NAMO BUDDHAYA - NAMO DHARMAYA - NAMO SANGHAYA !
callceb@ig.com.br

SOCIAL PHILOSOPHY OF EARLY BUDDHISM
FILOSOFIA SOCIAL DO BUDISMO PRIMITIVO

Originalmente
Prof. LILY DE SILVA, Sri Lanka
Traduzido do "THE YOUNG BUDDHIST" 1986, págs.79 a 83, The Singapore Buddha-Yana Organisation.
A Ordem de Monjas Amizade Argumentos Morais
Atitude para com as Mulheres O Lugar da Mulher O Papel da Mulher
Os Cinco Preceitos Os  Costumes dos Vajjias Países Budistas
Perspectivas Economicas Sigalovada Sutta Símbolos de Status
Sistema de Castas

Alguns sociólogos tem criticado o budismo como sendo anti-social e apolítico. Mas qualquer um que esteja familiarizado com o cânone em páli sabe que uma grande quantidade de Sutras (ou "Suttas", discursos ou sermões do Buddha) são devotados à questão de problemas sociais e políticos. É verdade que o Buddha não empregou suas energias para fazer uma reforma social (externa), como nós entendemos, já que sua missão de vida almejava algo mais importante e ulterior. Descansando 2 horas por dia, quando muito, ele pregou incansavelmente o Dharma (lei) por 45 anos pela nobre causa de guiar, quem o desejasse, para além das misérias da vida fenomenal. Porém não há dúvida de que podemos ter um quadro claro da filosofia social do budismo primitivo a partir dos Sutras que lidam com problemas sociais. 

OS CINCO PRECEITOS

É aceita no budismo a verdade universal de que todos os seres viventes desejam a felicidade e procuram evitar o sofrimento. Tendo isto como ponto focal, o budismo tenta criar um ambiente social mais propício à realização da felicidade humana. Toda vida é sagrada e a vida humana é muito valorosa, já que é a grande oportunidade para o desenvolvimento do potencial ou dimensão espiritual. comparando com as inúmeras formas de vida existentes no planeta, chega-se à conclusão de que a vida humana é mais rara, e mais nobre, devido a suas possibilidades. O budismo reconhece o valor dos direitos humanos básicos e os cinco preceitos (panca sila) apresentados a todos os adeptos é o mecanismo pelo qual esses direitos são mantidos e reforçados. O direito à vida é o mais básico dos direitos humanos, e com o devido reconhecimento do fato de que a vida é o bem mais caro e precioso, mesmo para a mais ínfima criatura, o primeiro preceito. 

Predica a aceitação voluntária de abstenção de tirar a vida de qualquer ser vivo. 

O direito à propriedade é o direito humano básico seguinte. E a esse respeito, paralelamente, o budismo apresenta o preceito de abstenção de tomar para nós o que não nos pertence ou não nos foi dado. 

Toda pessoa tem o direito de escolher seu parceiro e constituir família, e o infringimento na privacidade deste relacionamento é tratado pelo terceiro preceito (abster-se de maus relacionamentos sexuais). O quarto preceito, que requer abstenção das maneiras errôneas de falar ou comunicar, defende o direito do homem de ter justiça na sociedade e rejeitar o que é falso ou injusto. O quinto preceito lida com a abstenção de todas as formas de intoxicantes - por extensão, do álcool, drogas, etc. A violação deste preceito acarreta a violação de todos os outros. Aderir a este preceito significa proteger a saúde física e mental de todos e coletivamente, e preserva a harmonia na família e na sociedade. 


SISTEMA DE CASTAS

O budismo declara a igualdade dos homens pelo nascimento. Se um homem deve levar uma vida digna e feliz, deverá existir um ambiente social adequado, que promova esta dignidade e felicidade. Um sistema social que promova a dignidade de um grupo e a inferioridade de um outro grupo com base no nascimento, levará não somente à exploração do homem pelo homem, mas também à distorção de valores, degeneração espiritual, e miséria. 

