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a lira do delírio

com muita vida
Paulo Perdigão
Veja, 29/11/1978

“A vida dura só um dia, um porre, um gesto, um gemido, um delírio" - filosofa na tela o repórter interpretado por Paulo César Peréio. Outro juízo igualmente soturno sobre a existência transparece ao longo de A Lira do Delírio: um carnaval que flui inebriante e perece efêmero, na quarta-feira de cinzas. Um pensador interessado em definir de maneira mais rigorosa o comportamento das personagens dessa estranha mascarada poderia ainda dizer que elas existem apenas para o aqui e o agora.

O mundo dessas criaturas vaga numa geografia singular, entre vielas sórdidas e dancings baratos. Seu cenário tanto pode ser uma favela no Mangue como um hotel na Lapa: são bocas do lixo, da boêmia e da promiscuidade, onde as coisas acontecem de modo inconfundível e todos se entendem num linguajar excêntrico. Ao fundo, prostitutas, pederastas, travestis, vigaristas e inocentes ultrajados tremulam sob luzes de gás neon, embalados por boleros e chorinhos - às vezes um inesperado Xavier Cugat se intromete entre Waldir Azevedo e Caetano Veloso. Em primeiro plano, atrações dignas de manchete de primeira página em jornais sensacionalistas: “Chofer de praça põe fogo em homossexual", "Raptaram o bebê da táxi-girl", "Médico comanda tráfico de crianças para o exterior", "Grã-fino do society faz chantagem com meretriz".

Mera reunião de fatos pitorescos? De modo algum. Pois Lira do Delírio representa antes de tudo uma vibrante conjugação de contrastes a devassar - com desalinho e vitalidade, mágoa e euforia, vulgaridade e candura -, uma conduta cultural que pulsa bem na medula das noites cariocas. Quem sabe, aqui esteja o equivalente nativo do “film noir”  hollywoodiano dos anos 40, ou a redenção - graças ao alto nível técnico - das ousadias do cinema udigrúdi.

De qualquer forma, trata-se de um filme desconcertante, provocador, tão robusto em atmosfera e inventividade que contagia a platéia com o mesmo prazer que moveu seu autor, Walter Lima Jr., a concebê-lo e realizá-lo. Tributo à alegria da criação cinematográfica, A Lira do Delírio tem êxito em tudo aquilo onde Orfeu do Carnaval ou Ladrões de Cinema tropeçaram: um strip-tease da miséria carioca em ritmo de escola de samba. Assim, é com-preensível que tenha encantado os jurados do último Festival de Brasília, de onde saiu ostentando cinco prêmios: direção, atriz (Anecy Rocha), ator coadjuvante (Peréio), fotografia (Dib Lutfi) e montagem (Mair Tavares). E mereceria certamente outro, a ser dividido entre todo o elenco: improvisando diálogos e movimentação, os atores manifestam uma espontaneidade fora do comum, encarnando personagens que, não por coincidência, têm exatamente seus próprios nomes.

Tão surpreendente resultado materializou-se por meio de tortuosos acasos. Inicialmente, Walter Lima Jr. pretendia realizar um simples musical - e com uma câmara de 16 milímetros rodou, em 1973, as cenas de carnaval de rua em Niterói que agora alinhavam a complexa estrutura acronológica do filme. Nos três anos seguintes, após dirigir cerca de cinqüenta documentários para a TV Globo, Walter foi aprimorando o projeto e, como diz, "aprendendo a fazer meu filme".

Ao retomar as filmagens, em 1976, Walter não dispunha de um roteiro - apenas vários esboços de situações que, encenadas com larga margem de imprevisto, lhe permitiriam variadas combinações na montagem. Em determinado momento, dispunha de uma verdadeira armação de módulos, "que podiam ser editados de cinco maneiras diferentes".

Surgiu então o fato trágico que daria um sentido preciso ao que fora a livre aventura da filmagem: a morte da protagonista Anecy Rocha, mulher do diretor, irmã de Glauber Rocha, num acidente, em 27 de março de 1977. Anecy deixava inacabado um filme (Os Vampiros) e, nas mãos do marido, um comovente legado: os derradeiros flagrantes de sua imagem em movimento. Tendo em mãos esse tesouro afetivo incalculavelmente rico, Walter Lima Jr. deu à Lira do Delírio sua forma definitiva, de sofrida reflexão a propósito da imanência e iminência da morte. Ao longo de todo o filme, aliás, por trás de tanta cor e agitação, ela sempre comparece sorrateira. Como diz Walter Lima Jr., "sem Anecy não haveria A Lira do Delírio. E realmente, diante dessa úl-tima e mais luminosa aparição de Anecy Rocha, encerrando uma carreira de treze filmes iniciada sob a direção do próprio Walter em Menino de Engenho, sente-se que raras vezes o cinema confirmou tão bem a definição que lhe deu Jean Cocteau: "É a única arte que surpreende a morte em seu trabalho".
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