CAPÍTULO 6

O ANGELUS E O ÂNGELO

 

        No dormitório, o silêncio era regra. Quando as luzes se apagavam, no corredor central, duas lâmpadas ficavam acesas, uma em cada ponta do salão, em abajures pendentes do teto, pintados com cores escuras, para deixarem transparecer apenas uma tênue luz azul.

        Até que os alunos adormecessem, um padre permanecia andando pelos corredores, a passos lentos, sem fazer ruído, com o rosário nas mãos.

        As muitas janelas deixavam a claridade da manhã ir invadindo o recinto e despertando os alunos. Os mais sonolentos eram despertados pelas badaladas de um sino que ficava no andar de baixo, pendente de uma das paredes do pátio do recreio.

        Antes que esse sino soasse, não era permitido a quem já estivesse acordado ir ao banheiro. À primeira badalada, porém, todos eram obrigados a não permanecer em repouso, devendo imediatamente trocar de roupa.

        Era um exercício de obediência, igual ao que praticávamos no salão de estudos: soando o sino, ao ouvirmos a primeira badalada, tínhamos que parar de escrever, deixando incompleta não só a frase, mas a palavra que estava sendo redigida.

        A troca de roupa no dormitório obedecia a um ritual que procurava impedir que ficássemos nus na presença dos colegas, mesmo da cintura para cima. A camisa devia ser retiradas por partes, primeiro uma manga, logo substituída pela manga do pijama, depois a outra, completando-se o ato de vestir o paletó do pijama. As calças somente poderiam ser trocadas depois que a luz se apagasse, por baixo das cobertas. No dia seguinte, de manhã, repetia-se o ritual, em sentido inverso.

        Uma das regras vigentes era que doces e guloseimas deviam ser repartidos com os alunos da mesma mesa, no refeitório. Os mais gulosos, visando burlar essa norma, levavam doces e bombons para o dormitório e, à noite, quando as luzes se apagavam, ouvia-se o barulho característico de papel celofane sendo desembrulhado, em vários pontos do salão.

        Tão logo nos levantávamos, o primeiro ato era nos ajoelharmos aos pés da cama e rezarmos o Angelus. Mesmo quem estivesse muito necessitado de ir ao banheiro tinha que aguardar o fim dessa oração. Um dia, aconteceu um desastre comigo, que foi um vexame. No meio das ave-marias, tive que correr para o banheiro, sob o olhar severo do Padre Ministro que, porém, nada falou.

        Ao lado de minha cama, dormia o Ângelo. Era meu colega de classe. Certa vez, quando eu acordei de manhã, vi sua cama vazia. Nem sinal do Ângelo. Não estava no banheiro, não apareceu na capela, não foi tomar o café da manhã. Que fim teria levado o Ângelo ?

        Padre Pedro, então encarregado da disciplina, ficou fora de si e veio me procurar. Lembro que era uma manhã de retiro espiritual mas ele não se incomodou por quebrar o silêncio. Eu era, naquela época, o encarregado da turma dos Menores, uma espécie de ajudante de xerife que, no caso, era o aluno que estava ocupando o cargo de Prefeito.

        O assustado Padre Pedro exigiu que eu desse conta do Ângelo. Mandou que eu saísse pelos arredores, à procura do colega. Só poderia voltar com o Ângelo ao meu lado. Esqueceu-se de que eu era, apenas, um menino de 13 ou 14 anos.

        Antes que a decisão do Padre Pedro fosse posta em prática, um telefonema vindo de São Paulo esclareceu o mistério. O Ângelo havia fugido. Fora até São Roque, não sei se de ônibus ou a pé, pulou no vagão de um trem cargueiro, no melhor estilo de filme de faroeste, desceu na Lapa, ligou para sua família e encaminhou-se para a sua residência.

        Porque será que o Ângelo não pediu simplesmente para ir embora, hão de perguntar muitos. Porque fugir ? Quando eu me lembro das dificuldades que tive quando fui pedir para sair do Seminário, digo que sou capaz de entender, pelo menos em parte, as razões do Ângelo. Para ele foi mais fácil fugir. Gostaria de reencontrá-lo, para ouvir os seus motivos.

        O que ficou engraçado foi o Padre Pedro, no seu desespero, achar que eu, por ser vizinho de cama do Ângelo, tivesse alguma cumplicidade com a fuga. Logo eu que dormia como pedra e que só acordava com a badalada forte do sino.

        Nem todos os casos de saída do Seminário foram assim tão românticos. Houve poucos alunos que foram convidados a se retirar. Recordo-me de um caso que o Padre Reitor pediu fosse guardado em segredo mas que, decorridos quase 50 anos, creio que já posso contar, sem revelar o nome, porém.

