CAPÍTULO 5
AS VISITAS DOS PAIS
"Non dubito fore plerosque, Attice, qui judicent hoc genus scripturae leve atque non satis dignitate summorum virorum personis".
O Padre Constantino, bom latinista, corrigia Cornelius Nepus: - "Non dubito ut futuri sint plerique qui judicent hoc genus scripturae leve............."
Muitos também hão de achar este meu pequeno livro superficial. Realmente, não é obra de retórica e precisa ser entendido como um depoimento modesto sobre fatos de uma época já distante 50 anos, muito diferente dos dias de hoje. Se, quem viveu essa época, não deixar escritas as suas lembranças, a grande maioria das pessoas perderá a oportunidade de conhecer um passado de coisas que não existem mais. Os que vivemos o início dos anos 50 somos uma minoria. Hoje não há mais Seminários como o de São Roque. Os mestres também não são mais como aqueles que venho descrevendo.
Os nossos pais também eram diferentes. É difícil explicar a uma criança ou a um adolescente de hoje, por exemplo, que bastava um olhar do pai ou da mãe para que seu filho mudasse imediatamente de atitude. Que, na mesa, criança não conversava. Que, chegando uma visita, as crianças não deviam ficar na sala. Que namoro dos jovens somente podia acontecer com a presença de uma terceira pessoa, "segurando a vela". Que professor era respeitado na sala de aula. Que criança ouvia, de cabeça baixa, com respeito e temor, as admoestações. Que se tomava a benção dos pais, avós e tios.
Por outro lado, criança podia brincar na rua o dia todo, pois não havia perigo. Havia quintais grandes e não playgrounds de condomínios. Pulava-se a "amarelinha", brincava-se de pega-pega e de esconde-esconde. Correr pelas ruas empurrando um aro de metal com o cabo de uma vassoura ou rolando um pneumático velho era tão divertido quanto hoje é jogar video game. Voltar sozinho da escola, junto com os colegas, era normal, pois as mães nem tinham carro para fazer fila dupla na porta do colégio. Naquela época, criança ganhava roupa, em vez de brinquedo, e não ficava triste.
Isto, às vezes, tinha um preço alto. Eu, certa ocasião, um ano antes de ir para o Seminário, ganhei uma mala de escola, no dia do meu aniversário. Sim, mala nova era presente, também. Quando voltava da escola, com os meus colegas, um deles, maldosamente, deu um tranco em minha mala e a jogou no meio da rua. Sai correndo atrás do moleque e um carro atropelou a nós dois. Fiquei boas horas desacordado e tive uma amnésia. Até hoje, só sei o que aconteceu e os fatos seguintes, porque me contaram.
Com isto, quero dizer que não devem levar as minhas críticas ao sistema de então como um desabafo. Estou apenas retratando uma época diferente da atual e considero importante que as pessoas de hoje possam ter conhecimento do que se passava há cinqüenta anos. Pouca gente teve a oportunidade de viver dentro de um Seminário. Podem ter curiosidade de saber como era essa vida.
Quanto ao Padre Ministro, citado com freqüência nestes meus apontamentos, era efetivamente uma pessoa severa. Porém, para nós, ele era, mais que tudo, o substituto da figura paterna. Um pai à moda antiga, exigente, mas preocupado com o bem estar da família e provendo as necessidades de todos, com um afeto às vezes mal demonstrado mas, sem dúvida, verdadeiro.
Nossa vida girava em torno da figura do Padre Ministro. Pela sua personalidade forte, o Padre Constantino era mais importante para nós que o próprio Reitor. De uma certa forma, o Seminário de São Roque era o Seminário do Padre Constantino. Sem ele, o Ibaté não teria sido o mesmo.
Tenho uma dívida de gratidão para com ele: creio que um dos piores momentos de minha vida foi o falecimento de meu pai, em 1975. Fiquei profundamente chocado. No seu velório, eu chorava copiosamente, não conseguindo me controlar. E, quem estava lá, para carinhosamente me abraçar, apertando-me contra o seu peito longamente, num gesto verdadeiramente paternal ? Dom Constantino Amstálden, o Bispo de São Carlos.