Durante os tempos do Buddha, a sociedade hindu era dividida em 4 castas principais: BRAHMINS, a casta sacerdotal; KSATRIYAS, a casta guerreira e governante; os VAISYAS, a casta dos que viviam de trabalhos manuais, artesãos, agricultura e comércio; e SUDRAS, constituída pelos sem-casta ("intocáveis"), que tinham de sobreviver servindo às outras 3 castas. Esta estrutura tinha sanção religiosa textual, como no Purushasutra do Rigveda Bramânico, que dizia que Brahma (Deus) criou os Brahmins de sua boca, os Ksatriyas de seus braços, os Vaisyas de suas coxas, e os Sudras de seus pés! O Buddha foi totalmente contra tudo isto e provou a inanidade de tão vãs presunções estáticas, em vários de seus sermões. Os Assalayanasutta, Madhurasutta, Ambatthasutta, Vasalasutta e Vasetthasutta são os Sutras mais importantes a esse respeito. se nós estudarmos os argumentos que o Buddha apresentou ao juízo e razão dos homens para abrirem os olhos para a vã discriminação social (de casta), nós teremos uma rápida visão do interesse que o Buddha tinha à respeito desse problema social, socorrendo a sociedade das falsas noções e prejuízos que delas advém. 

Buddha atacou a raiz da hierarquia de castas descartando a teoria da criação bramânica. No lugar, ele apresentou um ponto de vista baseado no princípio de causalidade, e isto é descrito na forma de lenda no Aggnnasutta do Dighanikaya. A sociedade evoluiu de um princípio bem simples. No alvorecer da civilização, o homem vivia recolhendo alimento dos campos, os quais não pertenciam a ninguém. A noção de posse da terra não havia ainda aparecido. Conforme as idades passaram, o homem passou a acumular ou guardar alimento, e gradualmente surgiu a falta de alimentos para outros (porque uns guardavam mais do que outros). A terra foi então dividida entre famílias pelo consenso público. Aconteceu que alguns eram mais gananciosos do que outros, e começaram a roubar do campo de seus vizinhos. Quando questionados, eles mentiam. Nasceu assim o crime em sociedade. A fim de manter a lei e ordem em sociedade, pessoas foram eleitas entre eles mesmos, pela qualidade do caráter, integridade, personalidade e popularidade. A estes eles delegaram autoridade para manter a ordem e punir os transgressores. como ele tinha sido eleito pelo povo, ele foi chamado "O Grande Eleito" (Mahasammata). Como ele era senhor dos campos, ele foi chamado ksatriya ou guerreiro. Como ele provia as pessoas com justiça, ele foi chamado "Rajá" ou Rei. Foi assim o aparecimento da classe governante, e certamente não tem nenhuma origem ou sanção divina. Um outro grupo de pessoas devotavam-se a expulsar o mal por meio de práticas "religiosas" (mágicas), e eram conhecidas como Brahmins. Aqueles engajados em diversas profissões e constituíam famílias vieram a ser chamados de Vaisyas. Alguns se dedicavam à caça, e como era uma atividade considerada "baixa", vieram a ser chamados de Sudras. Portanto, a divisão quádrupla da sociedade indiana veio a ser devido a um processo de evolução social, e não tem nada a ver com a criação divina. 

Buddha também "lembrou" o fato de que as mulheres Brahmins passavam pelo processo de gestação, parto e lactação, e que era ignorância acreditar que os Brahmins nasciam da boca do deus Brahma. E embora haja muitas espécies de plantas e animais, não há a mesma diferenciação entre seres humanos. A humanidade toda pertence a uma única espécie, e as discriminações de castas são conceitos criados pelo homem, sem nenhum valor intrínseco. Como alguém poderia determinar a casta de uma criança nascida de um casamento entre castas? Não há solução. Logo, Buddha usou argumentos de biologia para desmantelar as pretensões do separatismo bramânico. 


SÍMBOLOS DE STATUS

Existem argumentos baseados em atividades ocupacionais. Como meio de vida, as pessoas se engajam em diversas atividades. Aqueles envoltos com agricultura são cultivadores, com a troca de mercadorias são mercadores; com diversas artes e trabalhos manuais são artesãos. Estas são categorias baseadas somente no tipo de atividade, e não determinada no nascimento. 

