CAPÍTULO 8

OS PADRES

 

        Muito já falei sobre o Padre Constantino, o nosso Padre Ministro. Sua função era cuidar da disciplina e, também, dos assuntos relacionados com os nossos gastos. Controlava as listas dos alunos e registrava os pagamentos das mensalidades. Diversos alunos eram sustentados por suas famílias, outros contavam com o patrocínio de um amigo dos pais ou de uma empresa, e os que não tinham maiores recursos eram suportados pela Obra das Vocações, uma espécie de associação religiosa, existente em quase todas as paróquias, e que se encarregava de arrecadar contribuições dos fiéis para o sustento dos seus seminaristas.

        Enquanto viveu, meu avô foi o responsável pela minha estadia no Seminário, sendo sucedido pela empresa onde meu pai trabalhava.

        Quando recebíamos visitas, nossos pais nos davam algum dinheiro para pequenos gastos. Não podíamos ficar na posse dessas quantias, que eram entregues ao Padre Ministro. Este abria uma conta, em um livro caixa, em nome de cada aluno, e ia registrando as entradas e saídas do numerário.

        Às quintas-feiras, dias de folga no Seminário, em lugar do sábado, que era dia comum, costumávamos ir até o sítio de um português, a poucos quilômetros do colégio, comprar laranjas. Era um passeio agradável, feito a pé, pela estradinha que ia para a cidade de São Roque. Esse caminho era também o utilizado pelos donos de boiadas, para levarem seus animais até o matadouro. De repente, um bando de alunos se encontrava com um bando de bois. Não sei quem se assustava mais. O certo é que, muitas vezes, a boiada estourava e nós tínhamos que sair correndo, para não sermos apanhados pelos chifres daqueles animais. Talvez eu fosse o mais medroso de todos, pois era sempre o campeão na corrida. Lembro-me de um dia em que foi preciso subir num barranco, pois não houve tempo de fugir. Estávamos lá encarrapitados, quando a terra começou a ceder e nós fomos escorregando em direção aos chifres dos bois, que nos esperavam nervosos. Tremi como vara verde.

        Comprávamos quantas laranjas queríamos e, depois, o português apresentava a relação dos gastos ao Padre Ministro, que pagava a conta e registrava as despesas de cada um no seu livro caixa. Nesse sítio havia uma pequena capela rural, um galpão onde fabricavam vinho, espremendo as uvas com os pés, e quase mais nada. Não sei se nossas compras representavam uma receita importante para aquele sitiante mas a verdade é que nos tratava muito bem.

        Outra compra que fazíamos com regularidade era de doces. Uma vez em cada quinze dias, mais ou menos, chegava o caminhão da fábrica de doces Bela Vista. Formávamos filas e o vendedor ia nos atendendo, com doces de abóbora, de cidra, de batata doce, de batata roxa, de banana e outros. Anotava em uma lista os nossos gastos e depois apresentava a conta ao Padre Ministro. Eu sempre fui muito guloso por doces e me abastecia convenientemente.

        Além do Reitor, que era a autoridade máxima no Seminário, outra figura importante era o Padre Diretor Espiritual. O Reitor não cuidava diretamente dos alunos, estava voltado para os assuntos da comunidade, mas não deixava de nos dar muita atenção. Era comum sua presença na hora do recreio, sendo muito interessantes as conversas que tínhamos com o primeiro deles, Monsenhor Luiz Gonzaga de Almeida e com o seu sucessor, que também se chamava Monsenhor Luiz Gonzaga.

        O Padre Espiritual foi, primeiramente, o Cônego Paschoal Amato, sendo substituído pelo Padre Jair. Sua função era dar orientação e cuidar dos assuntos da alma. Uma vez por mês, obrigatoriamente, ou mais vezes, se assim o quiséssemos, tínhamos uma conversa individual com o Padre Espiritual. Chamava-nos ao seu quarto e éramos ouvidos em segredo de confissão. Podíamos abrir nossos corações, contar nossa fraquezas e nossas inquietações e sempre recebíamos um bom conselho. Se desejássemos, ouvia-nos em confissão. Dentro do Seminário, havia uma associação quase que secreta, que reunia os mais devotos da Virgem Maria. Seus integrantes faziam uma espécie de voto, dedicando à Santa Mãe suas vidas. Ninguém ingressava nessa associação sem ser convidado. O Padre Espiritual escolhia os candidatos e promovia uma cerimônia de adesão, que consistia em orações de consagração, após um período de devota preparação. Essa associação se espalhava por todo o mundo religioso, não era uma invenção do Seminário de São Roque, e seus integrantes podiam ser reconhecidos pelo fato de, nos sermões, sempre encerrarem a preleção, fazendo uma referência a Nossa Senhora.

