abertura os fatos textos wlj
os filmes
na boca da noite

o filme possível
José Carlos Avellar

Jornal do Brasil, 03.06.1973
Na Boca da Noite, terceiro filme de Walter Lima Jr., é um dos momentos extremos de um problema típico do cinema brasileiro, a dependência dos recursos econômicos e materiais encontrados mais ou menos ao acaso no momento da produção. Em nenhum outro meio de expressão um artista brasileiro se encontra tão condicionado por questões materiais, pelo processo mecânico do trabalho, como na feitura de um filme.

As dificuldades comuns a toda expressão artística entre nós, as dificuldades encontradas por cada um na procura de uma solução formal são acrescidas, no cinema, por problemas materiais de tal ordem que em grande parte o trabalho de criação se inverte. O tema e a própria expressão são determinados não pelo artista, e sim pelos meios de produção existentes no momento da filmagem.

Este é o problema. Mas antes de qualquer outra observação é preciso esclarecer um ponto importante. Na Boca da Noite é uma produção em tudo modesta. Feita com pouco dinheiro, em pouco tempo, filmada em l6mm para posterior ampliação, e com apenas dois atores. Mas não é a simplicidade dos meios materiais, nem as precárias condições de produção que fazem aparecer melhor esta dependência que caracteriza os filmes brasileiros.

Em verdade é muito provável que estas características sejam as mais indicadas para uma adaptação cinematográfica de um texto como O Assalto de José Vicente. Ou mais exatamente, estas características possivelmente são as mais indicadas para se adaptar a encenação teatral feita por Rubens Correia e Ivan Albuquerque sobre o texto de José Vicente.

É muito provável que, diante de dois atores familiarizados com o texto, o comportamento mais aconselhável seja exatamente o da filmagem rápida em planos longos e som direto. O texto original cresce bastante a partir da capacidade dos intérpretes para compor convincentemente os dois personagens. É muito natural, portanto, que a estrutura narrativa do filme procure não interferir na relação que os dois intérpretes estabelecem entre si. Ao contrário, é natural que se procure deixá-los à vontade e colocar em destaque as pequenas soluções que Ivan e Rubens descubram instintivamente no momento da representação.

A base do filme é a relação entre os dois atores, e o trabalho de direção consiste apenas numa sutil interferência de dois outros intérpretes - a câmara de filmar e o gravador - e se estende ainda na ampliação do palco. As filmagens foram feitas no interior de um banco. Surgiram então um espaço mais amplo para a marcação dos intérpretes, objetos e ambientes reais para servirem de ponto de apoio.

Tudo é feito para servir de estímulo à criatividade dos intérpretes. A câmara funciona como um elemento perturbador e ao mesmo tempo estimulante, como um espectador que pulasse da platéia para o palco e começasse a interferir na interpretação, encostando os atores contra a parede e exigindo deles novas soluções.

Antes de qualquer outra coisa é preciso esclarecer este ponto, e não nos desviarmos para o habitual equívoco: identificar a produção demorada, custosa e requintada como um produto esteticamente bem resolvido. A pobreza de meios em Na Boca da Noite não é o elemento revelador da dependência. A economia de recursos se ajusta bem ao texto original. O problema não se encontra tão na superfície, não é tão simples de se expor.

Ele se situa numa área capaz de ser revelada apenas numa operação de exame atento das características formais do filme. Num exame que torne possível aferir até que ponto o realizador tomou as condições de trabalho oferecidas pelo material, e transformou-as num novo e particular recurso expressivo. Ou até que ponto o realizador foi dominado pelo material.

O importante é verificar se o instrumental técnico colocado à disposição do realizador foi livremente escolhido ou foi o único meio possível encontrado para procurar um novo contato com o cinema, uma experiência ou desenvolvimento de um tema anterior. E Na Boca da Noite, examinado com maior atenção, aparece como um momento extremo, um sobre-humano esforço para tentar, mesmo com materiais que não deixam Walter Lima  Jr. à vontade, fazer de novo um filme. Fazer não o filme desejado, mas o filme possível.

