CAPÍTULO 2

RETIRO ESPIRITUAL

 

        Todos os anos, quando os seminaristas retornavam das férias, havia um retiro espiritual de 3 dias, como preparatório para o novo período de formação.

        Os padres diziam que vínhamos muito "dissipados" das férias. O retiro espiritual era para afastar o espírito mundano e reintegrar os hábitos de religiosidade e de estudos.

        Não me lembro de ter ouvido outras pessoas usando a expressão "dissipado". No Seminário, era empregada com certa freqüência.

        Em um outro capítulo, irei descrever o comportamento permitido para um seminarista, durante as férias. Ficará evidente que esse conceito de "dissipação", referido pelos padres, era um grande exagero. Mas deixemos este assunto para a ocasião oportuna.

        Tudo o que eu sabia sobre retiros, quando era menor, consistia em ver meu pai, todos os anos, no Carnaval, ir para o Colégio Arquidiocesano, para lá fazer o seu retiro espiritual, junto com os seus colegas congregados marianos.

        Alguns anos depois, fui com meu pai, várias vezes, até Barueri, perto de São Paulo, onde a Federação das Congregações Marianas tinha uma "Casa de Retiros" denominada Vila São José. Era um lugar muito bonito, com um grande lago cheio de carpas, rodeado de caramanchões de cipreste que eu, anos depois, iria encontrar outros parecidos, no Seminário de São Roque. No Ibaté, esses caramanchões ficavam ao lado da avenida que se estendia desde a estrada até o pátio de recreação.

        Nessas idas a Barueri, usávamos o automóvel da Federação Mariana, um Chevrolet do fim dos anos 30, seguindo pela estrada poeirenta que ligava São Paulo a Itu, provocando desconforto e mal-estar. Lembro-me que, numa dessas viagens, o carro estava lotado e eu, bem pequeno, viajei no colo de Dom Antônio Maria Alves de Siqueira, que era o bispo auxiliar de São Paulo e coordenava os assuntos marianos.

        No primeiro ano de existência do Seminário Menor de São Roque, em 1949, tivemos o que se poderia chamar de um ante-retiro.Algo que, se Santo Inácio de Loiola estivesse presente, teria ficado desapontado.

        Os padres foram compreensivos e deixaram que os três dias transcorressem da forma como nós, os novatos, imaginávamos que fosse um retiro espiritual. Ao final desse exercício, comunicaram que a prática divulgada pelo fundador dos jesuítas não era nada daquilo e que, dentro de um mês, haveria um novo retiro, de verdade.

        O pátio do Seminário era um espaço suficiente para comportar um pequeno campo de futebol e algumas quadras de vôlei, além de um carrossel e um galpão onde havia algumas mesas de pingue-pongue. Dele podiam-se ver, ao longe, alguns morros, dentre os quais se destacava o Saboó.

        Essa elevação foi e continua sendo um ponto de referência para os freqüentadores do Ibaté. Fica onde nascem o sol e a lua, apresentado, ao cair da tarde, o surgimento da "estrela vespertina", o planeta Vênus, que dá início à noite, de forma imponente. Lá iam despontando as constelações do zodíaco, cujo desfile o céu escuro do Ibaté permitia fôssemos contemplando, ao longo da noite.

        Eu sempre fui apaixonado pelo Saboó e, nos cinco anos em que vivi em São Roque, não me cansava de ficar admirando o seu vulto, de dia ou de noite. Lembro-me, até, das árvores que ficavam no seu cimo e que apareciam em destaque no cenário formado por esse morro.

        Fiquei triste quando os alunos maiores organizaram uma expedição ao Saboó e os padres não permitiram que os menores participassem.

        Mesmo depois de ter saído do Seminário, voltei muitas vezes à estradinha que ligava São Roque a Araçariguama, só para rever o Saboó, que tantas recordações me trazia. Fiz isto durante muitos anos, até recentemente, embora não fosse possível entrar na área do nosso velho colégio.

        Se tivesse que escolher um nome para o nosso internato, eu o chamaria de Seminário do Saboó. Aliás, no meu tempo, nos primeiros anos de vida do nosso Seminário, não se dava muita importância ao Ibaté. Falávamos muito mais em Seminário de São Roque.

        O Saboó, contudo, em nada contribuiu para desvirtuar o nosso primeiro retiro espiritual. O verdadeiro culpado foi o barranco de terra branca, que ficava nos fundos do pátio de recreação. Os novatos passaram os três dias de "retiro" dedicando-se ao artesanato, confeccionando bonecos de terra, casinhas de barro, labirintos e outras brincadeiras que costumam ser feitas com areia.

        Claro está que isto não era feito no silêncio recomendado pelos pregadores. Na realidade, o retiro foi uma boa diversão para os novos seminaristas, com intervalos para meditação e orações coletivas. Os alunos do Admissão gostaram muito e, ao final de três dias, foi com surpresa que recebemos a notícia de que havíamos nos comportado muito mal e que estava completamente errado ficar fazendo brincadeiras na argila, em vez de meditar e rezar. Não me lembro de pormenores dos demais retiros mas, este, ficou registrado para sempre.

