Viagem ao passado
Voluntários recuperam trecho
ferroviário e oferecem passeio inesquecível em vagões restaurados, puxados por antigas
locomotivas
As pessoas encerram o passeio enlevadas, com a sensação de ter viajado no
tempo. Tudo combina com os anos de ouro da ferrovia paulista, quando dela dependia o
transporte de carga e passageiros, especialmente de passageiros. Uma gostosa ilusão que
dura pouco mais de três horas e pode ser saboreada diariamente por crianças,
adolescentes, adultos, idosos, enfim, por aqueles que ainda apresentam um inexplicável
pendor pelo apito do trem. Neste caso específico, de velhas marias-fumaças, dessas que a
gente se acostumou a ver em filmes antigos, lembranças de um tempo que está escapulindo
do baú graças ao desprendimento de abnegados sonhadores.
Reunidos em torno da Associação Brasileira de
Preservação Ferroviária (ABPF), com sede em Campinas, no interior de São Paulo, um
grupo de pessoas amantes do trem conseguiu lograr êxito numa área em que o Estado levou
a pior: A conservação de estradas de ferro. Graças à recuperação de velhas
locomotivas a vapor - restauradas, uma a uma, peça a peça, pelos dirigentes e associados
da ABPF, pessoas comuns que, nos fins de semana, se convertem em marceneiros, mecânicos,
tapeceiros, soldadores, pintores e eletricistas , a entidade está oferecendo às pessoas
uma prazerosa volta ao passado. Em 1977, ano de sua criação, a ABPF recebeu do
estado (leia-se Fepasa), em regime de comodato, o empréstimo de todo o conjunto
ferroviário existente no trecho de 24 quilômetros que liga as estações Anhumas, em
Campinas, e Jaguary, em Jaguarinúna. Explorado até 1971 pela finada Companhia Mogiana de
Estradas de Ferro - empresa que passou para o controle do estado com a criação da
recém-privatizada Fepasa ; esse fragmento ferroviário só não foi riscado do mapa
graças à obstinação dos fundadores da associação, em especial do engenheiro francês
Patrick Dollinger. Em outubro de 1977, a Fepasa encerrou suas operações ali. Dollinger
fez publicar um anúncio no jornal "O Estado de São Paulo" convidando os
amantes do trem a constituir uma associação de preservação nos moldes das que conheceu
na Europa. Recebeu a adesão de inúmeras pessoas, várias delas ainda à frente da
associação, caso do engenheiro mecânico Juarez Spaletta, membro do conselho permanente.
Motivado pelo interesse de um punhado de anônimos que, como ele, tinham a maria-fumaça
impregnada em suas reminiscências, Dollinger apresentou à Fepasa um plano de
recuperação. A ex-estatal a cedeu. E o sucateamento daquele traçado, em franca
consumação, foi providencialmente interrompido.
Zelo missionário
"Teve início, então, uma verdadeira operação de
guerra na busca de locomotivas a vapor, carros, vagões e peças", lembra Vanderlei
Alves da Silva, diretor de comunicação social da ABPF e há dez anos envolvido com a
preservação do trecho. Ele conta que não foi fácil chegar ao atual patrimônio
ferroviário operado pela entidade porque o material disponível, abandonado em pontos
distintos do pais, estava a meio passo da inutilização. Os problemas técnicos com que
se defrontou a equipe da ABPF eram formidáveis. A persistência e a dedicação, no
entanto, se sobrepuseram ao que parecia improvável: leigos reformando velhas locomotivas.
Mas eles não estavam sozinhos. Contaram o tempo todo com a ajuda de alguns profissionais
do ramo, como o ferroviário aposentado Ivo Arias, que continua prestando serviços
técnicos à ABPF. Silva salienta que ao zelo missionário daqueles associados (que ele
chama de voluntários) juntou-se a ajuda financeira de várias empresas da região,
parceria que tornou possível recuperar (além de 14 locomotivas a vapor) 35 carros de
passageiros, carro-restaurante, carro-correio, carro administrativo, estações, moradias
e vagões. E, evidentemente, a própria linha férrea. Uma tarefa espinhosa que soa como
coisa agradavelmente simples, mas que tomou tempo e exigiu muito dos envolvidos.
Felizmente, algumas ferrovias decidiram colaborar. "Cerca de 80% desse patrimônio
foi cedido à associação em comodato. Os 20% restantes foram doados", informa o
diretor de comunicação social da ABPF.