No seu tempo, Buddha explicou que existiam dois países, Yona e Kamboja, onde só haviam duas classes sociais, a saber: senhores e servos. Aqueles que não possuíam riquezas e tinham de servir outros para obter sustento, eram chamados de "servos". Aqueles que possuíam riquezas e podiam comandar o serviço de outros eram chamados de "senhores". Havia mobilidade entre estas duas classes. Pela perda da riqueza, o senhor tornava-se um servo. E um servo tornava-se senhor pelo aquisição de riquezas. Portanto, fatores econômicos decidiam o status de uma pessoa em alguns países, e não o nascimento. E mais: se "Deus" fosse o criador de uma sociedade dividida em quatro castas, ele só teria criado a sociedade indiana. Como explicar então a existência de outras sociedades que empregavam outros símbolos de status? 

Um assassino é um assassino a despeito de sua casta, bem como um ladrão é um ladrão. A casta não absolve um homem de seu crime, e a lei requer que o criminoso seja punido de acordo com o que fez, seja qual for a sua ascendência social. Entretanto, houveram períodos de grande supremacia bramânica na índia, quando eles desviaram a aplicação da lei sobre seus próprios crimes, enfatizando-a para os outros vigorosamente, especialmente para os Sudras. 

Em uma explanação, Buddha dá o exemplo de dois filhos de um Brahmin, um deles instruído e o outro não. Ele pergunta quais dos dois é mais digno de respeito. Os Brahmins respondem que é o mais instruído. Mas se o instruído é mau e imoral, e o não instruído é gentil e virtuoso, Buddha pergunta qual dos dois é mais digno. Os Brahmins respondem que é o gentil e virtuoso, embora não instruído. Buddha então contesta os Brahmins, dizendo que eles mesmos não são consistentes com sua atitude de superioridade de casta, já que eles mesmos admitiam que educação e virtude são os melhores critérios para se julgar um homem. 


ARGUMENTOS MORAIS

O Buddha também traz à tona argumentos morais. Se um homem é imoral, é de consenso que ele terá o retorno de seus atos, a despeito de seu status social. De forma análoga, um bom homem será recompensado, a despeito de seu status social. Observa-se também que casta não constitui barreira à realização espiritual. Não somente um Brahmin, mas qualquer um que se esforce pode cultivar qualidades sublimes tais como Metta, Karuna, Mudita e Upekkha, traduzidas como, respectivamente, Amor, Compaixão, Alegria com o bem estar alheio, e Equanimidade. A pessoa pode desenvolver a meditação e pôr seu sofrimento sob controle, sem distinção de classe. 

Um argumento escatológico interessante também é citado no Sutra já mencionado. Quando o ser humano é concebido no ventre da mãe, como poderíamos saber a casta daquela consciência que procura o renascimento? Como isto é um conceito que não se pode aplicar, é inútil reconhecer a superioridade ou inferioridade de um ser humano baseando-se no nascimento. 

Ocasionalmente, Buddha utilizava-se das lendas bramânicas tradicionais para mostrar que algumas famílias de brâmanes eram inferiores a alguns Kshatryas. Assim, no Ambatthasutta, uma lenda corrente na época é citada quando o Brahmin Ambattha utilizava maneiras grosseiras de agir e falar com o Buddha. A tradição dizia que Ambattha descendia do sábio Kanhayana, que era, por sua vez, filho de uma mulher escrava numa família Kshatrya. Buddha utilizou-se desta lenda meramente como expediente para remover o orgulho da mente de Ambattha, e não para provar qualquer superioridade da casta Kshatrya sobre a dos Brahmins. 

