SUPLEMENTO LITERÁRIO A ILHA

Edição Extra Especial em homenagem a Mário Quintana

EDIÇÃO 97-A - Julho/2006

 

QUINTANA: CEM ANOS DE POESIA

Esta edição ESPECIAL do Suplemento Literário A ILHA marca o vigésimo sexto aniversário do Grupo Literário A ILHA.
Para comemorar, além da edição normal do trimestre, com vinte páginas, trazendo oito páginas de matérias sobre a Guerra do Contestado, apresentamos esta edição extra especial, exclusivamente sobre o grande poeta Mário Quintana, pela passagem do Centenário do seu nascimento, neste mês de julho. Tudo o que já foi publicado sobre ele, nesta revista, e mais entrevistas, vida e obra, homenagens ao poeta menino. Inclusive todos os poemas do último livro de Quiantana, "Água".

Clique no título para ler a crônica:

MEU PÉ DE JACATIRÃO E AS BORBOLETAS DE QUINTANA - por Luiz Carlos Amorim

AS ESTRELAS DE QUINTANA - Por Urda Alice Klueger

A CONFRARIA DE QUINTANA - por Maria de fátima barreto Michels

QUINTANA EM EMBALAGEM DE LUXO - por Enéas Athanázio

 

OS ÚLTIMOS POEMAS
DE QUINTANA


O Suplemento Literário A ILHA pega carona em uma grande reportagem de Cleide Klock, da excelente revista Cartaz (Cultura e Arte) – publicada em Florianópolis e distribuída nos estados do sul e centro sul – e traz para as páginas do Supl. Literário A ILHA alguns dos poemas do último livro de Mário Quintana, o grande poeta menino do sul do Brasil.
Trata-se da edição trilíngue (português, inglês e espanhol) dos poemas escritos por Quintana para o Relatório Anual do Banco do Brasil de 1994, publicado em 2001, com o título de “ÁGUA”, pela Editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre.


O HOMEM E A ÁGUA

Deixa-me ser o que eu sou,
o que sempre fui,
um rio que vai fluindo.
E o meu destino é seguir...
seguir para o mar.
O mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...


USINA DE ITAIPU

Como um riso trancado
o rio explode numa gargalhada
de luz, calor, energia!
Parece até mágica
do Homem da Usina.
(E, se duvidares muito,
daqui a pouco sairão voando
todas as gravatas borboletas...)


FORTALEZAS DA ILHA DE SANTA CATARINA

Os velhos marinheiros meus avós...
Para eles ainda não terminou
a espantosa Era dos Descobrimentos.
Das construções com longos
e intermináveis corredores
que a lua vinha às vezes assombrar.
Nas casas novas
não há lugar para os nossos fantasmas!
E se acabarem as construções antigas,
a nossa história vai ficar sem teto!...

 

PONTE DE BLUMENAU

Entre a minha terra e a tua
Há um ponte de aço.
Desafiando o rio,
Desafiando o vento,
Desafiando a chuva,
Desafiando tudo!

Quem é que me espera,
Que ainda me ama,
Lá do outro lado
Da ponte de aço?


A CIDADE ÁS MARGENS DO RIO

Quando a água reflete
todos os postes de iluminação,
sabe que esta cidade já foi pequena.
Quando vão dormir as bem amadas,
as velhas carolas,
os executivos e os catedráticos,
quando na noite alta
o último boêmio passa cantando
e as meninazinhas há muito tempo dormim,
as águas vão passando...
Na cidade quieta,
só o rio corre dentro da noite.
É a vida continuando pelo mundo...


FLORICULTURA NO CERRADO

Quando a árvore não dá frutos
seus galhos se contorcem
como mãos de enterrados vivos,
os galhos desnudos,
ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus,
uma lenta procissão de retirantes...
De vez em quando um tomba,
exausto à beira do caminho
porque não há no lábio o frescor da água.
A doçura do fruto...


CATARATAS DO IGUAÇU

Os rios são caminhos
mais antigos
que a redondeza da terra.
Eles descem horizontes
seguem sozinhos no ar.

E a bela asa em pleno vôo,
entre o partir e o chegar,
sem se importar com fronteiras.
Mas como se há de parar?


