O Elixir da Vida

John Cornwell
Hereditary Disease Foundation/Times Online of London – maio/2003
Tradução de Eduardo de Farias Lima

Aqueles pontinhos brancos microscópicos são chamados de RNA. Todos os temos; fazem parte do quebra-cabeça do DNA desvendado por Crick e Watson 50 anos atrás. Mas somente agora existe um experimento que se revela com um enorme potencial – o incrível poder de erradicar doenças genéticas ou até mesmo o bisturi.

Quando, numa manhã, Leonore Wexler cambaleava numa calçada em Los Angeles, falando sozinha com palavras moles, um policial repreendeu-a por estar bêbada e comportar-se de maneira inadequada. Mas essa senhora bem-vestida de 53 anos, educada e mãe de duas filhas na casa dos vinte não bebeu. Ela estava sofrendo de um ataque de uma doença genética do cérebro e do sistema nervoso central responsável pela morte de vários membros de sua família. Ela começava a sentir os sintomas da doença de Huntington (HD, sigla em inglês), com um prognóstico devastador e, a longo prazo, fatal. No começo, os pacientes perdem o controle de seus membros e de sua fala. Depois, passam à fragmentação emocional e intelectual e acabam por morrer.

Apesar dos bilhões de dólares gastos em pesquisa nos últimos vinte anos; ainda que se tenha seqüenciado o genoma humano e criado entusiasmo e altas esperanças para terapias de engenharia genética, não foi encontrado nenhum tratamento seguro para a HD. Com efeito, nenhum tratamento seguro foi descoberto para centenas de doenças causadas por genes defeituosos. Nos últimos três anos, três jovens morreram em lugares diferentes do mundo como conseqüência de tentativas de terapias genéticas, desmantelando toda uma estratégia clínica.
Mas recentemente, pacientes que sofrem de doença de Huntington e de outras enfermidades genéticas ganharam esperança da professora Beverly Davidson, da Universidade de Iowa (EUA). Esse novo alento é dado por um novo método, que já deu certo em modelos animais e que explora um mecanismo vital fundamental, que atende pelo nome de interferência de RNA (RNAi). Também conhecida como "silenciamento genético", a técnica do RNAi vem sendo celebrada como o próximo salto quantitativo na medicina pela comunidade científica mundial.
Pela primeira vez, as promessas se cumprirão. Sir Paul Nurse, vencedor do prêmio Nobel britânico, é o principal entusiasta do RNAi neste país. Ele é chefe da Cancer Research UK, que está prestes para partir para Nova York chefiar a Rockefeller University onde terá como colegas 22 ganhadores do Nobel. Com 54 anos, ele vê a técnica como uma "fantástica nova ferramenta" para a descoberta de como cada um dos 35 mil genes humanos contribuem para o câncer. "Graças a essa incrível descoberta, acreditamos que possamos solucionar o problema".
O RNAi vem sendo celebrado como a maior descoberta do ano pelo influente periódico americano Science, que anuncia num editorial que "abriu" o campo da pesquisa médica, colocando a nova descoberta num papel central: "Expondo as possibilidades secretas do RNA, os cientistas agora esperam pô-las para funcionar". Seu potencial, de acordo com pesquisadores, é impressionante. Em modelos de plantas e animais, a técnica conseguiu emagrecer organismos gordos, reduzir seus tamanhos e até mesmo promover a longevidade. Em colaboração com um centro de pesquisas em Amsterdam (Holanda), pesquisadores da Cancer Research UK agora começam uma corrida com o maior instituto de genética dos EUA, o Cold Spring Harbor Laboratory em Long Island, colocando o método para funcionar a fim de investigar em profundidade os mecanismos de cada um dos genes que poderiam contribuir com o câncer.
E o que é RNAi? Nossos genes são os códigos que passam as instruções às células para fazer proteínas específicas, os tijolos do sangue, tecidos, nervos e assim por diante, até chegar no corpo inteiro. Essas mesmas proteínas podem também ser os tijolos de doenças de origem genética que atacam a humanidade, como câncer ou males como Huntington. Elas podem controlar nossas tendências à obesidade, a predisposição ao alcoolismo ou ao vício em drogas; se seremos cheios de energia ou preguiçosos; e mesmo se viveremos muito – ou pouco. Até recentemente o RNA (que significa ácido ribonucléico) era considerado meramente um tipo de mensagem que transmitia as informações codificadas nos genes para as áreas celulares de produção de proteínas.
