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chico rei
Valério Andrade
Boletim Cinearte, 12.11.1986

Por pouco, Chico Rei não ficaria soterrado no porão dos projetos inacabados. E, se isso não aconteceu, deve-se à persistência de seu diretor, Walter Lima Júnior, e aos recursos mobilizados pelo seu co-produtor,  Paulo Cesar Ferreira. O projeto original, em sistema de co-produção com os alemães, destinava-se à televisão e fora planejado para ser uma série de 13 capítulos. Suspenso em 1980, só seria concluído em 1985. A versão cinematográfica tem 115 minutos e foi idealizada e montada a partir de um copião de 17 horas! É claro que Chico Rei não chegaria à tela (grande) imune aos problemas de produção e à drástica redução da minutagem original.

Diante desse quadro, a sua existência, por si só, já é um milagre. O que surpreende, neste caso, não são as insuficiências, mas as qualidades que sobreviveram ao naufrágio da produção. Dizer que Chico Rei está à altura de A Lira do Delírio ou de Inocência seria injustiçar esses dois filmes, mas, ainda assim, trata-se de um filme sério e digno – uma dessas obras em que as intenções e a forca temática conferem algo acima da rotina.

Apesar da afinidade temática com Quilombo, cronologicamente Chico Rei antecede ao épico de Carlos Diegues sobre a epopéia da insurreição da raça negra. A narrativa se passa no século XVIII, durante o apogeu do tráfico de negros entre a África e o Brasil Colonial - ambientada em Vila Rica (hoje, Ouro Preto), na época, o principal centro de mineração do País e do Continente. Entre os escravos, aqui separados de suas famílias e rebatizados pela Igreja Católica como "Franciscos" e "Marias" - emerge a figura de um líder: Galanga, Rei do Congo, que ficaria conhecido como Chico Rei.

Como Spartacus, o escravo-gladiador que chefiou a rebelião contra o Império Romano, Chico Rei alimenta idêntico sonho: libertar e quebrar as algemas que acorrentam seu povo às profundezas das minas de ouro. Seu caminho, porém, será diverso do trilhado por Spartacus: em lugar da espada, Chico Rei conquistará a liberdade através da carta de alforria e, com o ouro da mina Encardideira, libertará outros negros e junto com eles construirá uma igreja para a Padroeira do seu povo, Santa Efigênia. Entretanto, para o filho de Chico Rei, Musinga, a liberdade não se limitará à carta de alforria e, na opção, ele escolherá a liberdade do eldorado de Quilombos.

Paralelamente à luta dos negros, o filme enfoca a luta dos brancos que sonham e morrem por um Brasil livre. São os poetas e os inconfidentes de Vila Rica. Entre eles, não há, no filme, um herói épico equivalente a Chico Rei, pois o que fica registrado na tela é o clima de conspiração -  a nascente e crescente idéia de que o ouro é nosso e de que é preciso livrar-se da tirania econômica de Portugal  A exemplo dos negros africanos, os brasileiros, submetidos a outra forma de escravatura, imposta pela Coroa  portuguesa, também pagam com sangue o sonho que só viria tornar-se realidade anos mais tarde com o Grito do Ipiranga.

Por coincidência, a estrutura cinematográfica de Chico Rei lembra a de Quilombo, na medida que, em ambos os filmes, a narrativa é panorâmica e não cultiva a clássica verticalidade dramática dos épicos históricos.  A quebra dessa tradição costuma, quase sempre, provocar a descentralização da tensão e fragmentar a identificação emocional do espectador. Isso é patente em relação à figura de Chico Rei: ele não é mitificado pela câmara e, em conseqüência disso e apesar da fotogenia física do ator Severo d’Acelino, jamais se estabelece, entre o herói e o espectador, a empatia dramatúrgica de El Cid de Anthony Mann ou do Spartacus de Stanley Kubrick. É evidente que, em Chico Rei, tal opção foi consciente, pois, já presente no roteiro, estende-se à direção. Walter Lima certamente confiava na magia do tema e na verbalização como força dramática condutora da mensagem:
"Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência a vossa!"

Certamente, não é por acaso que o poema de Cecília Meireles figura entre as fontes inspiradoras do roteiro de Chico Rei. Ninguém duvida do poder do discurso falado ou escrito, só que, no cinema, a imagem é matéria-prima insuperável e insubstituível. A imagem é emoção, é ação, é poesia, como se viu em Inocência, que Walter Lima Júnior filmaria após a traumática experiência de Chico Rei. Quando a palavra, a mensagem verbalizada, substitui ou obscurece a imagem, o discurso político sobrepõe ao espetáculo cinematográfico. Quando isso ocorre, em menor ou maior escala, o cinema perde  algo de sua magia.

Chico Rei foi buscar na história e na lenda as raízes do drama vivido pela raça negra em nosso país. Ao recriar a tragédia negra em cores sóbrias e através do enfoque semididático, Walter Lima Júnior denuncia a opressão social e racial que reduzia seres humanos à condição de animais. E aqui, mais do que em qualquer outro filme sobre o assunto feito no Brasil, agiganta-se na tela a brutalidade da escravatura e a crueldade dos senhores de pele branca e alma negra. Às vezes, como na seqüência da primitiva esterilização coletiva, o sofrimento assume a feição de um pesadelo verticalizado sonoramente pelos gritos de dor.

À luz da História, não se conhece o paradeiro de Chico Rei. Figura mais lendária do que histórica, sobreviveu na tradição oral, na Congada folclórica, brilhando ao lado dos redentores da raça negra.

Se a câmara resgatou do esquecimento esse herói negro, Walter Lima Júnior conseguiu, por sua vez, salvar “in extremis” uma obra destinada à sepultura cinematográfica. Talvez não seja o filme que poderia ter sido, mas certamente, é o que foi possível ser feito.
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