A Ataxia de Friedreich Pode Ser Causada por Excesso de Ferro Mitocondrial

Michel Koenig (IGBMC, Strasbourg-Illkirch, França), com partes dos comunicados à imprensa escritos por Marcia Vital (NINDS-NIH) e Fraser J Goodmurphy (Internaf)
(publicado em Euro-Ataxia/Newsletter - agosto/1997)

Apenas um ano após a descoberta do gene da ataxia de Friedreich, novos resultados esclareceram o provável mecanismo envolvido nesta doença. A descoberta do gene da ataxia de Friedreich já teve um impacto importante no diagnóstico e entendimento da variabilidade clínica da doença. Ao mesmo tempo, a descoberta levantou novas questões. A proteína produzida pelo gene - batizada de frataxina - era nova e de função desconhecida. Cinco recentes trabalhos começaram a responder estas questões. Três deles (Babcock e outros, 1997, Koutnikova e outros, 1997 e Campuzano e outros, 1997) demonstram que a frataxina está localizada em pequenas estruturas das células, chamadas mitocôndrias, que produzem, entre outras coisas, o combustível geral (chamado ATP) usado por todas as células para satisfazer suas necessidades de energia. Os trabalhos de Koutnikova e outros e Campuzano e outros também demonstram que o gene da ataxia de Friedreich codifica somente a proteína frataxina e não inclui o gene vizinho, STM7, que codifica um fosfatidil inositol fosfato quinase (Carvajal e outros, 1995). Consequentemente a afirmativa de que a ataxia de Friedreich se devia a uma deficiência de fosfatidil inositol fosfato quinase (Carvajal e outros, 1996) estava incorreta.
Quatro dos cinco documentos (Babcock e outros, 1997, Koutnikova e outros, 1997, Wilson e outros, 1997 e Foury e outros, 1997) utilizam um modelo de organismo simples, o fermento de panificação, para desvendar a função da frataxina. O fermento também tem frataxina e as estruturas da frataxina humana e do fermento são semelhantes o bastante para supor que tenham também uma função similar. Realmente, a frataxina do fermento também situa-se na mitocôndria (Babcock e outros, 1997). Os três grupos desativaram então o gene do fermento, imitando de certo modo a desativação do gene da frataxina em pacientes. Diferentemente dos seres humanos, o fermento pode viver sem mitocôndria quando cresce em certos meios. Quando a frataxina mutante do fermento foi forçada a usar suas mitocôndrias, elas ficaram rápida e seriamente doentes, não produziram energia e perderam suas mitocôndrias. Em particular, os mutantes ficaram mais sensíveis aos compostos oxidativos, como o peróxido de hidrogênio, conhecido como um subproduto tóxico da mitocôndria gerado durante o processo de produção de energia (Babcock e outros, 1997 e Foury e outros. 1997). Estes dois estudos também identificaram uma sobrecarga específica de ferro na mitocôndria do fermento mutante (e não em outro lugar dentro das células de fermento) a um nível aproximadamente 10 vezes acima do normal. O ferro extra na mitocôndria é a causa óbvia da alta sensibilidade dos compostos oxidativos, desde que o ferro é sabidamente um catalisador (a ferrugem é bem conhecida de todos) da produção dos assim chamados radicais livres de tais compostos. Um dos radicais livres produzidos, o radical hidroxila (OH) é conhecido por ser particularmente danoso à estrutura celular e à mitocôndria em particular.
Nós mostramos que a frataxina humana está localizada nas membranas das mitocôndrias (Campuzano e outros, 1997). Tomado com os resultados do ferro do fermento, isto sugere que a frataxina é um regulador da entrada e saída de ferro da mitocôndria. "Estou caulelosamente otimista acerca dessa descoberta", disse o Dr Massimo Pandolfo. "Pesquisas adicionais podem nos fornecer pistas para entender a patogênese desta doença e conduzir a tratamentos." "Agora nós temos uma janela aberta dentro da célula," disse a Dra Giovanna Spinella, médica do NINDS. "Nós passamos de um total desconhecimento da função desse gene para um modelo de funcionamento do que possa estar acontecendo em seres humanos."
Os órgãos afetados na ataxia de Friedreich, sendo o coração um deles, realmente são muito ricos em mitocôndrias. Em um estudo detalhado da expressão de frataxina em camundongos, Koutnikova e outros (1997) mostram que a frataxina se expressa mais nesses tecidos do que em outros. Embora a frataxina se expresse moderadamente na medula espinhal, é altamente expressa no gânglio espinhal, conhecido por ser o primeiro local de degeneração neuronial na ataxia de Friedreich. O gânglio espinhal é o lugar dos corpos celulares de neurônios cujos axônios (fios condutores do impulso nervoso) fluem nos nervos sensitivos e nas colunas posteriores da medula espinhal (essas estruturas são fortemente afetadas nos pacientes de ataxia de Friedreich). Uma outra evidência da relação entre a ataxia de Friedreich e o excesso de ferro existe em estudos post mortem de corações de pacientes, que mostram uma elevação anormal do nível de ferro (Lamarche e outros, 1994). Porém, os pesquisadores ainda necessitam encontrar evidências da acumulação de ferro ou danos oxidativos nos tecidos do cérebro ou da medula espinhal. Outros tecidos conhecidos por serem também ricos em mitocôndrias mostram uma alta expressão de frataxina, como o fígado, o pâncreas, a gordura marrom (presente em recém nascidos) e o estômago (Koutnikova e outros, 1997). Com exceção do pâncreas, esses tecidos não são conhecidos por serem afetados na ataxia de Friedreich. Várias explicações poderiam responder pelas diferenças entre locais de expressão e locais de patologia (felizmente menos freqüentes):