Os cientistas agora começam a admitir sua tendência a negligenciar o significado do papel complexo e central desses mensageiros. O que eles tentaram nas décadas recentes foi curar doenças de origem genética inserindo novos genes, ou mesmo anulando completamente genes inteiros. Essa estratégia se mostrou difícil e prejudicial. Porém, mudando o foco para o sistema de mensagens do RNA, eles crêem poder, de forma mais fácil e menos perigosa, reduzir ou até mesmo interromper a produção de proteínas prejudiciais no corpo humano.
Compreendemos a operação de nosso DNA, do RNA e das proteínas comparando-os à criação de uma música para orquestra, como uma sinfonia, O compositor escreve a partitura original de sua composição. São tiradas cópias individuais de cada uma das partes da orquestra, distribuídas entre os músicos, que depois transformam o papel escrito numa vibrante realidade musical. Se considerarmos a partitura original do autor como o gene, bem como as execuções reais, os timbres dos instrumentos – violinos, violas, flautas, trompetes, percussão – são as proteínas; enquanto os mensageiros do RNA são as partes instrumentais, a partir da partitura original, para cada um dos músicos.
O princípio envolvido no RNAi não é tentar interferir na partitura original, no gene, mas mexer, reescrever, ou mesmo excluir, partes específicas dos instrumentos, "silenciando" execuções individuais de maneira altamente direcionada. Se o compositor falhou na partitura original, que se traduz em dissonâncias desagradáveis na música, o RNAi é o modo de acertar esses erros tocando em partes individuais da orquestra, afim de "silenciar" os instrumentos que criaram o problema.
Outra forma de entender o RNA é comparar o desenvolvimento de um organismo, quer seja uma planta, um verme, uma mosca, ou um corpo humano, com a fabricação de um barco que navegará no mar. Se o DNA for o esboço do projetista para fazer um barco completo, o RNA consiste nos desenhos em três dimensões que os operários têm de seguir. A interferência de RNA não tenta alterar o desenho principal: ela vai aos desenhos específicos, onde poderá então direcionar características altamente específicas, antes de serem convertidas em mastros, velas, pranchas, proa e convés de verdade.

Em termos técnicos ou biológicos, um gene se expressa, ou começa o processo por meio do qual ele fabrica proteínas, descompactando as duas cadeias da dupla hélice do código do DNA de forma a permitir que uma das dessas cadeias sejam copiadas da mesma maneira que a molécula do RNA. Nesse estágio, a cadeia copiada é conhecida como mensageiro ou mRNA. Ele passa do núcleo celular para o citoplasma (sua oficina), onde age como um modelo para a síntese de proteínas. Estudiosos descobriram que pedacinhos pequenos da molécula de RNA podem interferir na operação de produção de proteínas, reduzindo ou interrompendo esses processos. Agora os pesquisadores começam a introduzir essas pequenas cadeias de RNA que interfere artificialmente nas células de plantas, moscas das frutas, mamíferos e de humanos, descobrindo os mecanismos sutis que controlam a produção de proteínas.
As doenças candidatas a se beneficiar da terapia do RNAi incluem Alzheimer, câncer da mama, leucemia, esquizofrenia e muitas outras. Mas parece que Huntington será uma das primeiras doenças tratadas pelo processo. A trágica história de Leonore Wexler (ela morreu há 30 anos), ficou famosa nos anais da medicina porque Nancy Wexler, uma de suas duas filhas, transformou na busca de um tratamento pela HD o trabalho de sua vida. Hoje, ela preside a Hereditary Disease Foundation (Fundação de Doenças Hereditárias) e é professora na escola de medicina da Columbia. Ela, que tem uma chance de 50% de contrair a doença, começou a estudar uma comunidade às margens do lago Maracaibo, Venezuela, onde há uma incidência incomum da doença de Huntignton. Voltava lá todos os anos, sempre coletando amostras de DNA e cuidadosamente traçando históricos familiares.