PORTO DO SUAPE

No movimento
lento
dos navios
o dia
sonolento
vai inventando variações da luz...
No cais,
os guindastes,
domesticados dinossauros,
erguem a carga do dia.
As coisas também querem partir.
As coisas também querem chegar.


PRAIAS DO NORDESTE

Ondas dançando na praia,
Areia quente como o nosso olhar.
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar?
Nós também fazemos parte da paisagem!

 

Quintana morreu em 5 de maio de 1994, aos 87 anos e deixou como herança sua grande obra poética. E faz parte dessa herança, além de tudo o que já tinha sido publicado, os seus pertences pessoais, como livros, prêmios, objetos preciosos como originais manuscritos e datilografados, fotos, correspondências, óculos, críticas e publicações sobre o autor e provavelmente material inédito.
Todo esse acervo foi entregue ao Centro de Memória Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pela herdeira de Quintana, a sobrinha-neta Elena, para que seja preservado e divulgado.
Um dos poemas manuscritos, encontrados no acervo é:


A IMAGEM PERDIDA

Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca... uma taça quebrada...)
eu só tenho um valor estimativo.

Nos olhos que me querem é que eu vivo
esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
refletirá meu vulto vago e esquivo...

E cerraram-se os olhos das amadas,
o meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...

E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
muitas vezes, parei... e, nos espelhos,
procuro em vão minha perdida imagem!

 

MÁRIO QUINTANA E SUA OBRA

A leitura dos livros de Mário Quintana assemelha-se a uma conversa de fim de tarde, com direito a cantos de cigarra e pássaros sobrevoando as árvores da calçada em frente. Mais do que isso,, sugere uma inteligente cumplicidade, explicitada nas suas delicadas e argutas lições de vida.
“ Não te abras com teu amigo
Que ele outro amigo tem
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também”.

(Espelho Mágico – l948 )
Vários jornais de Porto Alegre foram beneficiados com a participação ativa do autor em seu quadro.
Excelente tradutor, trabalhou sobre as obras de Proust, Voltaire, Balzac, Malpassant , Virginia Wolf , Charles Morgan , entre outros. Após haver participado da Revolução de 1930, o gaúcho de Alegrete mudou-se para o Rio de Janeiro. Por ocasião de seu retorno ao Rio Grande do Sul trabalhou na Livraria do Globo, tendo Érico Veríssimo como diretor. O seu primeiro livro de poesias, intitulado “ A Rua dos Cataventos” , data de 1940, quando contava com 36 anos de idade.
A poesia, para Quintana, possuía um sentido vital, quase sagrado. Seguiria uma trajetória própria, sem maiores pretensões agregadas. Daí seu engajamento num trabalho coerente com o seu espírito criativo e argumentador. Em seu livro “A vaca e o hipogrifo” (1977) , afirma: “ Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus. É preferível para a alma humana fazer maus versos, a não fazer nenhum. O exercício da arte poética é sempre um esforço de superação e , assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma.”
Quando lhe pediam que falasse sobre sua vida, o poeta não disfarçava o seu desagrado: “ Bem... eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas sou eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”.
”O poema
essa estranha máscara
mais verdadeira do que a própria face”

( 80 anos de poesia, l986 )
O interessante com relação à obra de Quintana é a sua natureza múltipla. Apesar da postura crítica e da ironia refinada, há uma ternura explícita coexistindo, assim como uma envolvente honestidade conceitual.

“Se eu amo meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar meu semelhante?”
( Exame de Consciência - Caderno H / l973 )
As suas poesias, aparentemente simples, trazem a complexidade de quem viveu intensamente o sentimento de mundo. A vasta percepção possibilita uma engenharia sólida no que toca à compreensão da natureza humana . Convicto com relação a sua capacidade criadora, manteve-se distante dos modismos literários, cultuando forte independência com relação a qualquer tipo de classificação que viesse a rotulá-lo, ou à sua obra. Esse individualismo creditou-lhe um orgulho persistente,haja visto a sua autenticidade, instigando-lhe a dividir grandes lições de vida com o leitor que vier a prestigiá-lo.
”Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.”

( 80 anos de poesia, l986 )
”Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...”

( Apontamentos de história sobrenatural, 1976 )
” Olha o que aconteceu aos Grandes Impérios! Por eles se vê que a mania de grandeza é sempre fatal.
E espia só os iguanodontes , esses pesadelos ridículos...
Se fossem do tamanho de lagartixas, existiriam até hoje.”