Faço esta introdução porque já falei bastante em tom de crítica e outros assuntos desse teor serão tratados, até o fim do livro. O meu pequeno trabalho é uma dissertação de muito saudosismo sobre nossa adolescência, conta episódios banais, procura adotar um tom de graça, é propositadamente leve, mas seu principal objetivo é revelar um mundo que ficou para trás. Poderá ser útil a quem quiser analisar aquela época. Muita coisa poderá ser encontrada nas entrelinhas, também.
Dadas essas explicações, falemos dos dias de visitas em São Roque.
Os pais e parentes podiam ir ao Seminário, uma vez por mês, em um dos dois domingos reservados para o seu comparecimento. Não era permitido que fossem com maior freqüência.
Havia um trem que chegava a São Roque por volta das nove horas da manhã e outro que partia para São Paulo lá pelas 16 horas. Meus pais se encaixavam nesses horários. Do centro de São Roque, tomavam o ônibus que fazia o percurso até Araçariguama e os deixava na porta do Seminário.
As visitas traziam lanches e promoviam piqueniques sob as árvores, nos caramanchões, no bosque ou no salão que ficava na parte inferior, com entrada pela frente do prédio. O edifício tinha 3 andares, se visto de frente, ou 2, se observado pelo pátio dos fundos. Tinha um corpo central, com duas alas laterais. Ficava em um declive, razão pela qual foram construídas algumas salas, na frente, ao rés do chão, compondo o terceiro andar, que não era visto dos fundos.
Quando chegamos a São Roque, em 1949, somente metade do prédio estava pronta. Para construir o restante, os operários abriram um grande buraco, com picaretas, fazendo cortes no barranco, de modo a formar uns grandes cubos de terra que, com uma alavanca, eram derrubados em uma carroça puxada a burro. Às vezes, o animal se assustava e disparava até o começo da descida que ia dar na piscina, perto de um lugar onde, mais tarde, foi construído um cruzeiro. Essa corrida do burro era uma diversão para nós, que ficávamos torcendo para que acontecesse.
Nos dias de visita, nem todos iam de trem. Havia um caminhão, com placa de Salto, que trazia uma família numerosa. Creio que eram os Lamoglia.
A primeira visita que recebi foi de meu pai. Mamãe estava acamada e foi sozinho, para meu desaponto, pois eu estava morrendo de saudades de Dona Maria Paula. Não tinha avisado que era necessário trazerem o lanche e o meu pai acabou conseguindo que nós dois almoçássemos no refeitório dos alunos, após a saída destes.
Papai sempre teve um bom relacionamento com os padres, pois a empresa onde ele trabalhava pertencia a uns senhores muito católicos e tinha uma seção de artigos religiosos, onde padres e freiras sempre tiveram excelentes descontos. Mais tarde, eu também trabalhei nessa empresa e sei como os seus diretores eram condescendentes com o clero. Era nessa empresa que o Seminário alugava os filmes que eram exibidos, duas vezes por mês. Procuravam sempre fornecer filmes adequados para os seminaristas. Certa vez, não tendo mais nada novo no estoque, encontraram um filme denominado "Anjinhos de Cara Suja". Só vimos as primeiras cenas, com um casal de namorados se beijando. O filme foi suspenso e ficamos sem cinema.
Por ocasião da Copa do Mundo de 1950, essa empresa deu de presente um aparelho de televisão para o Seminário, o que era uma novidade, na época. Instalaram o aparelho junto à sala do Reitor e só foi permitido que alguns alunos, dos Grandes, assistissem alguns jogos da Copa e alguns programas. Os demais tiveram que se contentar com o último jogo, aquele em que o Brasil perdeu o título para o Uruguai, quando o televisor foi instalado no pátio do recreio.