Finalmente, juntou forças com James Gusella, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology, que estudava uma família do Iowa com HD. Em 1983, Gusella identificou o gene da HD. Mas foram necessários mais 10 anos e mais 150 pesquisadores para isolar o gene para analisá-lo detalhadamente. Por fim, descobriram que a doença é causada por mutações num gene Huntington, que gera uma proteína que destrói partes do cérebro. Tentar anular o gene inteiramente tiraria do paciente outras proteínas vitais. Porém, o RNAi consegue isolar e reduzir ou desligar os exatos processos, que produzem as proteínas prejudiciais, apesar de deixar o gene intacto. "Quando ouvi falar desse trabalho pela primeira vez", disse Nancy Wexler, "perdi a respiração".
O otimismo em relação à pesquisa com RNAi, que um dia pode gerar drogas altamente direcionadas em vez dos complicados sistemas genéticos "portadores", contrasta imensamente com o fracasso generalizado das terapias de genes. Uma vítima trágica da terapia genética foi Jesse Gelsinger, adolescente norte-americano do Arizona portador de deficiência de ornitina transcarbamilase (OTC), uma doença hereditária em que o fígado do paciente não produz uréia. Em 1999, quando Jesse tinha 18 anos, apresentou-se como voluntário em um tratamento genético ainda que sua doença não fosse fatal. A terapia foi chefiada por James Wilson, diretor do instituto de terapia genética da University of Pennsylvania. A estratégia envolvia a administração de um vírus que continha um gene que corrigiria o problema nas células do paciente. Poucas horas depois de iniciado o tratamento, Jesse desenvolveu uma febre, seguida por uma infecção incontrolável com coágulos de sangue e hemorragia. Três dias depois, o paciente morreu. A terapia matara o doente.
Houve ainda duas mortes causadas por terapias genéticas, envolvendo duas crianças francesas que sofriam de uma enfermidade chamada de SCID, imunodeficiência famosa em um filme para a TV, "O menino da bolha de plástico". Em 2000, uma equipe parisiense realizou terapia genética nas crianças, que viviam mantidas em isolamento estéril desde o nascimento. Empregando um método de espalhar células de imunização nos corpos das crianças, a terapia, aparentemente, começou funcionando. Mas em outubro de 2002, uma das crianças adquiriu leucemia. James Watson, ganhador do prêmio Nobel por ter sido co-descobridor do DNA, destacou que "apesar de que não se estabeleceu em que medida o procedimento genético foi o responsável, existem fortes evidências circunstanciais de que seja por causa dele". Ele acrescentou que "a terapia genética parece ter curado a SCID do bebê, mas causou leucemia como efeito colateral". Em fevereiro de 2003, a outra criança também foi diagnosticada com leucemia.
Explicar a biologia do RNAi envolve um ensaio não apenas da história da descoberta da estrutura do DNA, mas da própria origem da vida desde o seu surgimento na Terra. Em março de 1953, depois de uma rodada frenética de pesquisas, trabalho detetivesco e conversas agitadas em volta de copos de cerveja em pubs em Cambridge (Reino Unido), Francis Crick, ex-engenheiro nos tempos de guerra e médico, e James Watson, colega biólogo dos EUA, produziram seu famoso modelo de DNA usando fios e papelão. Pela primeira vez, o mundo compreendia a forma e o funcionamento da estrutura da dupla hélice do código genético hereditário em que os organismos se reproduzem e a vida é passada, geração após geração.
O DNA, de acordo com Watson e Crick, era um tipo de mãe de todas as moléculas, que viria a ser o foco principal de pesquisas básicas e buscas de tratamentos para tudo, desde câncer a doença de Huntington. As moléculas de RNA, por sua vez, eram nada mais que meros aviões teleguiados, obedecendo a ordens do DNA, que serviam para converter informação genética em proteínas essenciais para o corpo. Mas seria possível que os pioneiros da biologia molecular superestimaram a importância do DNA, deixando de lado o papel do RNA? E se os termos nos quais foi definido o significado do DNA acabaram por tolher outras formas de enxergar os segredos da vida? Essa é a conclusão a que vem chegando um número cada vez maior de cientistas que agora vem colocando a importância crucial do RNA no centro da questão, ele que é o parente molecular mais próximo do DNA.
Os biólogos que estudam as origens da vida especulam que seja o RNA a primeira forma de vida codificada, em vez do DNA. O RNA, considerado em condição de desvantagem em relação ao DNA, deve muito à forma pela qual os cientistas fazem metáforas ao descrever a ciência da natureza. Quando Francis Crick apresentou sua descoberta do DNA, anunciou o que ele mesmo chamou de seu "dogma central", utilizando uma terminologia emprestada da teoria da informação, popular em um tempo que a informática se expandia.

