Manifesto Pós-Caipira

O Pós-Caipira na Imprensa (Clipping)

 

 

 

Manifesto Pós-Caipira

    Este texto foi feito pelo antropólogo Hermano Vianna e está no site da banda Mercado de Peixe:

     Fela, mestre-de-cerimônias-multimídias do Mercado do Peixe, diz que fui eu que inventei o nome pós-caipira para designar o movimento que ele me anunciava. Nem me lembro ao certo o contexto de tal invenção: era certamente uma brincadeira. Mas como a brincadeira colou, e ficou séria, tenho agora a missão de sair correndo atrás do prejuízo (prejuízo bom esse!), e criar o embasamento "teórico" necessário para tudo fique bem claro. Vou também levar a brincadeira a sério (minha maneira de seriedade...), tentando tirar dela as conseqüências politico-culturais mais interessantes. Que interesse pode ter se usar a palavra caipira - mesmo com o prefixo pós - hoje?
     P
ensando nisso, resolvi voltar aos clássicos, àqueles livros que definiram os caipiras como grupo cultural na sociedade brasileira. Comecei pelos textos de Monteiro Lobato que criaram o personagem Jeca Tatu. Nunca tinha lido esses textos, talvez por pudor, talvez por achar que ia me deparar com lado mais careta e reacionário de Monteiro Lobato, um lado que gostaria de esquecer e fingir que não existia.
     Preferia guardar na memória as minhas lembranças de infância, da época em que lia sua coleção infantil sem parar. Monteiro Lobato me ensinou a gostar do Brasil, de um determinado Brasil que até hoje traduz os aspectos mais interessantes que descubro e defendo em nossa cultura. Acho até que fiz o Música do Brasil por causa dele, dessas leituras. Entendo os problemas, ou o que existe de problemático em sua obra. Por exemplo: seu anti-modernismo; ou a caricatura de cultura afro-brasileira representada por Tia Nastácia (apesar de Tia Nastácia ter me levado a admirar a cultura afro-brasileira); entre muitos outros aspectos que considero equivocados ou ingênuos. Mas, pelas informações que tinha sobre Jeca Tatu, custava a acreditar que um cara tão inteligente quanto Monteiro Lobato, que gostava tanto da cultura popular brasileira, teria podido criar uma imagem tão simplista do (na verdade um furioso ataque contra o) caipira, que naquela época ele ainda chamava de caboclo.
     Fui direto ao texto. De início encanta o estilo: deve ter sido um susto na redação do Estado de São Paulo, quando o texto chegou como carta no final de 1914: quem é esse cara que vive no interior e escreve tão bem, com tanta mordacidade? Concordando ou não com o que é dito ali, não podemos deixar de achar o texto uma delícia.
     Mas hoje não dá pra levar a argumentação do texto à sério. Fazer uma crítica rigorosa é uma tarefa quase ridícula (mesmo se quisermos elogiar o que existe de interessante nas entrelinhas, como um proto-ecologismo ou um combate ao conservadorismo ou coronelismo político que ainda hoje domina grande parte de nossas relações sociais interioranas). Vou aqui fazer um outro exercício, talvez - para o gosto de muitos leitores - bem amalucado: quero inverter alguns argumentos de Monteiro Lobato, enxergando qualidades naquilo que para ele só podia ser defeito.
     Vou tratar o Jeca Tatu como herói, pelos mesmos motivos que na visão de Monteiro Lobato ele era uma praga ou um motivo de vergonha nacional. Vamos à sua descrição, com citações tiradas dos textos do criador do Sítio do Picapau Amarelo: o caipira seria "espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças." E mais: "recua para não adaptar-se." Ou então: "existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso." Eis aí, naquilo que Monteiro Lobato enxergava como vício, todos os traços de um herói contracultural (ainda mais hoje, quando falar bem do ócio voltou à moda).
     É claro: se achamos, como muita gente continuar a achar, que a chegada da "civilização", ou a adaptação à "civilização" (por si só um conceito duvidoso: afinal, o que é ser civilizado? há só uma maneira de civilizar-se?) é um bem indiscutível, temos que condenar o Jeca Tatu. Mas se duvidarmos da bondade ou das boas-intenções da "civilização"? Não devemos celebrar o homem inadaptado, que recua e não abraça sorridente o "progresso", que desconfia do "civilizado" e por isso prefere viver "na penumbra das zonas fronteiriças"?
     Fico tentado em pensar essas sombrias zonas fronteiriças criadas/habitadas pelos caipiras como exemplos daquilo que Hakim Bey chama de zonas autônomas temporárias, ou TAZ (do inglês Temporary Autonomous Zone). Mas fico ainda mais tentado a pensar o caipira como um nômade anti-capitalista, como aqueles descritos na filosofia de Gilles Deleuze. Encontrei este texto numa conferência que Deleuze fez sobre Nietzsche intitulada Pensamento Nômade: "é verdade que, no centro, as comunidades rurais estão presas e fixadas pela máquina burocrática do déspota, com seus escribas, seus padres, seus funcionários; mas na periferia, as comunidades entram num outro tipo de aventura, num outro tipo de unidade dessa vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se descodificam no lugar de se deixar sobrecodificar." Parece a descrição das comunidades caipiras segundo Monteiro Lobato. Com uma diferença importantíssima: Deleuze gosta dos nômades. Eu também gosto.