Portanto, podemos ver que o Buddha utilizou-se de vários argumentos, na tentativa de salvar a sociedade de uma instituição social fútil e corrompida. Ele ensinou que o nascimento não decide a superioridade ou inferioridade de um homem, mas sim as qualidades éticas de seus atos. No Vasalasutta, o Buddha enumera uma lista detalhada de atos corrompidos, e ensinou que o verdadeiro "sem casta" era aquele envolvido em tais ações. Por outro lado, o verdadeiro "Brahmin"(brâmane) era aquele investido das nobres qualidades (Paramitas), que está além de sucumbir às fraquezas humanas. O Buddha não reconhecia nenhuma distinção de castas dentro da comunidade de monges. Assim como o rio perde sua identidade ao desembocar no oceano, aquele que entrava na comunidade monástica perdia seu status social ou casta. Upali era um barbeiro que pertencia a uma casta considerada baixa na sociedade indiana. Quando ele procurou a ordenação monástica, junto com diversos príncipes do clã dos Sakyas (no qual o Buddha havia nascido), o Buddha ordenou monge primeiro a Upali, para ensinar humildade aos da estirpe nobre. Sendo ordenado primeiro, os outros deveriam respeitar-lhe dentro da ordem monástica. Upali tornou-se proeminente devido à sua prática disciplinar, e, no primeiro concílio budista, foi ele o escolhido para expor o vinaya pitaka. Sunita é outro exemplo de ausência de discriminação de casta dentro da comunidade budista. Vindo de uma posição escrava, antes de sua ordenação, tornou-se um dos Arahants. 


SIGALOVADA SUTTA

Tendo salvaguardado os direitos humanos básicos, como também exposto a descoberto a insensatez da estratificação social da sociedade bramânica indiana, o Buddha expôs diversos ensinamentos que lançariam a infra-estrutura social, para construir uma sociedade que pudesse promover a felicidade de todos os seus membros; estabelecendo a harmonia entre homem e natureza, agora de acordo com seu próprio sistema de valores. A estratégia para atingir este objetivo foi através da organização da vida familiar. O Sigalovada Sutta os relacionamentos interpessoais entre os membros de uma família e da família com a sociedade, dando o devido respeito e consideração pela personalidade de cada um. De cada membro de uma família espera-se que cumpra suas tarefas e deveres para com os outros, num espírito de amor genuíno. Quando cada um age desta forma, os direitos de todos os outros são automaticamente preservados. Por exemplo: quando um marido realiza seus deveres para com sua esposa, os direitos da esposa são preservados e preenchidos, e vice-versa. nenhuma palavra é dita à respeito de "direitos" porque, tivessem sido os direitos enfatizados, isto levaria à competição e contenda, cada um achando que merece mais do que o outro (como em nossa sociedade ocidental atual). Logo, ao invés disso, por um método perifrásico sutil, o Buddha fez com que o comprometimento com os deveres salvaguardasse os direitos de cada um, como também salvaguardasse a cooperação e harmonia entre os membros de uma mesma família. Se praticado, este sistema resolve problemas com tal delicadeza e sensibilidade, que na literatura em língua páli dos Sutras Budistas não houve necessidade de palavras ou ensinamentos separados para o problema dos direitos individuais. O Sutta discute em detalhes os deveres recíprocos entre pais e filhos, professores e discípulos, marido e esposa, entre a família e amigos, a família e a ordem monástica, entre chefes e empregados. Isto ainda hoje cobre grande parte das relações sociais existentes. 

AMIZADE

Grande parte do Sutra Sigalovada é devotado à importância da amizade na vida de um indivíduo. Amizade é uma relação não biológica, nascida do interesse mútuo, do respeito, da simpatia e da boa vontade. Mas o Sutra aponta dois tipos de amigos: o Papamitta e o Kalyanamitta. O primeiro é o mau amigo, que arrasta seu associado para maus hábitos, tais como bebedeira, jogatinas, e muitos outros vícios. Tais amizades devem ser evitadas a qualquer custo. Porém, a amizade com o nobre Kalyanamitta deve ser cultivada. é o tipo de amigo que tem você no coração; não aponta seus erros em público, mas privativamente; está a seu lado na adversidade; não divulga seus segredos; e fala bem de você na sua ausência. Tal amizade é fonte de grande força e conforto para ambas as partes. A atitude amigável pode ainda ser irradiada para todas as pessoas na sociedade, mesmo que tal amizade não seja cultivada entre desconhecidos. Esta atitude amigável universal é denotada pela palavra páli Metta. O budismo recomenda exaustivamente a prática de Metta como uma forma de meditação, que ajuda a cultivar a atitude amigável para todos. Isto ajuda a remover a desconfiança que existe entre pessoas desconhecidas. Metta é uma das "Brahmaviharas" ou "Qualidades Sublimes" enunciadas por Buddha. as outras três são: Karuna, Mudita e Upekkha, compaixão, alegria com o bem-estar do próximo, e equanimidade, respectivamente. Compaixão para com os necessitados, os destituídos e os fisicamente inabilitados é a emoção sublime que faz as pessoas se engajarem em atividades que aliviam a miséria alheia; diminui o amargor da sociedade e ajuda a diminuir, pelo menos psicologicamente, o abismo entre os "que tem" e os "que não tem". alegrar-se com o bem-estar alheio ou "alegria simpática", é a habilidade de se regozijar com o a alegria dos outros, o que ajuda a diminuir os sentimentos de inveja e o orgulho, que são muito nocivos para uma coletividade. Equanimidade é a nobre atitude que a pessoa pode adotar em face das vicissitudes da vida, quando as coisas não vão bem e a culpa vem de encontro à pessoa, a despeito das boas intenções. Estas quatro nobres atitudes formam a infra-estrutura psicológica da sociedade que o budismo quer construir. 

