Sala de Convívio _________________________________________________________________________________________________________________________________ Página 3

 FRAGMENTOS DA NOSSA HISTÓRIA

O Feiticeiro de S. João de Areias - selecção de textos (conclusão) / O Livro / A Autora

 

Home

Sala de Convívio

 

Veja ainda na SALA DE CONVÍVIO:

Notícias da Terra e da Região

Ciência - Artes - Letras -Ideias

Espaço da Criança

 

 

 


Leonor Teles e o Conde Andeiro

O FEITICEIRO DE S. JOÃO DE AREIAS

(Selecção de textos conclui-se a selecção apresentada na revista Sala de Convívio N.º 0)

 

“Ia caindo a tarde…

Em fins de Fevereiro de 1380, por um caminho tortuoso de Santa Comba Dão, seguiam a cavalo uma dama e um gentil homem em direcção a S. João de Areias.

“Os dois cavaleiros subiam a encosta levados a custo pelos belos e formosos corcéis negros.

A pouca distância, seguia-os o guia, cabisbaixo, sombrio, escorregando a cada passo pelo alcantilado monte orlado de pinheiros esguios.

Próximo do atalho, que conduz ao lugar denominado Cancela, onde alvejavam meia dúzia de casas, os cavalos recusaram-se a avançar…

– É impossível, senhora minha, continuar a jornada a cavalo!... – disse o fidalgo voltando-se. – Ser-vos-ia penoso apear-vos?...

(…) – Pelo contrário… – respondeu ela – Seria até para mim muito mais agradável transitar a pé…pelo vosso braço.

E, fitando-o com o seu doce olhar azul:

– Ainda ficará muito distante a gruta do feiticeiro?

– Se o guia não se enganou, devemos estar já muito perto… – Que dizeis, Tomásio? – interrogou o fidalgo.

– Creio, meu senhor… – volveu o homem aproximando-se e não dissimulando o seu mau humor – Creio… isto é, a ter tomado bem sentido nas indicações que me deram na ponte sobre o rio Dão… que devemos estar a chegar à Cancela e passado o atalho, fica S. João de Areias.

Apeou-se o gentil homem e tendo-se respeitosamente inclinado em frente da amazona, esta desceu ligeira, pondo o pequenino pé sobre a mão do seu companheiro.

– Podeis seguir Tomásio! – ordenou ele – Ide até ao lugar da Cancela, onde dareis a guardar os cavalos e podereis esperar-nos de regresso.

E, dando o braço à gentil dama, ajudava-a a subir a íngreme ladeira, segredando-lhe ternas frases, que ela parecia ouvir enlevada, reclinando a bela cabeça sobre o ombro do altivo e dedicado mancebo.

(…) A dama era a célebre rainha D. Leonor Teles e o fidalgo o mais nobre e poderoso fidalgo da corte de El-rei D. Fernando I, de quem sempre foi amigo e protegido, D. João Fernando, o belo Conde Andeiro, a quem a rainha muito amava, sendo correspondida com igual fervor (…).

– Ainda falta muito para chegar à gruta?...

– Devemos estar próximo!... Mas, ah! Felizmente avista-se um ser vivo que nos pode informar e ao mesmo tempo distrair com a sua companhia…

(…) Estavam na presença de um jovem aldeão (…). De chapéu na mão, com uma voz de timbre agradável saudava-os delicada e respeitosamente:

 – Salve-os Deus, meus senhores…

E acrescentou logo:

– Se vos posso ser útil para alguma coisa, estou ao vosso dispor…

Corresponderam com afabilidade ao cumprimento e (…) interrogaram-no sobre a distância que ainda os poderia separar de S. João de Areias.

Era um pretexto para entabular conversação, como qualquer outro.

          – Parece-vos que ainda faltará muito? – dizia o Conde Andeiro.

          – Oh! Não, meu fidalgo!... Já estamos muito perto.

          E, estendendo o braço a indicar diversos pontos, começou com essa verbosidade peculiar aos aldeões, descrevendo pormenorizadamente os lugares e contando as lendas que a eles se referiam (…).