O DNA, a molécula de duas cadeias, contém, como sabemos, a instrução codificada para produzir os tijolinhos de proteína de um organismo. Uma cópia dessas instruções genéticas, como já foi visto, é feita da molécula de cadeia simples do RNA. Crick denominou esse processo de cópia "transcrição". A cadeia de RNA se move de fora para dentro do citoplasma, onde as se formam as proteínas. Continuando com o jargão da teoria de informação, esse processo Crick chamou de "tradução". De acordo com ele, esse era um caminho de mão única. O DNA dirige-se ao RNA, que cria as proteínas.
De acordo com esse modelo, O RNA era visto apenas como um mensageiro, mero transmissor de informação. Uma prova da força dessa imagem de informação latente pode ser vista no livro de Richard Dawkins, "O Relojoeiro Cego". Maravilhado, ele observa um salgueiro em flor na janela. "Chove DNA", ele escreve. "Chove instruções lá fora, crescimento de árvores, algoritmos que espalham penugens. Isso não é uma metáfora, é a pura verdade. Não seria mais verdadeira se estivessem chovendo disquetes".
Um problema com a poderosa imagem criada por Dawkins, essencialmente verdadeira, é a ausência da figura do RNA. Seu papel de mero mensageiro no processo vem sendo reavaliado por cientistas, indústrias farmacêuticas e investidores em tecnologia de alta tecnologia. Ironicamente, logo depois da descoberta de Crick e Watson, o primeiro levantou questões do porquê a informação do DNA tinha de sofrer a mediação do RNA antes da produção da proteína. Como conseqüência, Crick sugeriu que o RNA na verdade destruía o DNA, especulando que deveria haver um tempo em que toda a vida existia num "mundo de RNA". Em 1954, como se quisesse reivindicar a supremacia do RNA, Crick e seus colegas fundaram o RNA Tie Club, restrito a 20 membros, correspondente aos aminoácidos decodificados pelo RNA. Seus sócios ostentariam uma gravata e um pin combinando, feitos sob medida em Los Angeles, com diagramas ilustrando cada um desses aminoácidos.
De acordo com as primeiras noções sobre o RNA, ele é essencialmente dinâmico e instável, o que explica a preferência pelo estável sistema de armazenamento do DNA. Isso até 1983, 30 anos depois da descoberta do DNA, quando Sidney Altman (University of Colorado) demonstrou que moléculas de RNA eram mais do que meros mensageiros, podendo catalisar sua autorreplicação. Sem o RNA, o DNA sequer existiria, afetaria organismos ou se reproduziria, mas sozinho, o RNA conseguiria ter um "mundo do RNA", como os biólogos o denominam. Altman ganhou o prêmio Nobel de química em 1989 por essa descoberta.
Por ocasião das comemorações do jubileu de ouro da descoberta do DNA, James Watson, colaborador de Crick, comentou a profunda importância do RNA. "O que veio primeiro", perguntou o veterano biólogo: "as proteínas, sem meio conhecido de duplicação, ou o DNA, que somente consegue duplicar as informações na presença de proteínas? O problema é insolúvel. Não se pode ter o DNA sem proteínas, e não se pode ter proteínas sem DNA", disse.

Watson, porém, encontrou resposta para a sua pergunta: "o RNA, sendo equivalente do DNA, consegue armazenar e replicar informações genéticas. Além de ser equivalente de proteínas, pois pode catalisar reações químicas importantes. Com efeito, desaparece a questão do ovo e da galinha relativa ao ‘mundo do RNA’. O RNA é ao mesmo tempo a galinha e o ovo". Watson está falando a respeito dos estágios iniciais da vida no planeta, em circunstâncias evolutivas distantes ocorridas bilhões de anos atrás. Mas a importância emergente do RNA hoje em dia não se deve ao fato de sua proximidade ao DNA e às proteínas, mas sua surpreendente complexidade, sua habilidade de operar em muitos formatos e extensões diferentes como sistemas de mensagem – modulando a expressão das proteínas, ligando-as e as desligando, além de dar forma aos próprios genes.