• isto poderia refletir uma diferença entre o camundongo e o homem (os estudos foram realizados em camundongos);
• os tecidos afetados são formados por células indivisíveis e assim não podem regenerar-se;
• os seres humanos (e as células de camundongos) desenvolveram sofisticados meios de enfrentar os radicais livres, mesmo na ausência de frataxina; na maioria das células, mas não em todas. A acumulação de ferro provavelmente não se apresenta tão clara e dramática nas células de pacientes como nas do fermento, que não possui tantas enzimas removedoras de radicais livres quanto organismos superiores, e a diferença pode responder pela progressão mais lenta da doença no homem.

Apesar do seu otimismo, o Dr Kaplan que é o autor graduado do estudo de Babcock, desaconselha tirar conclusões precipitadas. Pesquisas futuras na ataxia de Friedreich podem conduzir a algumas terapias de intervenção, diz ele, mas primeiro os cientistas devem confirmar a teoria do excesso de ferro na doença humana. O Dr Kaplan declara que os cientistas precisam realizar pesquisas adicionais antes de poderem generalizar a função do fermento à doença humana. Ainda, diz ele, a descoberta é um passo na direção certa. "Ninguém antes suspeitava que essa letal doença neurológica fosse resultante de excesso de ferro mitocondrial," diz o Dr David Badman, diretor de pesquisa de hematologia do Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e de Rim (EUA). "Este é um exemplo claro de como a pesquisa fundamental é essencial para melhorar os tratamentos de doenças específicas."
O Dr Pandolfo afirma haver alguma esperança em tratamentos com queladores de ferro, substâncias que removem o excesso de ferro das células, e antioxidantes, como a vitamina E, que diminuem ou removem as toxinas das células. Porém, o Dr Pandolfo recomenda paciência e precaução na tentativa de experimentar remédios não testados. Ele diz que embora os sintomas de pacientes que sofrem de deficiência de vitamina E se assemelhem aos sintomas da ataxia de Friedreich, estudos envolvendo a terapia com vitamina E para os pacientes de ataxia de Friedreich têm mostrado sucesso limitado. Em uma nota otimista, ele afirma que os cientistas poderão encontrar no futuro uma combinação terapêutica significativa de queladores de ferro e drogas antioxidantes para as pacientes de ataxia de Friedreich. "Neste momento, a idéia desse tipo de tratamento está em fase embrionária," diz o Dr Pandolfo. "Nós ainda necessitamos trabalhar bem o sistema antes de podermos recomendar qualquer espécie de tratamento."
A disponibilidade de camundongos mutantes com os genes de frataxina desativados deverá facilitar e acelerar a validação da teoria do ferro e o teste de novas combinações e protocolos terapêuticos. Tais mutações estão em construção em nosso laboratório (M Koenig). Embora sua criação seja mais sofisticada do que a de mutantes de fermento, eles deverão estar disponíveis dentro de um ano. É importante notar que, devido à natureza única da principal mutação da ataxia de Friedreich (uma expansão de trinucleotídeos no intron), a frataxina é reduzida, mas provavelmente não totalmente ausente nos pacientes. Esta característica, para ser viável, deveria ser reproduzida no camundongo mutante.
No recente Primeiro Simpósio Internacional de Ataxias Hereditárias, realizado em Montreal, o Dr Pandolfo levou os nomes de mais de 20 neurologistas e geneticistas do Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Espanha, França, Alemanha, Austrália e Rússia que estão interessados em pesquisar as possibilidades de tratamento dessa acumulação de ferro com queladores e antioxidantes. Esse comitê global necessita reunir certos objetivos críticos antes de se apressar no desenvolvimento de tentativas clínicas: desenvolvimento de um modelo de funcionamento da ataxia de Friedreich em camundongos, desenvolvimento de um quelador de ferro seguro e eficaz, seleção de um antioxidante apropriado e desenvolvimento de medidas de efeitos significativos. De acordo com o Dr Pandolfo, o comitê quer "fazer isto direito". Eles recomendam ao paciente abster-se de pedir ao seu médico qualquer tipo de quelador de ferro e aconselham não tentar eliminar completamente o ferro de sua dieta, porque a privação direta de ferro causa várias outras desordens que são tão sérias como a ataxia de Friedreich.
Fraser J Goodmurphy escreveu para a Internaf: "Nós todos estamos esperando há muito tempo por essa notícia. Resultados alentadores podem ser publicados mais cedo do que você possa imaginar. Enquanto isso, como a pesquisa da ataxia de Friedreich não é muito apoiada, você poderá contribuir para esse projeto doando seu tempo ou dinheiro a uma das organizações que patrocinam pesquisas de ataxia em seu país. Falando como alguém que vem enfrentando a ataxia de Friedreich durante 20 anos, acredito que todos nós temos uma razão válida para sermos otimistas sobre a possibilidade de um tratamento viável disponível em futuro próximo".