Para compreender a questão inteiramente é preciso não deixar de lado os conflitos que existem no relacionamento entre a obra de arte brasileira e o público e, em particular, as características deste conflito em termos de cinema. É preciso também não deixar de lado os problemas econômicos que, muito em particular na área do cinema, aumentam a tensão.

Não é preciso ir muito longe, basta lembrar, por exemplo, que a experiência de Na Boca da Noite chegou a ser lançada apenas três anos depois de sua realização. E que isto só foi possível a partir do instante em que se criou um cinema com programação especial. É preciso apenas este ligeiro exemplo para que se possa imaginar até que ponto os complicados mecanismos de produção, distribuição e exibição são de difícil acesso para o filme brasileiro.

Não seria qualquer exagero afirmar que o cinema brasileiro se faz exatamente deste choque entre a vontade de fazer filmes e as dificuldades materiais para se chegar a uma câmara. Mas é preciso ao mesmo tempo que se tenha esta observação na cabeça não como a tradicional introdução para o elogio de cineastas que conseguem se impor a despeito de todas as dificuldades. Porque, a rigor, nós estamos conseguindo nos impor e estamos cada vez mais longe de vencer a luta.

Durante algum tempo, nos primeiros filmes do cinema novo, contra as dificuldades de sempre, os realizadores conseguiram impor seus temas e transformar os precários meios de filmagem numa forma nova, adequada e rica. Agora, os assuntos que se desejam discutir já não podem mais ser impostos. E as condições econômicas e materiais determinam cada vez mais os argumentos e os estilos.

Na Boca da Noite, filmado em 16 milímetros para ampliação posterior, tem planos e planos compostos para o tom de imagem que se consegue com as câmaras de 35mm. O material de 16 sugeriu à direção pouco mais que a já tradicional filmagem em planos longos e câmara na mão (porque a câmara é leve e o chassi aceita uma quantidade de negativo igual a 10 minutos).

Na composição das imagens a granulação e a perda da definição resultantes da ampliação não foram levadas em conta como um recurso expressivo, e por isto aparecem como defeito. O cenário natural não foi escolhido em relação às possibilidades do material para o registro do som, e por isto o som deixa de ter uma função criadora para ser um registro - nem sempre fiel – das vozes dos atores.

O material utilizado para o trabalho funcionou quase como um obstáculo à realização do filme. Nas específicas condições de tudo que envolve o cinema brasileiro, raramente é possível escolher. Qualquer oportunidade de manter um contato com cinema é agarrada. Filma-se na hora em que surge uma oportunidade. O material determina o filme, e criou aqui um espetáculo sem qualquer dúvida cheio de falhas.

No entanto, é impossível deixar de reconhecer por trás deste filme feito pela metade a sensibilidade do realizador e dos intérpretes. É impossível deixar de reconhecer que os planos estão, em princípio, bem pensados. Na tela vemos uma espécie de rascunho não passado a limpo, algo que não chegou a ser feito por ter ficado na dependência de condições materiais mais favoráveis que não existem.

Um problema apenas material, à primeira vista, mas em verdade a questão vai um pouco adiante. É muito seguro que a sensibilidade escondida por trás de Na Boca da Noite se revele apenas a uma parcela reduzida da platéia, capaz de manobrar com maior intimidade o conhecimento cinematográfico. É simples chegar a estas observações quando o contato com os bons exemplos do cinema é maior.

Um problema material à primeira vista, pois em verdade os meios precários de realização são inadequados em função da nossa formação cinematográfica. Com uma câmara pequena, filme menor, se tenta inconscientemente o modelo ideal. Sem qualquer dúvida, a partir do momento em que a precariedade do material disponível for assimilada como característica - e não como dificuldades - estaremos mais perto de revelar melhor nossa própria imagem. Uma tarefa que talvez não possa ser conseguida sem as primeiras experiências como Na Boca da Noite. Uma tarefa difícil, sem dúvida. Mas afinal, entre nós, o que é fácil?
abertura os fatos textos wlj
os filmes