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menino de engenho Ely Azeredo Jornal do Brasil, 23/08/1966 Quando se põe em dúvida, numa pseudopolêmica unidirecional (na voz dos cinemanovistas), e compreensivelmente imatura, a contribuição da crítica ao movimento que se convencionou chamar cinema novo, cabe chamar atenção para o who’s who dos cineastas que se iniciaram na crítica ou à sua sombra. À lista sobe agora, com especial significação, o nome de Walter Lima Júnior, cujo Menino de Engenho (1965), um bom filme, sem intenções de obra-prima – e quantas esperanças podem brotar de um bom filme! – é certamente a melhor obra de estréia do cinema brasileiro em, pelo menos, três décadas. Sabe-se que os críticos de valor não costumam confirmar a mesma escala de mérito quando ingressam na realização cinematográfica, mas, no caso do fluminense Walter Lima (que pertenceu à antiga equipe fordeana da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, colaborou na Tribuna da Imprensa e no Correio da Manhã), o cinema roubou cedo demais, com prejuízo para o jornalismo especializado, uma vocação que mais cedo ou mais tarde seria sua. O Walter Lima que eu conheci exercitava com certo impudor a arma da chalaça e da ironia, enquanto se nutria técnica e culturalmente nos cineastas hábeis e nos mestres que o tempo ia superando. Ficou um ceticismo que me parece lúcido, não só em relação às modas (nouvelle vague etc.) que se diluíam ou se autodevoravam no cinema estrangeiro, como também em relação às muitas pedras fundamentais de um cinema brasileiro para o mundo. Por isso, não consigo vê-lo, em um prisma de futuro, a reboque dos lugares-comuns que ameaçam a aspiração do cinema novo a uma fértil maturidade. Menino de Engenho, um filme que não inventa, não agride, não reforma, não escandaliza, confirma o que já é mais de uma impressão pessoal, é a previsão realista de uma carreira fecunda. Lima Júnior fora assistente de Adolfo Celi em Marafa (1962), um filme inacabado, ou melhor, mal começado. Em 1963 seguiu para a Bahia, como assistente de Gláuber Rocha (em verdade a ficha técnica se refere a assistente de direção e de roteiro e a continuidade dramática e caracterização) em Deus e o Diabo na Terra do Sol, e voltou com a adaptação de Menino de Engenho iniciada. Curiosa, aliás, a confiança que desde o início o projeto ganhou dos herdeiros, amigos e estudiosos da obra de José Lins do Rego, e do Governo da Paraíba – apesar da pouca experiência e idade (25 anos) com as quais WLJ pleiteava a difícil aventura. Duas firmas produtoras disputaram seu trabalho. A vencedora, liderada por Gláuber Rocha, agitava a bandeira cinemanovista. Mas seria mais fácil (ou menos difícil) apontar o dedo do equilíbrio de WLJ por trás de Deus e o Diabo do que a agitação de GR em torno ao berço do Menino. Esse Menino de Engenho respira serenidade e contenção, atributos que lhe vêm granjeando, sem abdicar de seriedade criadora, a participação e o aplauso de consideráveis parcelas do público brasileiro. O que se pode afirmar, pelo menos por enquanto: são diferentes os caminhos de Lima Júnior e de seu patrono inicial, Gláuber Rocha. A primeira dificuldade de Walter Lima Júnior foi evitar a facilidade. A construção fragmentária do livro de estréia de Lins do Rego sugeria tanto o comodismo da ilustração fotográfica quanto as inúmeras saídas sofisticadas em questões de ritmo, timing, cronologia. O fato de o livro, inicialmente projetado por Lins do Rego como memória da vida com o avô (Coronel José Paulino interpretado no filme por Rodolfo Arena) ser todo matéria de memória, tentaria a maioria dos cineastas a uma estrutura de flash-backs e, possivelmente, a experiências de linguagem em débito com Resnais (Hiroshima Mon Amour) ou Bergman (Morangos Silvestres). Walter Lima não se deixou tentar pelos morceaux de bravoure que fizeram do cinema novo iguaria de festival. Frente ao repositório sobriamente transfigurado das memórias de José Lins do Rego, ele foi de um respeito e uma sensibilidade dignas (e não cabe aqui maior paralelo) do Nélson Pereira dos Santos de Vidas Secas. À primeira cena vemos Carlinhos (um achado a descoberta do intérprete Sávio Rolim, lembrando, em jeitos e gestos, o diretor) sob o impacto do assassinato da mãe pelo pai, fator de sua entrega aos cuidados do avô e da Tia Maria (Anecy Rocha) no Engenho Santa Rosa; e, ao final, o menino deixando o engenho e a fazenda, a alma cortada de saudades, rumo