         – Vedes acolá… – dizia o guia – à vossa direita aquelas pequenas casas brancas?

         É o Rojão Grande!... Lá se avista a velha torre da igreja coberta de hera… Ali está uma moura encantada que guarda um tesouro.

Do lado esquerdo fica-nos a Guarita, onde ao dar da meia-noite... aparecem em certo atalho...um galgo e uma cabrinha branca, que se crê são almas de um príncipe e de uma princesa, que em vida muito se amaram e que a morte não conseguiu separar... mas que assim andam penando, porque morreram sem nunca haverem sido baptizados.

É uma povoação pequena, do tempo dos mouros e foi fundada por um que se chamava Ali-Ben-Kabir e depois se transformou em serpente.

Passadas estas duas povoações, entraremos num atalho que nos conduzirá em breve a S. João de Areias.

E além... mesmo em frente... avistam-se Anta e o Rojão Pequeno...

Tudo pequenos lugarejos, simples, mas lindos, com as suas frondosas árvores, os seus montes verdejantes e cujos habitantes são bondosos, serviçais e muito delicados (...).

Vossas mercês vêm visitar a aldeia de S. João de Areias?...

É muito pitoresca esta terra, situada na margem direita do Mondego, rodeada de pequenas povoações, com as suas casas baixas, muito brancas, de quintais cheios de arvoredo, de frutos magníficos, tão lindos e variados que poderiam rivalizar com os do Paraíso!

E as lendas maravilhosas!...

Oh! as lendas de mouras encantadas e cavaleiros destemidos, príncipes loucos de olhos azuis, que percorrem de noite estes lugares, para lhes quebrar o encantamento... Temerários, que só ouvem a voz do coração e são surdos à da prudência e da razão, o que faz com que apareçam petrificados sobre os seus cavalos, logo após o feito do desencanto!... Sim, porque eles, esses príncipes de sonho, ao darem a vida à moura adormecida desde imemoráveis eras, dão em troca a sua!...

Aqui... – continuou ele indicando uma enorme pedra coberta de musgo – aqui aparece muitas vezes uma serpente, que ao dar da meia-noite, toma a forma de mulher e à luz da lua, canta melancólica canções ao som de alaúdes...

Ainda não foi possível terminar-lhe o encanto, pois quando algum generoso, impávido guerreiro se lhe dirige, logo surge um horrendo dragão que o devora!...

– Dizeis então... que estamos perto... – interveio o conde Andeiro.

– Sim. Em breve teremos chegado lá. Temos ainda a outra ladeira. Mas... como vos ia dizendo, não deixeis de admirar esta terra, que tem lugares dignos de se verem.

– Conheceis a gruta do feiticeiro?

– É dela que vos ia falar... Aqui chamam-lhe também a gruta do Santo (...).

Chamam-lhe feiticeiro, mas santo é que ele é!... Ide vê-lo e ele dir-vos-á o futuro, tudo quanto vos vai suceder; coisas pasmosas, que vos hão-de causar estranheza e talvez assustar... principalmente, se vos revelar também o passado.

(...) Lá ao longe entretanto, apareciam as primeiras casas da aldeia de S. João de Areias.

O fumo saía das chaminés e luzitas, que davam a ideia de milhares de pirilampos, indicavam que os seus moradores se preparavam para a ceia e recolher às suas camas, cedo, como é de uso na gente do campo.

– Vedes além aquele ponto elevado? – disse o guia – Pois lá ao cimo dessa montanha, ao centro de um pinhal e de um souto de castanheiros, fica o monte das oliveiras e é aí que está a gruta do feiticeiro!...

(...)

O habitante da gruta era um desses infelizes para quem a natureza fora avara em dotes físicos. Não teria mais de oitenta centímetros de altura. A cabeça descomunal, firmava-se por um prodígio de equilíbrio sobre os tortos ombros. A boca contraída numa expressão de amargura, causava dó; olhos pequenos mas de um fulgor extraordinário, cabelos parecendo espinhos, barba até quase à cintura e uns braços compridos, magros, terminados por mãos enormes, ossudas, de dedos aduncos e unhas recurvas como garras.