        Um dia, estávamos eu e o Fornazieri jogando xadrez em um tabuleiro que havíamos colocado sobre a mureta da escada que descia para o porão, no fim do corredor que passava pelo refeitório, quando um terceiro aluno se aproximou, para ver o jogo. Quando estávamos concentrados na jogada, de repente, esse terceiro aluno, de forma inesperada, acabou agarrando uma parte do meu corpo que eu jamais imaginei que pudesse despertar o interesse de qualquer colega. Fiquei tão assustado que minha reação foi dar-lhe um empurrão.

        Ao contrário do que muitos leigos possam pensar sobre os colégios internos, no Seminário de São Roque não havia lugar para coisas desse tipo. Éramos muito ignorantes em matéria de sexo. Entrávamos no colégio com onze anos de idade, totalmente inocentes, pois, antes de sermos seminaristas, já levávamos uma vida de pureza e religiosidade, pois estávamos nos preparando para uma carreira muito especial. Quando eu saí do Seminário de São Roque, aos dezesseis anos, não sabia coisas que todos os rapazes da minha idade estavam cansados de conhecer.

        Como eu disse, minha reação impulsiva foi dar um safanão naquele colega. Dias depois, durante uma sessão de cinema, no anfiteatro, aquele mesmo colega deu um jeito de sentar-se ao meu lado e, assim que as luzes se apagaram, atacou-me novamente, de forma mais acintosa. Desta vez, minha reação foi mais séria. Dei-lhe uns murros e expulsei-o de perto de mim.

        Quando a sessão de cinema acabou, eu fui procurar o Padre Espiritual e contei-lhe o sucedido. Este, nada podendo fazer, em razão do sigilo de confissão imposto ao seu cargo, disse-me que o assunto era muito grave e que eu devia procurar o Reitor. Fiz isto no dia seguinte, logo cedo. Na parte da tarde desse dia, o Reitor me chamou e comunicou-me que aquele aluno já estava em sua cidade de origem e que não retornaria mais ao Seminário. Foi o único caso da espécie de que ouvi falar, enquanto estive em São Roque. Não acredito que tenham ocorrido outros semelhantes.

        Perda lamentável foi a do nosso colega Jésus. Morreu enquanto tomava banho de piscina. Havia tomado o chá da tarde, não sei se comeu mais que o normal, e foi nadar. Sentiu-se mal e afundou na piscina. Como a água era bastante turva, pois não era uma piscina azulejada e de água tratada, foram necessários vários mergulhos de colegas mais experientes para encontrá-lo. Foi um dia muito triste e um choque terrível para todos nós.

        Não tínhamos uma enfermaria, de forma que, quando alguém ficava de cama, permanecia no próprio dormitório. A única exceção foi a gripe coreana, que derrubou vários alunos e professores. Foi uma epidemia brava, que atacou muita gente, no Brasil e em outros lugares, na época em que se desenvolvia a Guerra da Coréia, daí o seu nome.

        Para diminuir o contágio, foi improvisada uma enfermaria, usando, para tanto, dois quartos que normalmente eram dos padres. As camas foram colocadas bem juntas, lado a lado, lotando os quartos. Naquele tempo, a penicilina ainda era novidade e tinha que ser tomada por injeção intramuscular, em muitas doses, a cada duas horas, durante vários dias. Tínhamos um colega que havia sido farmacêutico e se desdobrou de forma abnegada, dia e noite, até ficar exausto e cair também doente. Tomamos tantas injeções que o meu braço mais parecia o fundo de um coador de chá, cheio de pontinhos pretos.

        Lembro-me que um tio meu, que tinha farmácia no Brooklin Paulista, contava que, nessa época, era obrigado a permanecer na casa dos clientes, durante toda a noite, aplicando injeções, revezando-se com os seus auxiliares, que ficavam durante o dia. É incrível. Hoje, para tomar antibióticos, bastam uma, duas ou, no máximo, três doses diárias de simples comprimidos, que são tomados por boca, sem necessidade de injeções.

        São os progressos da medicina. Naquele tempo, São Roque não tinha qualquer hospital. Havia um médico que, uma vez por ano, ia ao Seminário fazer um check-up geral nos alunos. Um dia, eu estava com umas dores no lado direito do abdome, quando esse médico apareceu. Fez um exame geral e, quando foi apertar minha barriga, senti dor forte e ele, depois de examinar melhor, sentenciou: - "É apêndice, moço. Se continuar doendo, avise que nós vamos operar". Confesso que senti um medo enorme. Fiquei pensando como ele iria me operar, se São Roque não tinha hospital. Não me ocorreu que ele iria me levar para uma cidade próxima, mais provida de recursos. Só sosseguei quando obtive autorização para ir a São Paulo, para me tratar com um tio meu que era médico. Permaneci em São Paulo uns quinze dias.

CAPÍTULO 7