Um cientista envolvido com importantes estratégias de pesquisa e terapia contra o câncer no contexto da Grã-Bretanha e da Europa explica o fenômeno da proteína. "É bem conhecido que um gene específico causa o câncer", ele me disse em um novo centro de oncologia em Cambridge. "Mas o problema real é identificar quais proteínas são expressas por esse gene, para criar células, tecidos, sangue que produz tumores ou leucemia". Seu nome é Bruce Ponder, professor e chefe do que logo virá a ser o maior centro europeu de pesquisa contra a doença, com até 500 cientistas. Ponder foi ligado à descoberta dos genes causadores do câncer de mama BRCA1 e BRCA2, e ele está bem posicionado para atacar os próximos passos na luta para curar essa enfermidade.
Identificar os genes causadores do câncer e de muitas ouras doenças, tentando manipular ou eliminar o DNA no núcleo da célula, não conseguiu se tornar estratégias bem-sucedidas de tratamento. O vírus vetor usado nessas terapias aparentemente interferiu no DNA do paciente de maneira a agravar o câncer.
A falta de progressos lançou uma sombra sobre as grandes expectativas com relação às eventuais recompensas que adviriam da descoberta da estrutura do DNA. Mas e se os cientistas pudessem encontrar maneiras de identificar todas as proteínas prejudiciais mencionadas pelo professor Ponder? E se conseguissem descobrir formas de desligar com precisão os produtos dessas proteínas que podem causar malefícios ou anormalidades sem que isso afetasse o DNA? E se essas "anormalidades" pudessem ir para além do câncer e atingir problemas como obesidade, os efeitos do envelhecimento, e mais as cerca de quatro mil enfermidades relacionadas com nossos genes? Na opinião dos pesquisadores, essa parece ser uma meta viável diante das descobertas do RNAi.
O que abriu essa mudança de paradigmas na expressão genética 50 anos depois da descoberta do DNA? Essa alteração teve início em 1990, com um simples experimento em horticultura, quando um grupo de botânicos tentava criar uma petúnia com flores com um tom de rosa mais escuro. Eles introduziram cadeias de RNA nas células da planta, acreditando que assim intensificariam os efeitos da proteína associada com a cor. Para assombro dos pesquisadores, a petúnia deu origem não a flores púrpuras, mas a totalmente brancas.

Assim, perceberam que o RNA não tinha apenas a capacidade de aumentar o efeito de uma proteína, como também de ligá-la ou desligá-la. Logo depois, um grupo de cientistas fazendo experiências com nematódeos (classe de vermes entre os quais se incluem as lombrigas), descobriu que conseguiria alterar o metabolismo dos animais, emagrecendo ou engordando-os, ou até mesmo convencendo-os a viver mais, por meio de ajustes em seu RNA com a interferência nessa estrutura. Depois, os pesquisadores trabalharam com moscas de frutas, então com ratos e depois com células humanas em cultura para controlar blocos de proteínas pela interferência em seus mecanismos de RNA. Havia problemas e falsos atalhos em profusão, mas começava a se delinear o papel crucial do RNAi numa nova era da pesquisa genética.
No complexo de laboratórios da Cancer Research UK, em Lincoln’s Inn Fields, Londres, o professor Julian Downward executa, em colaboração com um grupo holandês, um programa de pesquisa de RNAi. Downward, 42 anos, vestindo uma camisa pólo azul escuro, se senta confortavelmente em sua cadeira, falando sobre o RNAi. Ele é um daqueles cientistas relaxados que tendem a fugir do entusiasmo como se fosse um vírus letal. Mas ele não consegue evitá-lo quando fala de seu trabalho. "Levou pouco tempo para que as últimas tecnologias estivessem disponíveis em laboratórios acadêmicos e instituições de pesquisa, e é realmente estimulante estar entre os pioneiros do uso da interferência de RNA na pesquisa contra o câncer".
Downward e seus colegas holandeses constroem uma "biblioteca" dos elos entre genes e proteínas, usando o RNAi como ferramenta de pesquisa. Ele busca estabelecer o que os pesquisadores necessitam para retirar um desligar o que faz uma célula cancerosa e torná-la normal novamente. Essa não é uma biblioteca comum: ela existe na forma de bandejas de células que contêm vírus modificados que expressam o RNAi para cada um dos 35 mil genes do genoma humano. É um processo longo e cansativo, que exige turnos de 24 horas. Até o momento, Downward e seus companheiros processaram oito mil genes humanos.
