abertura os fatos textos wlj
os filmes
Volta ao menu de textos sobre a obra
um cinema que quer ser música
Carlos Alberto Mattos

Publicado na revista Veredas (CCBB/Rio, Nov-2000)
Ultimamente Walter Lima Jr. tem revisitado com freqüência as prateleiras onde guarda velhos discos de Bossa Nova. Os arranjos recentes de Eumir Deodato e Oscar Castro Neves em CDs americanos têm-lhe causado uma emoção especial. Não que o cineasta de A Ostra e o Vento tenha sido tomado de uma súbita nostalgia pelos anos 60. Ele está apenas nutrindo o mood para escrever o roteiro de seu próximo filme, que trata de um grupo de jovens músicos cariocas daqueles tempos, às voltas com o sonho de tocar no Carnegie Hall e com suas vidas afetadas pela entrada em cena de uma musa, uma mulher singular. Já no seu quarto tratamento, o roteiro de Os Desafinados terá uma estutura circular partindo dos dias de hoje. Os personagens serão, então, devolvidos a um tempo de utopias, quando estavam grávidos de vontade de mudar o mundo, a começar por si próprios. “Se eu puder me lembrar com bom humor dos dias de entusiasmo, vou poder reavivá-lo em mim e nos outros”, planeja o diretor.

Previsto para entrar em produção no início de 2001, Os Desafinados ainda não tem elenco nem equipe técnica definidos. Lima Jr. espera poder contar com a leveza dos diálogos de Luiz Fernando Veríssimo e com atores-músicos nos papéis principais. “Quero trabalhar com aquele entendimento meio mágico, não verbal, que existe entre músicos que tocam juntos.”, diz. A música, então, será a própria tessitura do filme, levando o estilo de Walter Lima Jr. a concretizar uma vocação que sempre esteve latente em grande parte de sua obra.

Quando entrevistou o músico Wagner Tiso para um programa de televisão educativa no início dos anos 90, o cineasta deixou escapar uma confissão. “O que eu queria mesmo era ser músico”, afirmou. Ele dava ali uma chave a mais para a leitura de seus filmes. Se, como queria Schopenhauer, “todas as artes aspiram à condição de música”, o cinema de Walter Lima Jr. ronda de alguma maneira aquele ideal.

Desde muito cedo, Walter aprendeu a dividir sua paixão entre as notas musicais que aprendia com a mãe e as imagens dos faroestes, filmes de pirata e musicais que devorava nas matinês de Niterói. Um dos dias mais tristes de sua infância foi aquele em que uma enchente destruiu as velhas partituras de músicas de filmes, ilustradas com figuras de atores e guardadas com carinho num armário da casa da família. Uma família, por sinal, cheia de músicos amadores. Mas o fascínio pelo cinema o arrebataria mais tarde para os cineclubes e cinematecas, colocando o piano e o violão num segundo plano, embora sempre em foco. Depois veio a idade das críticas de cinema e, seguindo um figurino muito comum entre diretores do Cinema Novo e da Nouvelle Vague francesa, a absorção do fã pelo próprio fazer cinematográfico.

Quando abalou-se para o sertão baiano na qualidade de assistente de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Lima Jr. contribuiu não apenas na organização do roteiro e em decisões de filmagem, como mostrou a Glauber o poder da música de Villa Lobos – que se tornaria elemento indissociável daquela obra-prima do Cinema Novo. Já em seu filme de estréia, uma fiel e delicada adaptação de Menino de Engenho, de José Lins do Rego, Walter manteve-se fiel a Villa e inseriu na trilha canções de sua memória familiar. Chegou a tocar a Valsa Triste de Sibelius na dublagem de uma atriz ao piano. Se o mecanismo da evocação era fundamental no livro de Zé Lins, através da música o diretor agregava as suas próprias reminiscências.     

Amigo de muitos músicos, freqüentador de shows de Bossa Nova e íntimo dos baianos que preparavam o Tropicalismo em fins dos anos 60, era natural que Walter Lima Jr. logo se interessasse pelo gênero musical. Brasil Ano 2000, seu segundo filme, colocava pela primeira vez gente dançando e cantando ao mesmo tempo no cinema brasileiro fora da tradição das chanchadas. É bem verdade que as cenas musicais, deliberadamente naives, eram mais um comentário sobre a repressão, pelos brasileiros ávidos de modernidade, dos traços primitivos de sua identidade que uma alternativa aos exemplares da Broadway ou de Hollywood. Mas as canções compostas, ao longo do ano de 1967, por Gilberto Gil, Capinam e o próprio Walter, a partir de idéias do cineasta, antecipavam a revalorização do kitsch, o futurismo de araque e as imagens estilhaçadas que fariam o estilo da revolução iminente. Caetano Veloso reconhece nessa trilha sonora nada menos que “um embrião do Tropicalismo”.    