        A tagarelice durante o retiro serviu para nos entrosarmos e fazermos as primeiras amizades. Lembro-me que foi nessa ocasião que fiquei conhecendo o Durval (de Itú) e o Vítor (de Jundiaí), que passaram a ser bons camaradas. Mais tarde, esse nosso grupinho foi crescendo, passando a fazer parte dele os demais companheiros de classe e de recreação, todos muito bons amigos.

        O retiro espiritual era uma ocasião especial de meditação e de orações. Contudo, rezar era um dos quatro itens que compunham de forma marcante o nosso dia-a-dia: oração, estudo, silêncio e jogos.

        De fato, sobrava muito pouco tempo para conversa fiada. Tínhamos, ao todo, perto de duas horas por dia para falar com os colegas: quinze minutos no intervalo após as primeiras aulas da manhã, outros quinze minutos na parte da tarde, quarenta minutos após o almoço ( onde era obrigatório praticar vôlei ou pingue-pongue) e quarenta minutos após o jantar. Nos dias de folga, o espaço aberto para conversas era ampliado. Por incrível que pareça, as horas de aula eram o momento adequado para se quebrar um pouco o rigor do silêncio, pois alguns professores faziam vista grossa para alguma ligeira indisciplina.

        Falarei mais tarde sobre a forma organizada em que ocorriam as conversas após o jantar. Por enquanto, o nosso assunto é a oração.

        Começava ao pé da cama, no momento em que acordávamos. Depois da higiene matinal, íamos para a Capela, onde tínhamos a meditação e a missa. Quando, após a ginástica, íamos tomar o café da manhã, rezávamos antes e depois dessa refeição. No salão de estudos e nas salas de aula, no início e no fim de cada sessão, orávamos. Antes e depois do almoço e do jantar, também. Íamos à capela, várias vezes, durante o dia, para o terço, o exame de consciência, a leitura dos evangelhos e, à noite, antes de dormir, voltávamos a nos reunir aos pés da imagem de Nossa Senhora, para as orações noturnas e a fixação do tema da meditação do dia seguinte. Tínhamos a recomendação de ir pensando nesse tema, até adormecer. Antes de se apagarem as luzes, no dormitório, ainda rezávamos as últimas ave-marias.

        A oração, portanto, estava presente ao longo de todo o dia. Muitos, nas filas em que nos deslocávamos coletivamente pelo prédio, rezavam o terço. Os mais fervorosos, ainda, durante os recreios, encontravam sempre uns minutinhos para irem até a Capela, para uma reza particular.

        Em meio a tanta religiosidade, ainda tínhamos, todos os meses, uma manhã de recolhimento, um meio-retiro, para reforçar a reflexão e a ligação com o mundo espiritual. Um dos padres era o pregador. Nos retiros mais longos, às vezes, eram convidados oradores de fora. De vez em quando, o vigário de São Roque comparecia durante os retiros, para ouvir confissões, dando assim oportunidade para termos o aconselhamento de um sacerdote não ligado à nossa comunidade. Foi vigário de São Roque o Padre Mário Ranaldi, carmelita que, muitos anos mais tarde, como padre secular, veio a ser o titular da Igreja do meu bairro, em São Paulo, onde faleceu enquanto rezava a missa. Era um verdadeiro santo.

        Ainda como prática religiosa, tínhamos as reuniões do círculo literário, onde os alunos tinham por obrigação apresentar uma poesia sobre Nossa Senhora. A biblioteca do Seminário era muito pobre em livros e logo se esgotaram os versos marianos disponíveis. Quando chegou a minha vez, não havia nada que já não tivesse sido apresentado. Como "quem não tem cão caça com gato", não tive dúvidas: inventei um pseudônimo (Eduardo Caiapó) e apresentei à censura prévia do Padre Espiritual a poesia que eu iria recitar, (de minha autoria). Lembro-me, ainda, da expressão de gozação do Padre Paschoal, quando se referiu àquele "autor" com nome de índio, que ele "desconhecia". Mas aprovou a minha poesia e eu a li para os colegas, na reunião do círculo literário. Não chegou a ser um sucesso mas cumpriu sua finalidade.

        Essa poesia teve melhor sorte que o trabalho que eu apresentei no círculo literário, dias antes de sair do Seminário, em 1953, cujo crítico foi o Darcy Corazza, que não gostou muito do seu conteúdo e fez um discurso desfavorável, desconhecendo as circunstâncias em que ele estava sendo apresentado. Se ele esperar até o último capítulo, poderá saber que circunstâncias foram aquelas e que não estava em jogo o trabalho literário em si mas uma "guerrinha" com o nosso querido Padre Ministro, hoje lembrado com saudades e carinho por todos nós.

        O momento de maior emoção religiosa, na minha opinião, estava na "Hora da Ave-Maria", comemorada todo sábado, no final do recreio que se seguia ao jantar. O Padre Constantino colocava na janela do seu quarto um enorme alto-falante (presença obrigatória dos melhores momentos do Seminário), tocando a inesquecível música de Gounod, seguida de uma recitação sobre a Virgem, feita por um aluno dos mais adiantados, enaltecendo Nossa Senhora e convidando à prece. Esse momento sempre me comoveu e é a recordação que eu gosto de ter daquele bom padre.

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        Em outro capítulo, falarei dos estudos e da recreação.

CAPÍTULO 3