O budismo advoga quatro cursos de ação para promover a harmonia e progresso social. Dana é o primeiro e significa compartilhar os recursos sejam eles riqueza, conhecimento ou trabalho. A vontade de compartilhar cria uma unidade saudável na sociedade. Piyavacana, maneira polida de falar e comunicar é outro fator de coesão. O valor de palavras gentis é sempre lembrado pelo Buddha; existem quatro falas indevidas, que são: falsidade-mentira, contar histórias (fofoca), palavras duras e cortantes e a conversa frívola, vã. Todas devem ser evitadas. Palavras verdadeiras e úteis são altamente louvadas. Mesmo um criminoso pode ser "amaciado" com palavras de cortesia. Atthacariya é a conduta proveitosa. significa o engajamento em atividade construtiva para o melhoramento de si e dos outros. o desperdício de tempo em ociosidade é criminoso, economicamente improdutivo e espiritualmente danoso. Samanattata é o reconhecimento da igualdade com o devido respeito à personalidade dos membros da sociedade. 


OS COSTUMES DOS VAJJIAS

No Mahaparinibbanasutta (d.ii.73), o Buddha louva sete costumes que o povo Vajjia mantinha, e que contribuía para o progresso social deles. eles realizavam assembléias públicas para discutir seus problemas sociais e políticos. Enquanto eles mantinham regularmente a troca de pontos de vista sobre assuntos de interesse público, mantendo as pessoas bem informadas, eles continuavam a prosperar. Eles levavam os assuntos de sua confederação em unidade e discutiam seus problemas em unidade; logo unidade é a chave do seu sucesso. Eles aderiam às suas regras costumeiras de disciplina, e nunca se descuidavam delas nem criavam outras novas. É a disciplina que faz possível a vida social; sem ela a sociedade torna-se caos pior. Existe disciplina para o controle do tráfego nas ruas, mais ainda deve haver para controlar o tráfego humano, envolvendo homens e mulheres, com ambições diversas, aspirações, pontos-de-vista, prioridades e valores diferentes; pertencentes a diferentes grupos de idade, criação, papéis sociais, responsabilidades, culturas, meios de expressão, etc, etc. Não é possível negligenciar a disciplina mesmo em nome da liberdade. Para que a sociedade seja viável e significativa até a liberdade deve se enquadrar na disciplina. além disto tudo, os Vajjias davam apoio e respeito aos seus anciãos, e consideravam um dever considerar seus conselhos. 

O valor deste costume é que as gerações mais jovens poderiam se beneficiar com a riqueza da experiência de seus idosos. Este costume, se não fazia uma ponte entre as gerações, pelo menos diminuía a separação entre elas, diminuindo o choque de gerações que ameaça a coesão familiar e que aliena os filhos de seus pais. Além disso, quando os idosos são parte da família e tem um pequeno papel, mas vital, eles vivem com um sentido de dignidade e preenchimento. Isto também é uma grande contribuição para o bem-estar social. o outro ponto que Buddha ressalta dos costumes dos Vajjias, é que eles respeitavam o sexo "frágil", e nunca violentavam sua modéstia. O valor da continência não pode ser negado, já que preserva a santidade da vida familiar. É nas famílias destruídas que a maioria dos males sociais se manifestam, tais como violência familiar, abuso de crianças, delinqüência juvenil, doenças sociais, suicídio, alcoolismo, drogas, etc, tão comuns hoje em dia. Os Vajjias não negligenciavam seus deveres religiosos tradicionais. Talvez reconhecessem que as atividades religiosas trazem um espírito de unidade e comprometimento ao redor de uma causa de valor em comum que, com o decorrer do tempo, preserva a coesão social, a boa vontade e a solidariedade. Por fim, os Vajjias davam suporte aos homens espiritualmente engajados, e faziam por onde ouvir seus conselhos vez por outra. Estes sete costumes do povo Vajjia ocupam um importante lugar na filosofia social do budismo primitivo. 