Acompanhados das visitas, podíamos passear por toda a propriedade, indo até o alto do morro de onde se via São Roque, descendo até a piscina, pelo bosque que tinha uma gruta com a imagem de Nossa Senhora, ou passeando no outro bosque, ao lado dos caramanchões, que era muito pitoresco, com um curso dágua que formava um pequeno lago.
Monsenhor Luís Gonzaga de Almeida, nosso primeiro Reitor, costumava dar aulas de Religião aos alunos do Admissão, nesse bosque. Um dia, eu vi um bule velho jogado perto do riacho e resolvi pegá-lo. Quando percebi, entre minha mão e o bule havia uma grande aranha caranguejeira. Nunca vi um bule voar tão longe.
As visitas serviam também para as famílias irem se conhecendo, pois ficavam todos nos mesmos lugares. Isto fazia com que pudéssemos perceber alguns lances engraçados, como o de uma mãe de certo aluno muito mimado, que era filho único, respondendo com uma voz lamuriante aos inúmeros pedidos de compras de novos objetos: -"Tômpo, filhinho, tômpo !"
Fora desses dias, os pais só compareciam em datas festivas. Era montado um palco no refeitório, pois o anfiteatro ainda não havia sido construído, onde eram apresentados alguns esquetes e números de música, geralmente peças musicais famosas, com sua letra adaptada para a circunstância. Na festa dos pais, uma música erudita ficava com a seguinte letra:
O Seminário festeja
Os pais eleitos por Deus
Para doar à Igreja
Aqueles que são os filhos seus.
Meu pai furou algumas vezes o esquema de visitas. Em um dia de entrega de boletins, não sei bem porque, ele apareceu, quando a sessão já estava iniciada. Convidaram-no para fazer parte da Mesa e, para alegria minha, fui chamado para receber a medalha de primeiro aluno da classe, naquele mês. Algumas vozes maldosas sussurraram que aquilo tinha sido arrumado. Pura maledicência. Meu pai não sabia que aquele era dia de entrega de medalhas, os padres não sabiam que ele iria comparecer e, para mim, não era novidade ser o primeiro da classe.
Embora essa honraria estivesse geralmente reservada para o Marcos Mazzetto ou para o Davi (de Ibiuna), eu, que geralmente era o segundo ou o terceiro, muitas vezes obtive o primeiro lugar. Tenho ainda guardadas várias medalhas. Lembro-me de uma época em que eu estava meio displicente, quando o Padre Paschoal me chamou ao seu quarto e passou uma descompostura, exigindo que, no mês seguinte, eu fosse o primeiro da classe ou, ao menos, obtivesse média 9,5. O sermão valeu: tirei o primeiro lugar, com a média nove e meio. Só que ele esqueceu de exigir nota dez em comportamento e, como era regra, eu fui obrigado a receber minha medalha, sem subir ao palco.
Aliás, acho que naquele episódio da presença do meu pai, no dia da entrega de boletins, houve mesmo uma "proteção", não dos professores mas do Padre Ministro, que deve ter arredondado a minha nota de comportamento para dez, para que eu pudesse subir ao palco. Quando fui chamado, eu que não tinha ainda tido a oportunidade de cumprimentar o meu pai, dirigi-me ao palco sem qualquer hesitação, caminhando em direção ao Reitor, cumprimentei-o, depois me dirigi a meu pai, de quem tomei a benção agindo de modo bem formal, passando a seguir a apertar a mão dos demais componentes da Mesa. O Darcy Corazza, que não perdia a oportunidade de fazer um comentário, disse que eu agira com muita classe, parecendo um diplomata. A observação valeu mais que a medalha e eu fiquei devendo a gentileza, o que procurarei pagar no parágrafo seguinte.
Assim como o Padre Constantino era o destaque entre o corpo diretivo do Seminário, havia um aluno que se projetava dentre os demais, a ponto de minha mãe, que só via os meus colegas nos dias de visitas ou de festas, me perguntar, até hoje, quando já tem 90 anos: - "Como era mesmo o nome daquele seu colega, que eu costumava apelidar de Dono do Seminário ?