CAPÍTULO 1
OS PRIMEIROS DIAS DO SEMINÁRIO DO IBATÉ
O Seminário de São Roque começou a funcionar em 1949. Até então, os padres seculares da Arquidiocese de São Paulo começavam sua formação em Pirapora, no Seminário dos Padres Premonstatenses.
Assim sendo, a primeira turma de São Roque era constituída por duas categorias de alunos: os novatos, que iriam freqüentar o curso de Admissão, e os veteranos, transferidos de Pirapora, para continuarem seus estudos nessa nova casa.
Eu integrei a primeira turma de novatos. Éramos vinte e um alunos. Havíamos feito um exame de seleção, no chamado "Seminarinho", escola preparatória que funcionava em São Paulo, na Rua Albuquerque Lins, sob a administração do Padre Pavésio, um senhor grande, gordo e simpático, sob a condição de que, caso fôssemos aprovados nesse exame vestibular, poderíamos dar início aos nossos estudos no Primeiro Ano e não no Admissão. Estudei com afinco durante vários meses e obtive aprovação com boas notas. Contudo, ao chegarmos a São Roque, tivemos uma decepção. Não seria como haviam prometido: como não haveria o Admissão, caso todos os aprovados na pre-seleção começassem no Primeiro Ano, os padres nos informaram que, naquele ano, excepcionalmente, mesmo tendo sido aprovados, iríamos todos freqüentar o Admissão. Assim, meu primeiro momento nessa nova vida foi marcado por uma pequena frustração.
Chegamos a São Roque, os que vinham de São Paulo, em viagem de trem, em vagão especial alugado pelo Seminário. Éramos todos muito pequenos, a grande maioria vivendo, pela primeira vez, a experiência de ficar longe da família.
Mal nos conhecíamos. Eu havia feito amizade, no "Seminarinho", com o Ary Joly, ao lado de quem viajei. Havia alguns colegas, advindos das mesmas paróquias, onde geralmente haviam sido coroinhas, como Brás, Belém e Tatuapé, que sentiram menos a sensação de solidão do primeiro momento, por formarem pequenas turmas. Lembro-me muito bem da espera do trem em São Paulo, todos de terno caqui, calças curtas, meias três-quartos pretas e sapatos da mesma cor. Confesso que sempre considerei esse uniforme horrível.
Carregávamos malas e sacos com roupas e objetos de uso pessoal. Na estação, os pais, irmãos, avós e amigos tinham vindo se despedir. Algumas lágrimas, é claro, não tanto dos alunos, que estavam ansiosos pela expectativa de uma etapa nova em suas vidas, mas, como não podia deixar de ser, das mães e avós, elas que tanto se empenharam, na maioria dos casos, para que aquele momento acontecesse.
Sim, porque a vocação sacerdotal é como a vida: nasce da mãe e é alimentada generosamente no seio materno. Não que faltem as influências dos vigários, catequistas e outros. Vocação quer dizer chamamento e, em princípio, é o apelo divino para uma carreira dedicada à vida eclesiástica. Porém, o veículo desse chamamento, via de regra, é a figura materna. No meu caso, (minha mãe sempre contou isto com orgulho), quando eu nasci e ela soube que se tratava de um menino, seu primeiro pensamento foi: - este será padre.
Meu padrinho de batismo era um Monsenhor, vigário de minha paróquia, que muito colaborou para incentivar a minha vocação.
Voltando ao primeiro dia de São Roque, lembro-me de um fato que muito me serviu de consolo, quando, à noite, fomos para o dormitório. As instalações elétricas do prédio ainda não estavam prontas e uma equipe de eletricistas trabalhava no forro, mesmo depois de estarmos deitados, ligando fios e lâmpadas. Para minha sorte, esses eletricistas eram da firma onde meu pai trabalhava e eu logo pude ver o Zézinho, um rapaz muito amigo de nossa casa, encarrapitado lá no forro, concluindo o seu trabalho, sem saber que estava me dando um grande alívio, por saber que pelo menos alguém conhecido estava por perto. Isto não foi suficiente para evitar que o meu travesseiro ficasse um pouco molhado pelas lágrimas de uma saudade precoce.
O Seminário ainda não estava acabado. Na realidade, somente havia a ala do refeitório e metade da ala central. Apenas no ano seguinte tiveram início as obras da outra metade da ala central e da ala do salão de estudos e capela nova. Onde seriam os andares inferiores da construção a ser feita, os alunos do Admissão tiveram o seu campo de futebol privativo, pois o Reitor, Monsenhor Luiz Gonzaga, proibia os demais alunos de utilizá-lo.
Faltavam muitas coisas nos primeiros dias. Lembro-me que minha primeira sala de aulas foi no porão posteriormente utilizado para a guarda de malas e outras tranqueiras. Os chuveiros só tinham água fria e os vasos sanitários não tinham assentos, sendo que os alunos tinham que providenciar, cada um, os seus próprios rolos de papel higiênico. Guardávamos esses rolos na carteira do salão de estudos.
Logo no primeiro dia, tomamos conhecimento da primeira regra disciplinar. Estávamos divididos em três grupos, três recreações, como eram chamados: os Menores, os Médios e os Grandes. Quem era de uma recreação não podia ficar conversando com os alunos das outras recreações. Aprendemos, também, que os alunos deviam se deslocar em filas duplas, quando a comunidade estivesse se dirigindo ás dependências do prédio, em silêncio, de preferencia rezando o terço ou, então, era permitido que, nessas ocasiões, trabalhássemos artesanalmente, confeccionando rosários de contas, que eram enfiadas em arames, trabalhados com pequenos alicates. Isto era uma novidade engraçada e eu, logo na primeira visita de meu pai, encomendei um alicate e o material necessário.
A chegada ao Seminário se deu em alguns ônibus da empresa que fazia a ligação entre São Roque, Araçariguama e Pirapóra, por uma estrada poeirenta e sinuosa, cheia de subidas e descidas, pelas quais os motores dos veículos gemiam. Cinco quilômetros adiante, paramos em frente a uma porteira e, enquanto aguardávamos sua abertura, tivemos a primeira lição de Latim: "Parva domus magna quies". Era a inscrição que o caseiro do Seminário havia colocado na varanda de sua casinha, bem em frente à estrada que dava acesso ao prédio, frase essa, certamente, ditada por um dos nossos futuros professores.
Subimos por uma pequena avenida de terra, cercada de bosques e caramanchões de cipreste, para chegar ao pátio dos fundos de um prédio de tijolinhos, muito simpático. Guardamos nossas coisas nos armários do Dormitório e as malas no porão. Passamos a receber as primeiras instruções.
Todos nós já tínhamos, cada um, um número, pelo qual passaríamos a ser conhecidos, dali em diante. Esse número fora pregado em nossas roupas. Eu era o 55, número que nunca mais abandonei. Fiquei tão habituado a ser chamado pelo número que, certa ocasião, estava eu no pátio, na hora do recreio, e o Padre Ministro resolveu chamar-me, para dar uma notícia que minha família enviara, sobre o falecimento de um parente: por mais que me chamasse de Paulo eu não prestei qualquer atenção e só fui atendê-lo quando o Padre Constantino resolveu, já meio bravo, chamar o meu número. De fato, naquela época, eu era mais 55 que Paulo.
No próximo capítulo, eu conto como foi o nosso primeiro retiro espiritual.