à escola. A ordem cronológica dos acontecimentos aproveitados do romance está na tela, e, apesar das múltiplas dificuldades de uma produção financeiramente modesta, são apresentados com muito do sabor original os personagens mais importantes e a quase totalidade das figuras periféricas. Reencontramos os temores e os ímpetos da infância de Carlinhos de Melo, visualizados por quem ganhou, com o estudo do Ciclo da Cana-de-Açúcar, uma surpreendente intimidade com os Verdes Anos do escritor, e, por extensão, com os verdes anos do Nordeste açucareiro dos engenhos e de um coronelismo paternalista mais humano anterior à vitória das usinas. O sexo aprendido na intimidade com os moleques da bagaceira (expressivo, apesar de alguns exageros que nunca consegue evitar, o negro vivo interpretado por Antônio Pitanga) e com Zefa Cajá, a mais famosa na vida do Santa Rosa. A religião das rezas decoradas que não livram o menino da angústia da morte e que tolhem a sua vitalidade, embora a imagem do altar também tenha sexo. O medo irracional em mistura com os fantasmas da fé, com as histórias da senzala sobre Zé Cutia, o vendedor ambulante que vira lobisomem. A violência da natureza, com a cheia do Paraíba irrompendo com força de açude arrombado. E, sobretudo, as decepções da inexorável passagem do tempo, roubando ao protagonista suas afeições e amores: a morte da priminha (cena de grande sensibilidade, com a invasão da luz até a diluição quase total das formas), o distanciamento da professora que representava não muito inocentemente a descoberta do calor da fêmea; o casamento da Tia Maria, que lhe atenuava o sentimento de orfandade; a estada efêmera da primeira namorada no Engenho Santa Rosa; o aparecimento da vergonha em relação à sua curiosidade sexual; e, paralelamente, a conspiração punitiva dos adultos que termina com sua condenação ao internato e expulsão da paradisíaca liberdade da fazenda. O tempo que nos devora – previnem os versos em epígrafe – é o grande vilão, o personagem onipresente de Menino de Engenho. O cineasta pretendia ampliar visualmente esta presença com um tratamento especial de laboratório que desse a todas as imagens uma discreta coloração de álbum de família. Financeiramente, isso não foi possível. Mas, através do trabalho empreendido com o diretor de fotografia Reinaldo Barros, que se harmoniza com o estilo da direção, Walter Lima Júnior consegue transmitir às imagens uma pátina de memória. (Para isso não era preciso estabelecer para os personagens, como sucede principalmente à chegada e partida de Carlinhos, poses de antigas fotografias acadêmicas). Ainda mais significativa do que a estilização cinegráfica em tom de memória – tour-de-force que bastaria para tornar curiosíssimo o filme – é a ótica de infância repensada que o diretor conseguiu, em manobra de roteiro e mise-en-scène que acentua a posição de Carlinhos como centro da narrativa. Sem possibilidade de concentrar em único filme a visão do ciclo da cana-de-açúcar (a tentativa de um trailer do drama de Usina através do Tio Juca, pouco expressivo no filme, parece-me uma das frustrações de WLJ), o cineasta evita aprofundar o panorama social do Engenho Santa Rosa. O filme, lucidamente, é mais o menino do que o engenho. Quantos jovens do cinemanovismo teriam a coragem de limitar-se a acontecimentos representativos da vida social refletidos na retina do menino? Quantos resistiriam à tentação de afixar uma mensagem sobre a poderosa narrativa de um romancista do porte de Lins do Rego? O tempo que nos devora – a morte. Com essa medida para os acontecimentos de seu filme, que não dá à destruição da inocência a mesma ênfase do livro (onde o problema do sexo tem muito mais importância), Walter Lima Júnior consegue um afastamento significativo do prisma moral de Lins do Rego e encontra um ponto-chave do cinema novo. Com a medida da morte, ele encontra também a poesia do efêmero (o menino no alpendre com a bengala do avô, as imagens de vida que se sucedem a cada batida), a brasilidade de Humberto Mauro (Engenhos e Usinas, A Velha a Fiar) e uma preocupação universal de cinema moderno: a deterioração dos sentimentos. À seqüência final, o trem deixando o Santa Rosa, o menino arremessado para o futuro, e de olhos ansiosos sobre os cenários do que começa a ser o seu passado, agarrado à última porta da composição, Menino de Engenho chora no funeral dos sentimentos. |
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