PERSPECTIVAS ECONÔMICAS

Finalmente desejo apontar uma virtude importante que o budismo procura inculcar no homem para ajudá-lo a administrar suas atividades econômicas e o relacionamento entre ele e a natureza. a capacidade de se satisfazer com o preenchimento das necessidades básicas do ser humano (Appicchata) é muito enfatizada no budismo. O contentamento (Santutthi), que está relacionado com esta capacidade, é até mesmo chamado de "A Grande Riqueza". Ênfase no cultivo desta virtude leva a uma vida simples livre das misérias da pobreza e das tensões da afluência da vida moderna. É a vida simples das pequenas indústrias, que preenchem as necessidades básicas do homem e que promove os altos ideais que o budismo exalta. Começamos a apreciar a sabedoria desta atitude quando nos conscientizamos dos perigos causados pelas grandes indústrias de hoje. A depauperação rápida dos recursos naturais não renováveis, poluição ambiental, crise do meio ambiente, mudança drástica do clima, talvez como resultado do desmatamento em larga escala, e da poluição do ar; chuva ácida que ameaça a saúde da vida vegetal e humana, etc, etc, são todos problemas modernos deste século. Não é um preço muito alto a ser pago pelo desenvolvimento e afluência? Isto está em extremo contraste com o que o Buddha nos disse sobre os objetivos econômicos corretos. Ele ensinou que o homem deveria gerar riqueza da mesma forma que as abelhas, que recolhem o pólen das flores sem destruir sua beleza nem roubar suas fragrâncias. Esta é a relação que os homens deveriam ter com a natureza. Mas o homem moderno, na sua ganância pelo conforto, luxúria e poder, violenta e explora a natureza a ponto de empobrecimento e total destruição. 


O LUGAR DA MULHER

Este ensaio não estaria completo se não mencionássemos nada sobre o papel da mulher na ótica budista. A atitude para com as mulheres mudava muito de tempos em tempos na sociedade indiana. No alvorecer do período rigvédico, as mulheres tinham um lugar de destaque na sociedade. Participavam livremente dos sacrifícios com seus maridos, e mulheres descasadas ofereciam sacrifícios sozinhas. Houveram mulheres que chegaram a atingir o mesmo nível dos sábios, conhecidas como R'sika e Brahmavadini. Algumas delas foram até compositoras dos hinos Védicos. Porém, é do próprio Rigveda que provém as bases do pensamento que com o tempo vem a solapar esta posição feminina. em um dos hinos, o deus Indra diz que as mulheres não possuem capacidade de treinar a mente e que não eram inteligentes. A liberdade feminina deteriorou drasticamente no período dos Brahmanas, comentários dos vedas, quando o sacerdote Brahmin foi elevado à categoria de mediador entre os deuses e os homens. Os sacerdotes passaram a monopolizar a realização dos sacrifícios, já que, de acordo com eles mesmos, somente a classe sacerdotal sabia realizar sacrifícios correta e eficientemente. O Satapatha Brahmana classificava a mulher no mesmo nível do Sudra, do cão e do corvo! mais além continua dizendo que a mulher não possui nem mesmo o seu corpo, e que ela não tinha direito a reclamar qualquer bem ou herança. Alguns ritos sacrificiais exigiam que as mulheres confessassem em público ter sido infiel a seu marido. 