As informações recolhidas pela "biblioteca" revelarão os milhares de produtos de proteína gerados pelos genes humanos, assim como o RNAi consegue derrubar a expressão dos genes na saúde e na doença. Esse conhecimento será de grande benefício para a indústria farmacêutica que trabalha em drogas especializadas contra o câncer destinadas a atacar diretamente as proteínas prejudiciais, além de sedimentar terapias de alta tecnologia que usem o RNAi, com vistas a bloquear as proteínas que fazem mal, voltadas ao RNA da célula.
A indústria farmacêutica está injetando bilhões de dólares na pesquisa do RNAi e uma imensa agitação se espalha por essas empresas. Como exemplo, a companhia Sirna Therapeutics, com sede no estado do Colorado, da área de biotecnologia, e com nada mais do que 180 patentes relacionadas com o ácido nucleico (a base do RNA), direcionou sua pesquisa no RNAi. Um recente comunicado da empresa anunciou que drogas baseadas no RNAi poderiam ser a terapêutica do futuro. Em 2002, uma empresa de biotecnologia de Boston, a Alnykam Pharmaceuticals, levantou US$ 17 milhões para financiar a pesquisa do RNAi, coordenada pelo ganhador do prêmio Nobel, Philip Sharp. Já em San Diego, a Anadys Pharmaceuticals investiu US$ 38 milhões em pesquisa semelhante. De acordo com a diretoria de relações com investidores da Anadys, "usando as ferramentas corretas para sistematicamente corrermos atrás do RNA, estamos ganhando terreno no campo adversário".
O alento na luta contra o câncer serve de combustível na febre do RNAi; as existem outros benefícios acenando aos investidores. Até o momento, as circunstâncias estão envolvidas pelas técnicas da ciência, mas um artigo de capa publicado na revista Nature no começo de 2003 revelou mais do que palpites sobre as possibilidades abertas no horizonte. Discutindo uma análise de RNAi "no âmbito do genoma" de genes "reguladores da gordura" de um espécime de verme nematódeo, cientistas da Wellcome/Cancer Research UK Institute, em Cambridge, alegaram terem identificado "o grupo principal de genes reguladores da gordura, bem como o caminho para esses genes específicos". Os pesquisadores declararam que se trata de genes semelhantes aos dos mamíferos, concluindo que a descoberta poderia "apontar para características ancestrais e universais da regulação da gordura e identificar alvos para tratar a obesidade e doenças associadas".
O professor Tom Kirkwood, realizador do seminário Reith quatro anos atrás e especialista em envelhecimento, conversou comigo sobre os efeitos da nova pesquisa sobre a longevidade. "Já faz algum tempo que sabemos que existem diversos genes cuja mutação consegue aumentar a vida em nematódeos", disse. "O RNAi é uma maneira precisa de realizar esse tipo de estudos já realizados por meio de nocautes em genes."
Estudando o processo de envelhecimento em organismos modelo como vermes e moscas, ele me disse que "temos certeza de aprender alguns fatos úteis sobre como as pessoas envelhecem". Entretanto, ele é cauteloso quando o assunto é traduzir essa informação numa forma rápida de ampliar a vida dos seres humanos. "Em primeiro lugar, o corpo de um verme adulto não possui células que se dividem, enquanto nós temos diversos órgãos e tecidos que dependem profundamente de contínua substituição celular".
Enquanto isso, Nancy Wexler e outros cientistas ficariam extremamente satisfeitos se vissem uma descoberta com relação à doença que a ameaça e que matou sua mãe. Se o RNAi consegue ser bem-sucedido em apenas uma doença genética, a técnica serve de esperança para pacientes de muitas outras. Sir Paul Nurse, enquanto está de mudança para a Rockefeller University, tem a atenção e seus esforços de pesquisa direcionados voltados a cura do câncer, mas não deixa de fazer comparações mais amplas entre a pesquisa com animais e as aplicações em humanos. "Por meio da pesquisa como RNAi, estamos descobrindo o que dá aos animais cérebros grandes, o que os torna gordos ou estúpidos e conseguimos ajustar isso. É claro que é mais difícil fazer a experiência em humanos, mas um dia seremos capazes da mesma coisa em nós."


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