* Setembro-Dezembro de 1998 * I - 3 * Cidades *


Poemas amazônicos * Humberto de Campos

Os aturés

"... Os corajosos aturés refugiaram-se nos rochedos das cataratas, lugar lúgubre em que pereceu toda a raça, sem deixar traços da língua que falava... Coisa curiosa, entretanto: entre os maipurés, vive ainda um velho papagaio, que ninguém, dizem os naturais, pode compreender, porque ele fala a língua dos aturés". - Humboldt - Quadros da Natureza

Quando os braços da Ibéria, em seus gestos profundos,
Tiravam do Mistério os oceanos e os Mundos,
Mergulhando no mar ou investindo o sertão -
Espalhavam, também, nas terras inocentes,
A injustiça, a maldade, as vermelhas sementes
Da seara de Caim,
Que apertavam na mão.

As espadas hostis que, deixando as bainhas,
Mostravam sua cruz, em legiões, ou sozinhas,
A homenagem do Sol na terra americana,
-Vinham sempre acordar no selvagem regaço,
Com o seu frio tinir, com o brilho do seu aço,
Um rugido de fera ou uma súplica humana.

Cada vez que, a zombar da vaga e da procela,
Espontava na costa a asa da caravela,
Arrastada no mar pelos pulsos deDeus,
-A alma do Novo Mundo, ao clamor dos seus brios,
Maldizia, a chorar, pela boca dos rios,
O oceano protetor dos tigres europeus.

E as naus, a conduzir desterrados e tropa,
Derramavam na praia os vômitos da Europa
Que entravam pela terra, encharcando as chapadas
E o saque, e o fogo, e o assalto, e as contendas no centro
Iam logo ao rumor da invasão, terra adentro,
Perturbar o labor das tribos sossegadas.

-Ora, naquele tempo, em regiões sem roteiros,
Vivia, unido e forte, um povo de guerreiros
Que cem vezes vencera as tribos em redor;
-Formiga - no trabalho, e cigarra - no canto,
Era enérgico, audaz, temerário, e, no entanto,
Se achava a guerra um bem, achava a paz melhor.

Cada aldeia que, ao sol, o seu braço estendia,
Tinha logo a cercá-la, e a bolir, noite e dia,
A roça cor de mar e o riacho cor de prata.
Seu deus, do seu valor serena testemunha,
Dava-lhe o fruto à mão e, anônimo, lhe punha
O pé do caititu na armadilha da mata.

Era raro na tribo um guerreiro vencido.
Arco à mão, flecha à mão, no combate renhido,
No aceso da peleja, era difícil ver
Um único aturé que, aos clangores da guerra,
Ensopado de sangue, atirado por terra,
Se deitasse no chão antes de perecer.

Respeitando os heróis, castigando o covarde,
Escutando o seu piaga etnre as sombras da tarde,
Pondo em terra feraz novos hortos risonhos,
Os santos manitôs, em nuvens de fumaça,
Vinham-lhe ensinar o refúgio da caça
No impervio matagal, falando nos seus sonhos.

Sua língua era sua: aprendera-a na mata.
O grito do oitibó e o gemer da cascata,
O soluço da rola e a voz do gavião,
Emprestaram-lhe sons que a outrem davam certeza
Das emoções da Dor, da raiva, da tristeza,
Do rugir do Prazer, da ânsia do coração.

Forte assim, nobre assim, não havia tão perto,
Gente que dominasse as feras do deserto,
-A corça na planície e a onça ou o tapir no atalho
No entanto, nesse inverno, a cuidar da cultura,
Se deixara na taba, a sentir a doçura
Do mel que dava à tribo a abelha do Trabalho.

E foi, então, que veio a desgraça infinita.
Descendo para o Sul em carreiras e em grita
Todas as tribos más rolaram no sertão;
E qual, no inverno, o rio, a invadir as chapadas,
Caíram na planície as hordas conflagradas,
Raiva no olhar feroz, tangapema na mão.

