CAPÍTULO 7

O REFEITÓRIO

 

"W I N E T O U" !

Karl May

        No meio do salão do refeitório, de pé, diante de um pedestal que suportava um livro, o aluno designado para ser o Leitor, com voz firme, pausada, procurando falar alto para que todos ouvissem, anunciava o início de mais um trecho da história que vinha sendo apresentada durante as refeições principais.

        Antes, os alunos haviam entrado em silêncio, em fila, como sempre fazia a comunidade para se deslocar pelo prédio. Cada um havia se dirigindo para a sua mesa e tomando um lugar, de pé, à frente de sua cadeira. Em coro, rezavam uma simples ave-maria, no caso do café da manhã ou do chá da tarde, ou, então, as orações rituais para antes do almoço ou antes do jantar. Quando terminassem a refeição, iriam rezar novamente.

        Assim que todos se acomodassem, os alunos escalados para serem os garçons iriam trazer as travessas e terrinas, com os alimentos preparados pelas cozinheiras, sob comando das freiras de Jesus Crucificado.

        A cozinha ficava separada do refeitório, sem uma comunicação direta. Havia apenas uma janela, na qual fora instalado um cilindro rotatório de madeira, com meia abertura na parte de baixo e outra meia abertura a 180 graus, na parte de cima, cada uma dessas aberturas tendo uma bandeja, para que fosse permitido passar os pratos da cozinha para o refeitório e vice-versa, sem que se pudesse olhar, de um desses recintos, para dentro do outro. Essa roda tinha por finalidade isolar completamente os seminaristas das irmãs e cozinheiras.

        Havia uma preocupação muito grande para que os alunos tivessem uma vida totalmente separada das demais pessoas que prestavam serviços ao Seminário. Na verdade, somente víamos as freiras no sábado, dia da semana em que levávamos nossas roupas para a lavanderia. Geralmente, a Irmã Superiora ficava recebendo as sacolas de roupas a serem lavadas e, ao mesmo tempo, entregando as já lavadas e passadas, que havíamos deixado no fim da semana anterior. Como sempre, íamos até a lavanderia em fila, cada um com sua sacola de roupas. Todas as peças eram numeradas, com etiquetas costuradas às mesmas, contendo a identificação do aluno, para facilitar a separação e conferência. Meu número era o 55. As mães haviam recebido orientação nesse sentido, quando foram entregues as listas do enxoval. Esse número tinha que ser posto, também, nos objetos de uso pessoal, cadernos, livros, etc.

        Fora dessa ocasião, raramente víamos as irmãs, que residiam em dependência totalmente isolada do prédio dos alunos, com entrada pela avenida que vinha desde a estrada de rodagem até o pátio de recreio. As freiras tinham, inclusive, capela própria, não participando das cerimônias religiosas dos alunos.

        Às vezes, quando, por doença, algum aluno tinha que permanecer no dormitório, encontrava a Irmã Superiora, que costumava fazer uma ronda, para verificar se o serviço de limpeza estava bem feito. Um dia, estando de cama, eu aproveitava o ócio para costurar umas roupas e pregar uns botões. A Superiora passou e comentou que eu tinha muita habilidade para isso. Expliquei-lhe que devia ser um dom herdado de meu avô, que era um alfaiate de renome, em São Paulo.

        Não tínhamos quase contato com os demais empregados, raramente surgindo uma oportunidade para trocarmos algumas palavras com o motorista ou algum outro servidor. Havia um senhor, já idoso, que era marceneiro. No fundo do pátio do recreio, numa pequena oficina, ao lado da garagem que abrigava o Ford 29 que pertencia ao Cônego João, ele fazia pequenos serviços com madeira. Certa vez, ouvi o marceneiro pedir ao seu ajudante o "insipié". Curioso, perguntei o que era. Disse que servia para "insipiá". Mas, o que é "insipiá", indaguei. Ora, é "acochá", respondeu. E "acochá", o que é ? Ele, então, fez um gesto esclarecedor, indicando o movimento que fazia com o instrumento, para aplicá-lo na madeira. Era, nada mais, nada menos que a plaina, usada para acertar a tábua que ele estava trabalhando.

        Sentados à mesa, no refeitório, um dos alunos dava início ao serviço, tomando o primeiro prato de comida e dele se servindo. Isto feito, passava o prato ao colega à sua direita. Cada aluno ia passando as travessas para o companheiro da direita, até a roda se completar. No dia seguinte, o primeiro a se servir era o aluno que ficava à direita daquele que tinha tido esse privilégio na véspera. Desta forma, ninguém tirava vantagem, em relação aos demais.

        Aliás, nenhum outro privilégio era permitido no refeitório. Quem tivesse recebido de sua família alguma lata de doce ou guloseima semelhante, podia guardá-la em um armário e, todos os dias, antes de se sentar, ia buscá-la, para reparti-la com os colegas de mesa. Era comum, nos dias de visita, as mães e demais parentes trazerem goiabadas, doces caseiros, compotas, etc. Minha família já trazia o suficiente para todos os de minha mesa se fartarem.

        A refeição preparada pelas freiras era simples, caseira e muito bem feita. Era abundante. Comíamos bem. Se alguma travessa se esvaziasse, antes de toda a mesa ter-se servido à vontade, os garçons, imediatamente, iam buscar nova remessa na cozinha. Como sobremesa, geralmente, era servida uma fruta do pomar.