Referências:
Koutnikova H, Campuzano V, Foury F, Dollé P, Cazzalini O, Koenig M: Studies of human, mouse and yeast homologues indicate a mitochondrial function for frataxin. Nature Genet 1997, 16:345-351.
Campuzano V, Montermini L, Lutz Y, Cova L, Hindelang C, Jiralerspong S, Trottier Y, Kish SJ, Faucheux B, Trouillas P, Authier FJ, Dürr A, Mandel J-L, Vescovi AL, Pandolfo M, Koenig M: Frataxin is reduced in Friedreich ataxia patient and is associated with mitochondrial membranes. Hum Mol Genet 1997, 6 (In Press).
Babcock M, de Silva D, Oaks R, Davis-Kaplan S, Jiralerspong S, Montermini L, Pandolfo M, Kaplan J: Regulation of mitochondrial iron accumulation by Yfh1, a putative homolog of frataxin. Science 1997, 276:1709-1712. Carvajal J, Pook MA, Doudney K, Hillermann R, Wilkes D, Al-Mahdawi S, Williamson R, Chamberlain S: Friedreich ataxia: a defect in signal transduction? Hum Mol Genet 1995, 4:1411-1419.
Carvajal J, Pook MA, dos Santos M, Doudney K, Hillermann R, Minogue S, Williamson R, Hsuan JJ, Chamberlain S: The Friedreich’s ataxia gene encodes a novel phophatidylinositol -4- phosphate 5-kinase. Nature Genet 1996, 14:157-162.
Foury F, Cazzalini O: Deletion of the yeast homologue of the human gene associated with Friedreich’s ataxia elicits iron accumulation in mitochondria. FEBS Lett 1997 (In Press).
Wilson, R. B., and Roof, D. M. Respiratory deficiency due to loss of mitochondrial DNA in yeast lacking the frataxin homologue. Nature Genet. 16: 352-357.
Lamarche JB, Shapcott D, Côté M, Lemieux B: Cardiac iron deposits in Friedreich’s ataxia. In Handbook of cerebellar diseases, 1st edn. edited by Lechtenberg R. New York: Marcel Dekker; 1993:453-458.


Voltar Home Acima Avançar