        O Padre Espiritual também substituía a figura do pai, dando orientação sexual aos alunos. Só que fazia isto de forma tão discreta que nem sempre o ouvinte entendia o que ele estava querendo dizer. Lembro-me que, quando comecei a me tornar um adolescente, tudo o que o Padre Paschoal conseguiu me transmitir foi que, não estando eu no convívio de meu pai, cabia a ele me orientar, indicando que se tratavam de fato muito natural algumas mudanças que poderiam estar ocorrendo em meu corpo, mais precisamente no meu órgão genital. Não conseguiu explicar mais nada, talvez porque ficasse encabulado para dar essa aula, mas a intervenção foi oportuníssima, pois eu já havia notado algumas alterações e confesso que estava bastante preocupado, pensando se tratar de alguma enfermidade. Fiquei aliviado quando constatei que todos os meninos tinham o mesmo "problema".

        Outro sacerdote espetacular era o Cônego João, o Vice-Reitor. Cuidava do patrimônio e também era o Vigário dos que moravam nas redondezas do Seminário. Mantinha contato com os empregados e sitiantes, que muito o respeitavam. Era uma figura imponente, alto, moreno, meio gordo, com ar de cabloco. Usava um capacete de soldado inglês e gostava de caçar com sua espingarda. Tinha um carro Ford 29, de pneus finos e rodas como as de carroça, com capota conversível. Num dia de chuva precisei ir ao médico, na cidade, e rodopiamos na estrada, que estava lisa como sabão.

        Certa vez, os caipiras que cultivavam as terras vizinhas ao Seminário vieram alarmados, pedir ajuda ao Padre João, porque o mato estava pegando fogo. "Padre João !", "Padre João !", diziam, "reze por nós que o mato está pegando fogo e não conseguimos controlar !". Esperavam que as orações do Cônego fossem suficientes para apagar as chamas. .....- "Ora, meus amigos", respondeu o Padre João. - "Rezar coisa nenhuma, isto nós vamos fazer depois, para agradecer a Deus. Agora, cada um pegue uma enxada e vamos apagar esse fogo !" .....E lá se foi o Cônego João debelar as labaredas. Numa outra ocasião, Padre João foi de carroça, lá para os lados do Saboó, dar a extrema-unção a um moribundo. Dentro do Seminário, ele não fazia grande coisa, pelo menos aos olhos dos alunos. Mas Deus devia estar bem contente com o serviço daquele sacerdote.

        Destacava-se por sua santidade o Padre José. Pessoa boníssima, estava sempre junto aos alunos, nas horas de recreio, com uma prosa agradável e bons conselhos. Era professor de Religião e de Grego. Devoto de São João Vianney, não sossegou enquanto eu não lhe presenteie com uma relíquia desse santo, que meu pai havia me dado, e que eu costuma trazer no bolso, em um relicário dourado, muito bonito. Disse que a colocou em um altar. Com certeza, em suas mãos, aquela preciosidade estava muito bem guardada. O único desgosto que lhe dei eram as minhas notas de Grego, matéria com a qual nunca consegui me entender. Fui o seu pior aluno nessa língua. Um dia, bravo pelo nota baixa que eu tinha tido, chegou a me aplicar uma palmada.

        Outro que me convenceu a dar-lhe um presente foi o Padre Kulay. Eu havia ganho um ímã bem grande, em forma de ferradura, do sacristão da minha paróquia, o Sr. Antônio. O Padre Kulay estava montando o laboratório de Física do Seminário e veio pedir minha contribuição, que fiz de bom grado.

        O Padre Matheus não chegou a ser meu professor. Lecionava para os alunos mais velhos. Eu o conhecia do tempo em que era coadjutor na minha paróquia. Aliás, a Paróquia do Divino Espírito Santo da Bela Vista contou com a participação de várias pessoas ligadas ao Seminário de São Roque. Meus colegas de classe, Dom Oswaldo Giuntini e Dom Antônio Gaspar, foram coadjutores dessa paróquia. Padre Mário Ranaldi, antigo Vigário de São Roque, no tempo em que era carmelita, foi também Vigário da Bela Vista, como padre secular. Dom Constantino Amstálden, antes de ser Bispo de São Carlos, foi Vigário Auxiliar da Igreja do Divino Espírito Santo. Dom Francisco Vieira, professor em São Roque, era originário da nossa paróquia. Monsenhor Expedito, hoje na Cúria Romana, foi também nosso coadjutor na Bela Vista.

        Figuras lembradas com muito carinho eram o Padre Pedro, que veio a ser Padre Ministro após Dom Constantino, o Padre Noé, o Padre Paine, cujo progenitor era colega do meu pai, o Padre Rui, que tinha laços de amizade com a família de minha mãe, e o Padre Luís Camargo, que era sobrinho do meu padrinho de batismo e meu Vigário, Monsenhor Paulo Camargo.

        Alguns de nossos professores haviam sido de paróquias a que pertenciam os meus colegas, como o próprio Padre Constantino, que serviu em Santo Amaro, de onde veio o Ary Joly, o Padre Paschoal e o Padre Pedro, que pertenceram a paróquias da Zona Leste, donde vieram o Attilio Brunacci, o Oswaldo Giuntini e outros.

        Guardo de todos os professores muita saudade e reconheço que muito do que sei é fruto dos seus preciosos ensinamentos. Mais que tudo, foram homens que nos formaram sabiamente para a vida e para a fé.

CAPÍTULO 9