     Então, mesmo o silêncio do caipira, mesmo a aparente facilidade com que o caipira deixa se manipular pelas forças governistas, pode ser pensado como uma estratégia para se manter à parte, nunca chamando a atenção. Esse silêncio seria uma determinação de nunca compactuar, e sempre fugir (fingindo estar sendo "tocado") - parece a maioria silenciosa de Jean Baudrillard, que se recusando à participar acaba destruindo os fundamentos da representação política... Essa é uma estratégia político-cultural sofisticadíssima. Como revela, sem perceber a radicalidade da estratégia, o próprio Monteiro Lobato: "E agora? Que fazer processá-lo [o caipira]? Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é 'tocá-lo'." Como se toca um cachorro. Mas aí quem toca está fazendo justamente o que o caipira quer: sair dali, desaparecer sem compactuar, sem se tornar um empregado obediente ou "civilizado".
     Monteiro Lobato diz: "o caboclo é uma quantidade negativa." Isso é lindo. Resume tudo. E poderia se tornar um lema para o movimento pós-caipira: radicalizar a negatividade: sumir quando correr perigo de se deixar aprisionar por um estilo; ser como a Natascha Kinsky no filme No Fundo do Coração: cuspe na chapa quente, que desaparece sem deixar vestígio: como os índios, que não tinham "história", que muita gente acha que são menores por não terem deixado documentos ou monumentos; eles eram mais espertos, e não andavam por aí carregando o peso de bibliotecas e museus. Volto a citar Monteiro Lobato: "um ano que passe e só este [o sapezeiro] atestará sua [do caipira] estada ali; o mais se apaga como por encanto." Não fica "nada que seja revelador de permanência." Pelo contrário: os caipiras, como os índios das terras baixas sul-americanas (sem o Estado dos Incas), eram os mestres da impermanência.
     Estamos reaprendendo, com a tecnologia digital, a fazer essa mágica: o "apagar por encanto" que é o "esquecimento como força ativa", para voltar a citar o Nietzsche de Deleuze. Pensei nisso ao redescobrir uma entrevista de 1981 - quase esquecida - com Ralf Hutter, do Kraftwerk. A banda vai para o estúdio todos os dias. Mas grava pouquíssimo. Ele dizia na entrevista: "Fitas são históricas. No momento em que você termina a gravação, elas se tornam históri­cas. Você termina com um excesso de história. Nós tentamos esquecer muito da música que tocamos." E complementa: "Nós somos as Brigadas Vermelhas da música. Penso que temos um ponto de vista muito determinado. Nós achamos que o mundo da música é muito ori­entado para a história, para as gravações. Nós queremos projetar uma atividade mais anárquica."
     O Kraftwerk e as máquinas nos ensinam a esquecer e apagar, a viver o momento do remix e não querer guardá-lo para sempre (ninguém tem espaço nem interesse para armazenar tanta coisa!) Até porque o mundo já está transbordando de coisas, documentos e monumentos. Por que essa compulsão de guardar tudo? Não é melhor ficar "de cócoras", aproveitando a impermanência de tudo (o mais legal é remixar, é ver todo mundo remixando, e não comprar o disco dos remixes).
     Começando a concluir: caipirando o uso das máquinas, não corremos o risco apontado por Antonio Candido, aquele do "saudosismo transfigurador" ou de "uma verdadeira utopia retrospectiva", que pensa o tempo "dos antigo" como o tempo da fartura, e lamenta o presente. Um verdadeiro pós-caipira (anti o caipira-estilizado-de-festa-junina, festa sempre nostálgica do antigo, do que já passou - mas isso não quer dizer que o estilo junino não seja útil... ou mesmo o sertanejo-hiperpop de Sandy & Junior... tudo é radicalmente reciclável...) aproveita radicalmente o presente, sem se preocupar com o registro do que está vivendo. Todo o resto, como diria o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, "não paga a pena." Porque não paga mesmo!
     Presente? O que é o presente para um pós-caipira? O presente pode ser uma maneira de se perder no tempo, como disse Gilberto Gil: "jeca total deve ser jeca tatu... um tempo perdido... interessante a maneira do tempo... ter perdição quer dizer, se perder no correr, decorrer da história". Esse presente, assim pensado e vivido, não é certamente o fim da história, mas a história vivida sem a ilusão da evolução totalitária. Cada pós-caipira tem seu próprio tempo, e sua maneira - acocoradamente correta - de estar no tempo. Lição: o tempo do mangue-beat: nada nostálgico da pureza perdida do maracatu; e por isso o maracatu está mais vivo do que nunca. Hoje. O mangue-beat nos ensinou a botar fogo na cultura local, afrociberdelificando-a. É preciso agora jeco-centrificar o afrociberdelificado. Para fazer coro com o Jeca Tatu de Monteiro Lobato: "Eta fogo bonito!"

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