PLANIMETRIA: "ESTÉTICA DO IMPRECISO E PARADOXAL"

Eufrasio Prates

Quanto mais nos aproximamos da hodiernidade, menos claras são as definições e mais arriscadas as seleções feitas para discutir a estética musical deste fim de século. Esse aviso precede a apresentação do que cremos ser, particularmente no caso do Brasil, uma das mais conseqüentes e produtivas correntes de composição: a técnica classificada por seu autor de "estruturalista", embora tão avançada em termos de concepção que possivelmente inaugura um veio de criação dos mais mesclados ao paradigma holonômico, chamada planimetria.

Foto de Koellreutter (tirada por Eufrasio Prates - 1994)Seu inventor foi H. J. Koellreutter (Alemanha, 1915), aluno de Scherchen e professor de Luigi Nono no período em que viveu na Europa. Firmou residência no Brasil por duas vezes, tendo sido o fundador de diversas escolas de música no país. Na primeira vez em que aqui esteve, tornou-se a figura central do movimento musical mais inovador do século XX no país: o "Música Viva" que aqui introduziu a técnica dodecafônica. A primeira geração de compositores brasileiros experimentalistas - Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Edino Krieger etc. - formou-se sob sua orientação direta. Na segunda vez, quando naturalizou-se brasileiro, empreendeu as mais sérias e dedicadas aplicações de características musicais apreendidas nos anos em que foi embaixador do Instituto Goethe em todo o Oriente, tendo residido ou viajado pelo Japão, Índia, Bali etc.

Com esses estudos e pesquisas experimentais, Koellreutter vai criar, no final da década de setenta, a técnica de composição planimétrica. Ele próprio define sua estética atual como estética do impreciso e do paradoxal. "Do impreciso", porque busca transcender o rigor (mortis) que se apoderou da música racionalista ocidental. "Do paradoxal", porque reconhece a inércia imanente aos extremos dicotômicos e dualistas do velho paradigma mecanicista.

A Planimetria é uma técnica composicional que faz uso de um plano para representar graficamente os signos e ocorrências musicais. Privilegia a participação do intérprete ao ponto de torná-lo co-autor, já que os gráficos devem ser improvisados, nunca se repetindo a mesma performance de uma mesma obra. Essa liberdade de improvisação, quando nas mãos de um competente intérprete, deve levar a um nível tal de interação com o público que permita sua participação ativa, como mais um co-autor - não apenas a nível perceptivo/interpretativo. Podemos qualificar essas obras de estruturas extremamente abertas por apresentarem um altíssimo índice de elementos móveis, delineados, indicados por região ou totalmente indeterminados.

Entre os compositores que fizeram ou fazem uso, ainda que esporádico em certos casos, de técnicas improvisativas podemos citar Cage, Brown, Levine, Stockhausen, Penderecki e Ligeti, entre outros. Koellreutter, porém, optou exclusivamente por essa técnica composicional a partir dos fins dos anos setenta, tendo chegado ao extremo de rasgar todas as suas obras dos 40 anos anteriores de trabalho.

A improvisação através de partituras gráficas ou de partituras textuais (que apresentam as orientações através de apenas um texto escrito) foi explorada quando tratamos da música aleatória (Prates, Música Quântica, p. 101). Nesse caso particular, Koellreutter propõe a dosagem estrutural de parâmetros abertos, móveis, indeterminados, a outros fixos, fechados com o objetivo de garantir determinado nível de coerência à estrutura musical Esse tipo de estrutura é composto em função das inter-relações entre os sons, e entre som e silêncio.

A importância do silêncio, crescente conforme se vão traduzindo importantes conceitos do mundo oriental, é outro ponto crucial na produção musical das últimas décadas. Cage, Hespos, Stockhausen e diversos outros vão valorizar a ausência de som como elemento estrutural na composição musical. Escrevendo num tom poético, Luigi Nono (1924-1990) vai dizer:

"O silêncio. É muito difícil escutar. É muito difícil escutar, no silêncio, os outros. Outros pensamentos, outros ruídos, outras sonoridades, outras idéias. (...) Em vez de escutar o silêncio, de escutar os outros, espera-se encontrar ainda uma vez a si mesmo. (...) Escutar a música. É muito difícil. Creio que hoje é um fenômeno raro. Escuta-se alguma coisa de literário, escuta-se o que foi escrito, escuta-se o que foi escrito, escuta-se a si mesmo ... (...) Despertar o ouvido, os olhos, o pensamento, a inteligência, o máximo de interiorização exteriorizada: eis o essencial hoje " (Luigi NONO, L'errore como necessità, 1983, apud Augusto de Campos, Pós-música: ouvir as pedras, jornal diário Folha de São Paulo, 02/Fev/1997, caderno Mais!, p. 9).