As pernas curtas em extremo, findavam nuns pés igualmente desproporcionados para o corpo e que calçavam umas sandálias de veludo, bordadas a ouro.

No entanto, toda a sua pessoa possuía um cunho nato de distinção e nobreza.

Dir-se-ia um rei..."

 (...)

“São 8 horas da noite (…).

O feiticeiro estava numa espécie de sala, sentado à sua mesa de trabalho, sobre a qual se viam apesar da meia escuridade – dada a mortiça luz da candeia – livros latinos, hebraicos, o Alcorão, filtros, cadinhos, etc., etc. (…).

O interior da gruta era vasto, abobadado, adornado com algumas mesas e cadeiras toscamente feitas, pelas paredes denegridas várias prateleiras comportando vidros com drogas de esquisitas cores, pequenos molhos de plantas medicinais quase secas e outras variedades.

Na parede em frente da porta estava suspensa uma humilde candeia, que iluminava debilmente essa moradia.

Helbo, o feiticeiro, convidou a rainha Dona Leonor Teles e o Conde Andeiro a sentarem-se e tomou lugar num escabelo, em sua frente.

– Podeis dizer agora, senhora minha, a que devo a honra da vossa visita? – interrogou o sábio dirigindo-se em primeiro lugar à dama.

Falava como se estivesse numa sala principesca. A sua voz de suavidade extrema contrastava singularmente com a sua grotesca figura.

– Desejamos – disse o Conde Andeiro – consultar-vos sobre o destino, sobre o nosso futuro (…)

– Segui-me – disse Helbo.

O Conde e a Rainha obedeceram. Saíram da sala, seguindo o feiticeiro que, munido de uma luz, ia à frente. Atravessaram galerias, corredores, jardins surpreendentes, ora descendo, ora subindo escadas em caracol, que era um verdadeiro labirinto; aqui era um tecto que abatia, ali… era outro que se elevava, e em breve… não compreendendo como tinham chegado, encontravam-se numa sala ricamente mobilada, com quadros antiquíssimos pelas paredes douradas, tectos abobadados e admiravelmente cinzelados, representando as principais figuras bíblicas.

A cada um dos quatro cantos da sala viam-se estátuas de mármore, em tamanho natural, reproduzindo os primeiros monarcas portugueses até D. Fernando I.

Flores e flores raríssimas, de esquisito e suave perfume, viam-se ali, como se fossem destinadas a um dia festivo.

No centro desta sala maravilhosa, erguia-se um trono de ébano, com embutidos de marfim e coral, cujos degraus eram coberto de veludo carmesim e oiro.

As portas com reposteiros de ricos estofos, o sobrado atapetado de vermelho, verde e amarelo… assim como o estrado, completavam o luxo fabuloso e a originalidade dessa casa, cujo conjunto quase ao gosto oriental, encantava.

Um belo lustre de cristal e ouro suspenso no tecto, jorrava raios de luz sobre essas maravilhas, só rivalizadas pelas das Mil e uma Noites

A Rainha e o Conde, pasmados, surpreendidos, julgavam-se transportados a um país de fadas (…).

– Senhora – disse o feiticeiro dirigindo-se a Dona Leonor, fitando nela o olhar, e indicando-lhe o improvisado trono – senhora esperava-vos e já tinha tudo preparado para vos receber. Tomai o lugar que vos compete, e por momentos julgai-vos nos vossos palácios de Lisboa e Santarém.

Maquinalmente, a rainha, subjugada pelo olhar do anão tomou lugar no trono, no estrado do qual Andeiro ajoelhou.

Então o sábio, chegando próximo da soberana, ajoelhou igualmente dizendo:

– A uma pessoa da vossa hierarquia, senhora, só assim me devo dirigir. Se tivesse um palácio mandaria erguer um trono em ouro e rubis, mas infelizmente, este não é bem digno de Vossa Alteza!...

– O que dizeis?! – exclamaram estupefactos a rainha e o conde. – Acaso sabeis quem sou? – interrogou Leonor Teles.