No interregno representado pelo soturno Na Boca da Noite, a pista sonora era ocupada pelo texto ácido da peça O Assalto, de José Vicente, e por sirenes ou silêncios que exprimiam um tempo de medo e surda revolta contra o auge da ditadura militar.  Pouco espaço restava para o saxofone de Gato Barbieri, um amigo que se hospedava na casa de Lima Jr. por volta de 1970. Nessa época, o próprio Walter foi preso político por um curto período, sem direito a sequer um radinho de pilha. A vingança viria sob a forma de rios de Paulo Moura e Xavier Cugat em A Lira do Delírio, um filme que nasceu da música. Mais precisamente, da música de carnaval. Nos primeiros esboços, cada personagem da Lira representava uma canção carnavalesca. O resultado seria um filme sobre a memória coletiva da festa de Momo. Por uma série de circunstâncias, no entanto, o material filmado no carnaval niteroiense de 1973 prestava-se mais a uma história policial. E assim foi feito.    

O caráter solar do carnaval cedeu lugar ao tom mais noturno de um dancing da Lapa. Mesmo assim, o filme conservou um visível parentesco com a música popular. Estruturado na alternância de cenas documentais e de ficção, como se fossem partes e refrões de uma composição, A Lira do Delírio tem rimas, ritmo e métrica próprios ora de um mambo, ora de um bolero de fim de noite. Um filme encharcado de música.

No início dos anos 70, os ouvidos de Walter Lima Jr. voltaram-se também para o som direto, então em vias de se sedimentar no cinema e na televisão brasileiros. Seus documentários para a série Globo Shell Especial e o programa Globo Repórter compartilham a volúpia de captar a voz do povo na rua, a realidade flagrada de improviso, câmera e microfone em punho, o repórter dentro do quadro experimentando a cena junto ao objeto documentado. Esse corpo a corpo com o real serviria de ferramenta dramatúrgica não só para A Lira do Delírio, como para o semi-documentário Joana Angélica, uma investigação sobre o mito do herói a partir do gesto histórico da freira baiana que interpôs o próprio corpo à invasão do convento por soldados leais a Portugal, meses antes da Independência.               

O épico Chico Rei deu continuidade ao projeto de um cinema histórico mais atento às elaborações mitológicas que ao rigor das versões acabadas. Lima Jr. usa a história do primeiro escravo a se tornar dono de ouro no Brasil para investigar as suas próprias raízes negras. O Grupo Vissungo, em sua fusão de arte e militância, teve papel decisivo na formatação sonora do filme, que ainda mobilizou ícones da música negra brasileira como Milton Nascimento, Clementina de Jesus, Naná Vasconcelos e Geraldo Filme. Chico Rei assinalou também a primeira colaboração direta de Wagner Tiso numa trilha de Walter, parceria que iria se repetir em três dos quatro filmes seguintes do realizador.

No romântico Inocência, no sensual e mágico Ele, o Boto e no misterioso A Ostra e o Vento, o entendimento entre Walter e Wagner é tão completo que lembra o de Fellini e Nino Rota ou Hitchcock e Bernard Herrmann. Eles se aproximam por uma relação essencialmente emocional com o seu ofício, uma compreensão sofisticada e ao mesmo tempo muito simples da arte como veículo de idéias travestidas de sentimentos. A trilha sonora dolente de Inocência, atravessada pela melodia de Azulão, corresponde perfeitamente ao olhar enamorado do realizador em direção a um passado brasileiro que, embora rude e trágico, qualificava-se pela pureza que comandava igualmente o amor e a opressão, o beijo e o tiro.

Os influxos villa-lobosianos da trilha de Ele, o Boto retomam uma referência do início da carreira de Walter Lima Jr.. Na sua sonoridade aquática, a música de Tiso espelha os mitos de sedução e fertilidade abordados pelo filme. Por sua vez, A Ostra e o Vento tem na música um leito que acolhe ruídos do vento, vozes e canções dispersas numa espécie de limbo temporal, onde se interpenetram presente e memória. Mais que quaisquer outros, esses dois filmes – e suas pistas sonoras – nascem de um desejo de imantar o cinema com os eflúvios da natureza brasileira. Na obra de Walter Lima Jr., paisagem exterior e paisagens interiores estão abertas para uma troca permanente, que se dá num plano nem sempre discernível entre a afirmação física e a metáfora.

A música tem sido um interlocutor constante na carreira de Lima Jr., apesar de nem sempre audível. “Quando estou filmando, há sempre uma música tocando na minha cabeça, dando o tom da cena”, afirma. A seleção musical de seus filmes é tão autoral quanto os movimentos de câmera. Agora mesmo, ele se dedica a resgatar o primeiro corte de O Monge e a Filha do Carrasco, produção americana que, exceção única, recebeu música à sua revelia. Sua versão do filme, intitulada Benedicta, receberá uma trilha sonora à base de cantos gregorianos e canções medievais. É fácil compreender que, aos 62 anos de idade e 35 de carreira como diretor, Walter Lima Jr. dedique um particular carinho ao projeto de Os Desafinados. A música vai lhe servir para uma reflexão sobre a passagem do tempo sobre os homens. “As pessoas envelhecem, mas as canções têm eternidade. A juventude passa, mas a música continua a preservar uma certa inocência”, distingue. “É isso o que pretendo transformar em situações”.
Volta ao menu de textos sobre a obra
abertura os fatos textos wlj
os filmes