No período dos Upanishads, a posição das mulheres melhorou consideravelmente, já que a supremacia bramânica havia se restringido. Surgiram mulheres como Gargi e Maitreyi, que tinham seus próprios círculos filosóficos de prestígio. Mas o impacto dos Upanishads não foi suficientemente forte para mudar completamente a imagem da mulher e seu valor perante a sociedade indiana, moldada como estava por séculos de supremacia bramânica.


ATITUDE PARA COM AS MULHERES

Tendo este quadro como pano de fundo, no qual o budismo surgiu, vamos nos preocupar qual era a atitude para com as mulheres, como está registrado no cânone páli. A julgar pela lenda da evolução do mundo registrada no Aggannasutta, o budismo parece oferecer igual status a ambos os sexos. De acordo com esta lenda, aqueles que habitavam o nosso planeta em eras remotíssimas, eram sexualmente indiferenciados. Eram seres criados pela mente, subsistiam alegremente e voavam pelos céus. Com o tempo, eles começaram a experimentar e consumir alimentos sólidos e a ganância desceu sobre eles. Como resultado desta degradação moral, seus corpos gradualmente se tornaram mais grosseiros e a separação dos sexos se manifestou. Logo, vemos que os sexos são iguais em origem e tem um papel complementar na perpetuação da espécie. 

No budismo, a filha tinha um lugar afetuoso na família. Não havia a preferência obsessiva por um filho, como nas famílias bramânicas, já que estes acreditavam que a felicidade de um homem no pós-morte dependia dos ritos funerários serem realizados por um filho homem... Com o advento do budismo, os ritos funerários puderam ser realizados por qualquer um, sem considerar o sexo ou parentesco. Houve vez em que o Buddha aconselhou ao Rei Pasenadi de Kosala - que estava desgostoso com o nascimentoo de uma filha - dizendo-lhe que uma filha poderia ser tão valorosa quanto um filho, especialmente se virtuosa e sábia.  


O PAPEL DA MULHER

Como esposa, a mulher era a companheira de seu marido. O casamento pregado por Buddha, é um relacionamento de amor mútuo, respeito e compreensão, fortalecidos pela realização dos deveres de um para com o outro. O Sutta Sigalovada define claramente os papéis de marido e esposa. O marido deve respeitar sua esposa; legar autoridade para ela; deve provê-la de presentes. Os deveres da mulher para com o marido compreendem o cuidado da casa e dos filhos, tratar dos criados com hospitalidade, ser fiel; cuidar dos bens da família e ser habilidosa. O casal tem outros deveres comuns, entretanto, o Sutra denota que marido e mulher são parceiros numa empresa, com responsabilidades e interesses comuns. A mulher em tal ambiente tem um papel ativo, exercendo sua autoridade e habilidade com responsabilidade e discrição. Ela não é somente respeitada como companheira, é também alguém de quem se depende, com sua contribuição única e positiva. Juntos, eles podem promover um ambiente sadio para criar filhos, contribuindo assim para a harmonia de uma sociedade. 

Como mãe, a mulher tem uma posição definitivamente reverenciada e inabalável. Os pais são como deuses para os seus filhos. Reconhecemos que a paternidade também é uma oportunidade de crescimento espiritual. Os sentimentos dos pais para com seus filhos são igualados aos quatro modos de conduta sublime aqui já citados, tais como Metta (Amor), Karuna (Compaixão), Mudita (Alegria com o bem-estar dos outros) e Upekkha (desenvolvimento da Equanimidade). 

Existe muito pouca evidência de mulheres que trabalhavam numa atividade econômica. Mulheres pobres trabalharam como serventes e há referências de mulheres trabalhando nos campos. Parece que mulheres de posses não tiveram outras atividades que não o trabalho dentro de casa. Encontramos uma referência de uma mulher acrobata e outras tantas dançarinas. Desfiar, tecer e trançar devem ter sido ocupações que as mulheres estavam engajadas. Parece não ter havido qualquer preconceito contra as mulheres que trabalhavam fora de casa. 