O esforço desses sonhadores deu origem a um
grande negócio. Grande no sentido de que, pelo menos nos 24 quilômetros entre as
estações Anhumas e Jaguary, a ferrovia renasceu. Está viva e palpita na cadência
ditada cerca de 20 anos atrás pelo francês Dollinger. Marias-fumaças que ajudaram, no
passado, a levar o café até o porto de Santos, transportam agora saudosistas, turistas e
estudantes. Num dia os vagões são puxados pela locomotiva a vapor 302, fabricada na
Inglaterra, em 1896. Noutro, pela 505, montada em Berlim, em 1927. Seis marias-fumaças
(oito estão em manutenção) e os vagões recuperados pela ABPF estão na ativa e são
operados pelos associados com o auxílio de alguns poucos funcionários em regime de
escala de trabalho, ressalta Silva. Foguistas, maquinistas, mestres-de-linha,
telegrafistas, chefes de estação, entre outros ofícios ferroviários, hoje fazem parte
do currículo de um seleto grupo de afiliados (no total são mais de 2 mil em todo o
país, que pagam para a entidade, semestralmente, irrisórios R$ 23). Esse é o exemplo do
vice-presidente da ABPF, Francisco Carlos Bianchi, químico de uma fundição de
Piracicaba, município adiante de Campinas para quem segue rumo ao interior do estado. Ele
se sentiu atraído pelo movimento deslanchado por Dollinger porque nunca escondeu sua
ligação sentimental com o trem. Seu avô foi maquinista da antiga Estrada de Ferro
Sorocabana. É o caso, também, do técnico mecânico Hélio Gazetta Filho, morador de
Campinas e há 14 anos diretor da associação. Suas funções: maquinista e restaurador
de carros de passageiros, tarefas que executa com desusada satisfação, todos os fins de
semana. "Nada é comparável ao prazer de tomar nas mãos um carro em frangalhos e
poder vê-lo, meses mais tarde - depois de reformado em nossas oficinas -, servindo aos
turistas."
Cenário para TV
O diretor de comunicação social da ABPF esclarece que nos
fins de semana as composições estão sempre cheias e que de abril a novembro os dias
úteis são reservados para o transporte turístico de estudantes (projeto pedagógico).
"Também alugamos o trem para casamentos, passeios com grupos de pessoas da terceira
idade (feito para os saudosistas matarem a saudade da maria-fumaça), convenções de
empresas, gravações de comerciais e filmagens em geral. Volta e meia a televisão
utiliza nosso patrimônio como cenário em seus seriados. Foi assim com as novelas 'O Rei
do Gado', 'Serras Azuis' e 'Estrela de Fogo'. " Essas viagens são didáticas, e as
explanações sobre a ferrovia e sua história começam na estação de embarque, Anhumas.
Numa das salas do velho terminal funciona um museu que mantém em exposição peças de
antigas locomotivas e vagões de passageiros, objetos, aparelhos de comunicação que
deram vida às estações de outrora (telefone de manivela, telégrafo e sino) e muitas
fotos.
Essa estrutura operacional é única no país. A ABPF atua
em outros pontos do Brasil por meio de sedes regionais em São Paulo, Araraquara e Franca
(no interior do estado), Rio de Janeiro, Tubarão e Rio Negrinho (em Santa Catarina). São
museus com bibliotecas que exibem peças e partes de marias-fumaças. A única exceção
fica por conta de Rio Negrinho, que promove o turismo sobre trilhos num trecho de 50
quilômetros. "Só que sem a regularidade do trabalho levado a cabo entre as
estações Anhumas e Jaguary, traçado exclusivo da ABPF e onde colocamos trens para
correr a qualquer hora. Em Rio Negrinho, dependemos de autorização da proprietária do
traçado, a Ferrovia Sul Atlântico", observa Silva.
As diferenças não param por aí. Os 24
quilômetros explorados comercialmente pela associação são uma cópia da paisagem de
décadas atrás. As estações intermediárias, onde moravam os funcionários que cuidavam
da manutenção da linha, conhecidos por "turma", estão lá, em adiantado
processo de restauração. A ABPF está investindo na recuperação do conjunto
arquitetônico das paradas de Carlos Gomes, Desembargador Furtado, Tanquinho e Pedro
Américo. "Nosso objetivo é formar o maior museu vivo da América Latina",
disse em recente depoimento o diretor de cultura da entidade, Henrique Anunziata. Como
fazer isso, se o dinheiro é sempre curto? Que tal ceder em regime de comodato as casas
para os sócios decididos a reformá-las? Aparentemente descabida, a idéia foi aceita.
Resultado: as estações e construções adjacentes se transformaram num grande canteiro
de obras. "Ganhamos uma casa de campo", diz, eufórica, Carmen Cecília
Bianchi,
esposa do vice-presidente da ABPF. O casal vem há três anos restaurando por conta
própria uma das sete residências da Estação Pedro Américo. Carmen diz que os dois
filhos menores contam nos dedos os dias da semana que faltam para a sexta-feira, quando a
família costuma tomar o caminho de Pedro Américo. "Agora temos o nosso
sítio." Essa curtição ganha um sabor ainda mais especial quando Francisco Carlos
Bianchi, o marido de Carmen, é escalado para pilotar a maria-fumaça - uma rotina que se
repete pelo menos um sábado por mês. Quando ele se aproxima de Pedro Américo alegra os
ouvidos da mulher e dos filhos com um apito longo. Faz parte da magia da ferrovia.