredita? Eu disse que sim, mas na hora só pensei na calcinha azul que apareceu na hora em que Ela cruzou as pernas. Então ela se levantou e agachou ao meu lado e quando ela ficou mais perto eu pude sentir o cheirinho de xampú de maçã verde que saiu do cabelo dela e eu pensei em há quanto tempo eu estou sem mulher e que o cheiro de xampú numa nuca de mulher, recém saída do banho, tem o seu valor. Ela retirou rapidamente uma mala enorme e disforme que estava embaixo da cama e, ao puxá-la, derrubou dois anjinhos de gêsso meio desbotados, empoeirados. São o Querubim e o Serafim, ela me disse, foi a Cloé quem me deu, na festinha de encerramento do Curso de Aproveitamento de Energia que eu e ela fizemos. Eu sorrio e digo muito prazer, olhando para os bonequinhos. Eles terem caído foi um sinal, ela diz, séria, olhando nos meus olhos e eu notei que a lingua dela é bem fina e molhadinha. Acho que ela notou e ajeitou o cabelo para trás da orelha. Então ela sentou mais perto, abriu o zíper da mala e tirou lá de dentro um baralho grande, embrulhado num lenço azul de seda. Ela me perguntou se eu sei quem são os Arcanos e eu disse que não, não sei quem foram, pensando que fossem alguns santos, tipo Cosme e Damião. Você me desculpe, eu disse, mas não entendo nada de bruxismo. Ela sorriu e disse isso aqui não é coisa de bruxas, seu bobão, e bruxismo é outra coisa, é aquela doença que têm as pessoas que rangem os dentes dormindo. Eu fiquei ainda mais encabulado e perguntei viu como eu sou meio burro? Ela ficou séria e disse nããão, você é um cara muito esperto. Ela esticou as mãos e olhando para as minhas disse então me dá aqui e eu dei as mãos para ela. As mãos dela estavam quentinhas e depois, quando sai, cheirei as minhas próprias mãos e havia nelas um perfume de creme hidratante. As unhas da mão dela estavam pintadas com esmalte incolor, igualzinho às dos pés e quando ela se ajeitou melhor, cruzou a perna e esbarrou com aquele pé macio na minha canela, justamente na parte onde a meia não cobria e o contato da pele dela com a minha me fez ficar com o pau duro feito uma pedra e eu tentei disfarçar. Então ela me pediu para cortar o baralho e foi espalhando as cartas uma a uma sobre a cama. Ela me perguntou você está vendo aqui? Eu balancei a cabeça que sim, então ela me disse no seu emprego tem uma pessoa muito negativa que não gosta de você e que quer o seu mal. Eu confirmei tem sim, esse cara tem inveja de mim. Ela perguntou se era um cara de bigode e eu respondi que sim, mas na verdade tinha pensado em outro sem bigode, e então ela me disse você abre o olho com o sujeito de bigode porque ele quer o seu lugar. Eu quis agradá-la e disse a ela você acerta tudo, hein? Ela respondeu não sou eu, é o tarô, eu só vejo. A minha bexiga estava cheia, mas eu não queria interromper e ela olhou uma carta e sorriu. Disse aqui tem uma mulher que está chegando perto de você, é uma mulher boa e misteriosa, que tem coisas muita legais guardadas no coração e que notou você. Eu disse puxa, que bom. Ela disse você tem uma energia boa e eu naquela hora pensava se a porta do banheiro era à direita ou à esquerda e lá fora o velho bateu uma das portas e disse em voz alta me dá aqui o Jornal do Brasil que eu vou ler e depois vou tomar o meu banho. Ela perguntou se eu estava nervoso e eu não tive coragem de dizer que queria era mijar, então disse eu me preocupo que você veja aí que eu vou morrer atropelado e ela disse calma, você vai viver muito e tem muita coisa boa para passar neste mundo. Fiquei preocupado, com medo que ela visse o monte de contas atrasadas que eu tinha e pensei vou ter de achar um bar aí na rua para ir ao banheiro e disse a ela olha, eu moro longe e sozinho, preciso ir. Em cima da cômoda o Querubim e o Serafim sorriam para mim e eu fiquei todo arrepiado. Palavra. Nunca mais fui lá, mas depois disso a gente saiu várias vezes. Com certas coisas não se brinca.


Cuervo^¤^     Maio/1999


                                
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