– Senhora… os astros para mim não são um enigma… Há muitos anos que vos espero… Sabia que viríeis, mas nem quando nem em que dia ou hora… Os astros, porém, me o disseram hoje! (…).

– Quem sou eu pois, dizei?...

– Vós sois – respondeu ele levantando-se… e a sua voz tinha entoações estranhas, misto de alegria e desgosto… – Vós sois a excelsa rainha de Portugal!... Vós sois Leonor Teles!... (…) Sei tudo. O céu para mim não é um mistério… Leio nas suas constelações, nos seus planetas, nas próprias nuvens que tomam formas caprichosas e se afastam ligeiras.

– Então falai, falai – interveio o Andeiro – dizei o que o planeta nos pressagia.

– Senhora – tornou Helbo, voltando-se de preferência para a Rainha. – o que vos vou dizer é grave, mas sei que posso falar em frente do vosso dedicado companheiro (…). É funesta a vossa estrela!... Tendes sido muito culpada, Senhora!...”

***

…E o feiticeiro de S. João de Areias recordou todo o passado de Leonor Teles.

Lembrou-lhe como havia abandonado o marido para casar com D. Fernando, como mandara prender e castigar aqueles que se haviam oposto ao seu casamento, como era responsável pela morte de sua irmã Maria Teles, como se tinha tornado amante do Conde João Fernandes de Andeiro…

E prenunciou-lhe o futuro: a morte do Conde Andeiro e como, depois de algumas traças criminosas urdidas por ela, haveria de ser encerrada num convento, onde morreria desamparada de todos.

***

“Depois de ter falado, Helbo caiu aos pés de Leonor Teles, a qual pensativa, seguia todos os seus gestos, lançando furtivos e tristes olhares para o Conde, que via agora meditativo e sombrio.

– Perdoai, senhora minha – suplicou o feiticeiro com a sua voz lenta, doce – se vos desgostei e afligi… Mas vós me ordenaste que falasse, que tudo queríeis saber…

Volvidos alguns momentos de silêncio, que se seguiu a estas palavras, a rainha disse a Helbo:

– Peço-vos licença para vos oferecer uma quantia para vossos pobres.

E apresentou-lhe uma bolsa de seda contendo ouro. Ele teve um gesto de pesar.

– Sei que não aceitais coisa alguma. Conheço o vosso desinteresse por tudo; mas muito me obsequiareis aceitando o encargo de distribuíres esse dinheiro pelas famílias mais necessitadas de S. João de Areias.

(…) Finalmente, seguindo pelo mesmo caminho de escadas em caracol e corredores, Helbo conduziu D. Leonor e o Conde Andeiro, mostrando-lhes todas as maravilhas nesse fantástico subterrâneo”.

 

Selecção e notas de António Nunes da Costa Neves, Março de 1989

 

Voltar para o topo...

 

O LIVRO

“Leonor Teles ou O Feiticeiro de S. João de Areias” é um romance histórico de autoria de Maurícia Máxima da Conceição Cardoso de Figueiredo.

É uma edição de João Romano Torres & C.ª Editores, em 2 volumes, ilustrados pela autora, publicada em 1914.

A edição encontra-se esgotada há muito e por isso é uma raridade de alfarrabistas.

A AUTORA

Maurícia de Figueiredo, nasceu no Casal do Soutinho, em Carragosela, Tábua, distrito de Coimbra, em 18 de Setembro de 1866. Além de “O Feiticeiro de S. João de Areias” escreveu “Rafael e Leonor”, Setúbal, 1899; “A Elevação da Mulher”, Caminha, 1900; “Conde de S. Paulo”, romance, Lisboa, 1906; “Carlota Joaquina” publicado no jornal de Montemor-o-Novo, tendo publicado neste mesmo jornal duas séries de artigos intitulados ”Direitos da Humanidade”, complemento da ”Elevação da Mulher”, e ”Profetas e Pitonisas”. Publicou também na ” Colecção António Maria Pereira”, em 1900, um romance intitulado “O Exilado”.

Voltar para o topo...

 

Home  |   Sala de Convívio