Toda a mata acordou, ébria de dor e susto.
Da aroeira secular ao mais tímido arbusto
Houve um gritode horror, de largos estribilhos,
Abriram-se, chorando, as bocas dos atalhos;
A selva maternal, retorcendo os seus galhos,
Suplicava perdão para a culpa dos filhos!

E foi o assalto, a morte, a luta frente a frente.
Cem vezes o trocano em mugido tremente
Retumbou, levantando as gentes aturés.
E a rugir, a correr, ainda à surpresa alheias,
As tribos, em tropel, vieram de cem aldeias
Fazendo estremecer o solo sob os pés.

E a luta começou. Jamais o sangue humano
Se mostrara tão vivo ao sol americano
Dos alvos litorais às florestas do centro.
Nunca a América viu tão doida valentia.
No ardor departe a parte, angustiado, tremia
O solo do país pelos vales adentro.

Ao choque dos titãs ruge a terra, com pena.
Aquele que rolava, imprecando, na arena,
Ao peso do tacape em rodopios no ar,
Ficava para sempre atirado de bruços,
Mordendo o pó do chão, engolindo os soluços,
Mastigando no crânio as penas do cocar.

E o inimigo venceu. Filho da serrania,
Descendente do Sol, que insaciável, bebia,
Como rubro cauim, todo o sangue da guerra,
-Derrubou, avançando em feroz estrupido.
As tabas, os jiraus, as roças do vencido,
Ao fazer, bruto e mau, a conquista da terra.

Venceu! Mas só venceu quando, virgem de escravos,
Sucumbiu, nobre e livre, esse povo de bravos
Que honrava a Liberdade aos clarões deste céu.
Venceu! Mas só venceu quando, trágica e forte,
A tribo, ao perecer, pôs nos braços da Morte,
Com os corpos dos heróis, seu supremo troféu!

Venceu! Mas só venceu quando o rio, baixando,
Descobriu, pela mata, o caminho, levando
O atacante feroz, por argênteo rastilho.
Venceu! Mas só venceu quando o bravo, ao barulho
Do inimigo, ao tombar, esmagou, com orgulho,
Na pedra do rochedo, a cabeça do filho!

E quando o vencedor entra na última aldeia,
Destrói, depedra, invade, extermina, saqueia,
Procurando os heróis, insultando os pajés,
Só encontra com vida, asas à luz ruflando,
Um velho papagaio, entre mortos, cantando,
Na linguagem natal das tribos aturés!

* * *

Poeta, na terra hostil em que a sorte te há posto,
No tempo emque, a sorrir, levantas o teu rosto,
Sereno, ante a onda má que rebenta a teus pés,
- Lembras, a rpedicar teu credo sempre novo,
Aquela ave a cantar, nomeio do outro povo,
As cantigas marciais das gentes aturés.

Sozinho, sem ninguém que o espírito te entenda,
Sem um braço que ampare o teu vulto de lenda,
Vibrando, como Orfeu, a lira em toda parte,
-Passas, de olhos no céu, quase transfigurado,
A exaltar,como umdeus, entre ovulgo espantado.
As dores do teu peito e as flores da tua arte.

Tua tribo morreu! Quando as horas bravias
Invadiram, rugindo, a pátria onde vivias,
Mataram teus irmãos, povo do teu amor,
Teu país de ouro e luz foi à força invadido...
-Ficaste apenas tu, repetindo, vencido,
A língua maternal diante do vencedor!

Continua, porém, nessa audácia insolente,
-Ave dos aturés - falando a estranha gente
Teu idioma natal, cujo mel ainda libo:
Continua a expandir teu desprezo profundo,
E, honrando sempre os teus, celebra pelo mundo
O nome desse povo e as glórias dessa tribo!

lizbeth@uol.com.br

Links

Brasil

Índice I-3

Rio de Janeiro

Florianópolis

Brasília