Lembrando a importância de adotar novas formas de audição, Nono enfatiza a raridade atual da "audição completa", de uma holoaudição na qual nos dediquemos a ouvir tudo que está implícito nesse fenômeno paradoxal de coalizão do som com o silêncio, do ser com o não-ser.

Assim como a forma de audição oriental é considerada por Stanislav Grof (Além do Cérebro, pp. 279-280) como indispensável para o uso psicoterapêutico, também a música experimental precisa de uma nova postura de intérprete e ouvinte frente ao fenômeno musical. Quanto aos compositores ocidentais, tratam o silêncio como um importante elemento estrutural. Mais do que ser o responsável pelas pausas, elementos articulatórios das frases ou períodos musicais, o silêncio vai ganhar na estética koellreuttiana o papel que a ausência de tecido encontra na composição de um rendado: figura e fundo entabulam um diálogo de diafaneidade.

A imprecisão e paradoxalidade de sua estética, representada por uma série altamente orgânica de novos parâmetros musicais, vão levá-lo a pesquisar por décadas uma forma de escritura musical que as atenda em sua plenitude, chegando assim ao Diagrama K. O Diagrama K é hoje, se não o melhor, um dos mais eficientes meios de colocar em prática a maioria dos novos conceitos até aqui discutidos. Detalharemos em outra página, através de uma análise musical, o funcionamento e as premissas estéticas da técnica planimétrica desenvolvida por Koellreutter. Em suas experimentações, Koellreutter chegou a criar para sua peça Acronon (1978-79) um tipo de partitura - semelhante ao diagrama - inscrita numa esfera de acrílico transparente. Embora a esfera se mostrasse mais rica em possibilidades - por sua tridimensionalidade -, as dificuldades de montagem e manipulação (além do alto custo de manufatura) levaram o compositor a optar pelo diagrama em papel.

A estética por trás dessas obras remete ao Oriente de forma orgânica - e não imitativa como tem se tornado comum nas últimas décadas -, trazendo à nossa realidade a experiência dos anos em que lá viveu. Se a obra de Capra, O Tao da Física, revela um sem número de evidências quanto às vinculações e paralelos entre a física quântico-relativística e a milenar sabedoria oriental, poderíamos deduzir que as experiências orientais de Koellreutter seriam a matriz da proximidade entre a música planimétrica e a nova física. No entanto, em função dos verbetes eleitos para constar de sua Terminologia de uma nova estética da música - acausalidade, aceleração científica, aleatório, biograviton, caos, continuum espaço-tempo, desordem, estatístico, estética relativista etc. - além de nossos contatos pessoais com o autor, sabemos que o seu interesse na filosofia desse campo científico do saber é proveniente de sua concepção de mundo, segundo a qual a maior responsabilidade de um artista contemporâneo é a veiculação das mais novas idéias do tempo em que vive.

Foi sobre esse pano de fundo estético-musical que compusemos a peça musical "Letterblocks" (1991-92). Procurando inter-relacionar, através de uma estética holonômica, as novas descobertas da física (relacionadas às partículas virtuais) a uma concepção trans-oriente-ocidente, "Letterblocks" é o resultado das mais recentes pesquisas neste campo, tendo sido criada sob orientação direta e pessoal do criador da técnica planimétrica. Pondo à parte o valor artístico da obra, do qual somos evidentemente suspeitos para tratar, pretendemos facilitar a compreensão dessa nova estética através de sua análise, apresentada no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica (São Paulo, 1996) . Essa escolha é feita também pelo conhecimento do projeto de criação - que nas obras de outros compositores não é geralmente explicitado - e pela facilidade em explorar detalhadamente as perspectivas do método planimétrico a partir de um trabalho concreto. Toda a análise está permeada de referências aos padrões tradicionais de composição no Ocidente, como meio de sintetizar, ainda que de forma não exaustiva, as maiores diferenças entre os métodos tradicionais e os atuais (veja análise).


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Eufrasio Prates
eufrasio@usa.net

Created: 11/Mai/97
Updated: 05/Nov/97