        O Seminário tinha uma plantação bem numerosa de pereiras, que produziam aquelas pêras duras, esverdeadas, meio sem gosto. Na hora do lanche, era colocado junto à porta externa da cozinha um caixote cheio de frutas e fazíamos fila para nos servirmos. Um dia, reclamamos que não agüentávamos mais comer pêra. O Padre Ministro, aborrecido, passou um pito, dizendo que muitos de nós não tínhamos fruta nenhuma em nossas casas e que, no entanto, estávamos nos dando ao luxo de reclamar. Os alunos, em sua maioria, não eram de famílias abastadas, muitos eram amparados pela Obra das Vocações de suas paróquias mas, também, não era para tanto. Na minha casa, sempre tivemos frutas, mesmo que fossem apenas bananas.

        Uma fruta mais rara de se ter em casa era a maçã. Não havia, ainda, produção nacional dessa fruta, que vinha da Argentina, em caixotes forrados com papel de seda azul escuro, com a inscrição "Manzanas de Rio Negro". Quando eu era menino, não se encontravam maçãs nas quitandas dos bairros, em São Paulo. Era preciso ir ao centro da cidade, para adquiri-las. Aliás, acho que a recordação mais antiga que tenho é justamente esta. Eu nasci em 1937 e minha irmã Maria, em 1940. Portanto, a lembrança mais antiga que posso registrar é de quando eu tinha 2 anos e meio. Lembro-me de ter ido à maternidade para conhecer minha irmã. Naquele tempo, as crianças não ficavam em berçários mas no próprio quarto da mãe. Hoje em dia, estão voltando a adotar essa prática, pois dá mais conforto ao recém nascido. Recordo-me de minha irmã, com as bochechas muito vermelhas, na sua caminha. Depois da visita, fui com meu pai ao centro da cidade, para comprar maçãs para minha mãe.

        Naquele tempo, pelo menos na minha casa, maçã era privilégio de quem estava doente. Quando meus pais compravam essas frutas para um dos seus filhos eventualmente adoentado, os outros ficavam esperando para disputar o "sorvete", nome que dávamos à parte junto ao talo, não servida ao "feliz" enfermo.

        Em São Roque, as refeições eram tomadas em silêncio. Durante o almoço e o jantar, eram lidos livros. Na refeição do meio-dia, a leitura era sempre de uma história interessante, como o Winetou, de Karl May, que lembrava as aventuras de um índio nos Andes, A Vestal, de Edmundo de Amicis, uma história do tempo dos romanos, ou O Herói do Alcácer, contando a vida de um padre acusado de um crime que não cometeu mas cujo assassino não podia revelar, pois este se confessara com aquele sacerdote, acusando-se do pecado.

        Durante o jantar, o livro era sempre sobre a vida de um santo, como o Padre Vianney. Uma passagem de outro livro, que nunca esqueci, foi sobre São Luís Gonzaga, que era filho de nobres e levava à escola um pajem, para tomar nota da matéria, enquanto ele ficava concentrado, ouvindo as explicações do professor. Era uma esnobação de causar inveja. Esse santo era tão obcecado com a perfeição, que nunca conseguiu rezar um rosário por inteiro, pois, sempre que estava rezando uma ave-maria e, por alguma razão, se distraía, começava tudo de novo, desde a primeira dezena do primeiro mistério do terço.

        No fim do jantar, antes de nos levantarmos, era lido o Martirológio Romano, um livro que continha a relação de todos os santos que seriam comemorados pela Igreja, no dia seguinte.

        Quando, mais tarde, eu servi o Exército, em Quitaúna, lembrava sempre do Martirológio, quando, no fim do dia, o capitão reunia a tropa para ler o boletim do quartel, com os nomes de todos os envolvidos em atos burocráticos, promoções, dispensas, penalidades, etc.

        Aliás, a vida de caserna, por incrível que pareça, tinha muita coisa semelhante à do Seminário. Ambas eram organizações rígidas, com disciplina severa, embora uma voltada para a piedade e para a vida espiritual e a outra bem ligada às coisas materiais.

        Os padres não tomavam suas refeições no mesmo salão dos alunos. Tinham uma sala em separado e aproveitavam o almoço e o jantar para colocarem os seus assuntos em dia.

        Nunca tive oportunidade de apurar o que significava o Seminário para os professores e dirigentes. Embora fossem padres seculares, estavam ali em regime de quase clausura, isolados, pouco saindo para irem encontrar suas famílias, e nunca vi algum deles recebendo visitas.

        Deviam gostar daquele ambiente, pois o próprio Cardeal Motta, muitas vezes, para lá ia, quando queria descansar um pouco. Para nós era uma grande festa. Assim que víamos o seu carro se aproximar, corríamos para abraça-lo e beijar sua mão, pedindo que decretasse feriado, durante sua permanência. O bom arcebispo, muitas vezes, atendeu ao nosso pleito, para contrariedade dos padres, que viam as aulas interrompidas e o programa de ensino ser prejudicado.

        Outros bispos também nos visitaram, como Dom Paulo Rolim Loureiro, que gostava de ficar conversando com os alunos, quebrando completamente o cerimonial, Dom Antônio Maria Alves de Siqueira, Arcebispo de Campinas, que, nos retiros, fazia pregações de profunda reflexão, sempre se referindo à Virgem Maria, e Dom Ernesto de Paula, que esteve em São Roque uma vez. Sempre que recebíamos uma visita, o primeiro a anunciá-la era o Padre Constantino, tocando em alto som uma marcha norte-americana que ele devia adorar, pelo seu alto-falante de bocal grande, assentado na janela de seu quarto. Certa ocasião, recebemos a visita do Governador Lucas Nogueira Garcez, que veio acompanhado de auxiliares, em grande estilo. Tinha um irmão que era nosso professor, o Padre Matheus. Lembro-me que fui dar uma olhadinha no carro do Governador e vi duas metralhadoras de mão, cruzadas sobre o aparador que fica atrás do banco traseiro.

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