A ORDEM DE MONJAS

Buddha mantinha o ponto de vista de que a feminilidade não era obstáculo para o desenvolvimento espiritual e a realização do Nibbana. Portanto, ele admitiu mulheres na ordem monástica, embora após uma hesitação. Esta hesitação foi devido à condição que a mulher tinha na sociedade indiana na época. Além de ser uma sociedade dominada pelos homens, haviam idéias que enfatizavam a superioridade masculina e a inferioridade feminina. Assim, admitir mulheres na ordem faria a imagem pública da ordem e ensinamentos budistas "cair" no conceito do povo indiano. Além disto, o Buddha deve ter considerado as dificuldades organizacionais envolvidas. Os monges e as monjas teriam de ter mosteiros separados. Por outro lado, a segurança dos mosteiros femininos sem a presença masculina era uma coisa problemática. O relacionamento entre as duas ordens deveria ser de tal forma organizado cuidadosamente para funcionar suavemente e sem problemas. 

Tivesse o Buddha dado a permissão para que uma ordem de mulheres fosse criada logo, sem qualquer restrição, as mulheres não teriam visto a oportunidade como tão preciosa. Como elas tiveram uma certa dificuldade, a determinação delas de fazer do monacato um sucesso foi por elas muito enfatizada. Fossem quais fossem as razões para a hesitação do Buddha, ele permitiu a criação de uma ordem feminina, com a observação de preceitos a mais do que os homens. O Therigatha, ou "Hinos das Irmãs Monjas", dá amplo testemunho de como as mulheres fizeram da sua ordem um sucesso. Houveram muitas mulheres que eram Arahants, igualáveis às suas contrapartes na ordem masculina. Dhammadina era uma Arahant, grande explanadora do Dhamma, altamente elogiada por Buddha. Khema era outra, tomada como modelo para as outras seguirem. Uppalavanna foi uma Arahant com poderes psíquicos. O episódio de Subha, entre as mangueiras de Jivaka, é o epítome do força do caráter e determinação. Temos assim evidências de que a realização está além tanto do egoísmo, como da sexualidade. Ser um homem ou uma mulher significa estar confinado. O estado de Arahant ultrapassa todos estes conceitos estreitos - é a culminância, pleno florescimento de todas as potencialidades humanas. 


PAÍSES BUDISTAS

Tal é a atitude para com os sexos, como registrado no cânone páli. Seria apropriado procurar descobrir se estas idéias chegaram a ser transmitidas nas diversas sociedades dos países budistas. De acordo com crônicas históricas do Sri Lanka, as mulheres parecem ter tido grande mobilidade e independência social. Tanto o Dvipavansa como o Mahavansa, reportam que as mulheres participavam de grandes assembléias públicas de pregação dos monges. Estrangeiros que visitaram esta ilha em épocas mais recentes, como Hugh Boyd, inglês que esteve na corte de Kandy, em 1784, como enviado diplomático, nos conta: 

"As mulheres cingalesas diferem muito daquelas de outras nações orientais, em alguns dos pontos mais proeminentes e distintos de seus caracteres. Ao invés daquela lentidão apática, modéstia insípida e austeridade rígida que caracteriza o sexo no mundo asiático, em qualquer período histórico; nesta ilha elas possuem a sensibilidade ativa, poder de decisão e jeito amigável que caracterizam hoje as mulheres européias. As mulheres cingalesas não são meramente as escravas e donas de casa, mas em diversas ocasiões as companheiras e amigas de seus maridos... Os cingaleses não mantém suas mulheres em cativeiro, nem impõem sobre elas restrições humilhantes..."

Relatos similares podemos encontrar à respeito das mulheres em países como Myanmá (ex-Birmânia), Tailândia e Tibete, onde as mulheres participavam livremente como iguais aos homens na economia, nas atividades sociais e religiosas da sociedade. Como as sociedades são organizadas e sustentadas por ideologias que as regem, é possível dizer que o budismo foi a influência responsável pela emancipação das mulheres nestes países. 

Para concluir, cito uma afirmação do Mahavansa, que fala do tom moral e da organização social prevalente naquela época histórica entre os cingaleses. Diz que uma mulher jovem e bonita, adornada de jóias e ouro, levando na mão uma pedra preciosa, podia andar sozinha do extremo sul da ilha até a capital no norte, sem que lhe acontecesse qualquer prejuízo, perigo ou desrespeito. Tal era a sociedade que a filosofia social do budismo primitivo ajudou a construir uma vez, e pode ainda hoje construir, se assim as pessoas o desejarem.