( Do gigantismo - A vaca e o hipogrifo / 1977 )
Estabelecer um percurso sobre a obra do autor significa um exercício de contínua sensibilidade.
Ainda que inicie muitos de seus versos com uma fina ironia, a densidade de suas questões não permite ocultar que fazer poesia é refugiar-se do incômodo existencial e filosófico que sua extrema sensibilidade insiste em sacudir.
” Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha... “

( 80 anos de poesia, l986 )

A postura encontrada diante da compreensão da morte, da religião ou da existência divina não deixa dúvidas quanto ao recurso da poesia como
uma tentativa de apaziguamento com a ausência de respostas de um ser humano intenso,comprometido e intrigado com a grandeza da vida. Apesar disso, ele luta bravamente para não se considerar diminuído por ela.
” Eu estava dormindo e acordaram-me
...e me encontrei num mundo incerto e louco!
Mas quando eu começava a compreendê-lo
um pouco,
já eram horas de dormir de novo...”

( Nova antologia poética, 1966 )
”O bicho,
Quando quer fugir dos outros,
Faz um buraco na terra.
O homem,
para fugir de si,
fez um buraco no céu “

( Nova antologia poética, 1966 )
” Deus não está no céu. Deus está no fundo do poço
onde o deixaram tombar.
- Caim, o que fizeste do teu Deus?
Suas unhas ensangüentadas arranham em vão as paredes escorregadias.
Deus está no inferno...
É preciso que lhe emprestemos todas as nossa forças
todo o nosso alento
para trazê-lo ao menos à face da terra.
E sentá-lo depois à nossa mesa
e dar-lhe do nosso pão e do nosso vinho.
E não deixar que de novo se perca.
Que de novo se perca... nem que seja no céu!”
( Nova antologia poética, l966 )
”Sabes? Os cabelos da morte são entrelaçados de flores.”

( Nova antologia poética,1966 )
” A nossa vida nunca chega ao fim. É como se alguém estivesse lendo um romance achasse o enredo enfadonho e, interrompendo, com um beijo, a leitura, fechasse o livro e o guardasse na estante. E deixasse o herói, os comparsas, as ações,os gestos, tudo ali esperando, esperando... Como naquele jogo a que chamavam brincar de estátua. Como um filme que parou de súbito.”
( A vaca e hipogrifo, l995 )

Tarefas das mais cotidianas, aparentes atos motores como a saída à rua ou a visão de uma formiguinha cruzando o papel em branco,tornam-se grandes buscas, diante da aguçada percepção subjetiva do poeta. É o que poderíamos denominar como a Cor do Invisível,sugestivo título de um dos livros do escritor.
”As mãos que dizem adeus são pássaros
Que vão morrendo lentamente...”

( A cor do invisível, 1989 )
” Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, naquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e oi mistério da vida...”
( Nova antologia poética, 1966 )
” Nada há mais triste do que o grito de um trem no silêncio noturno. É a queixa de um estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre, desesperado, noite em fora, como que para escapar à sua orfandade e solidão de monstro”
( Nova antologia poética, 1966 )
” O doloroso sulco lábio-nasal junto à garrafa morta...”
( A cor do invisível, l989 )
” Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas, conturbam...
Quando as desce, a gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa
-o peito
estreito-
o teto descendo
Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!”

( Nova antologia poética, l966 )

 

2006: CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE QUINTANA

A partir do dia 30/07/05, começaram no Brasil as comemorações do centenário do aniversário do grande poeta Mário Quintana. E a Biblioteca Pública Luiz de Bessa, de Belo Horizonte, foi quem deu a partida, com a exposição “Mário Quintana, o poeta do simples”, divulgando a poesia desse grande poeta, que é digno das mais belas homenagens. Quintana sempre se mostrou como um amante da simplicidade e voltou seu olhar, principalmente, para a vida cotidiana. Iniciadas antecipadamente, as comemorações do centenário de Mário Quintana, que se dará, na verdade, em 2006, a editora Globo já distribuiu nas livrarias os três primeiros livros do Mario (CANÇÕES, A RUA DOS CATAVENTOS, e SAPATO FLORIDO), em edições primorosas. Em seguida, sairam mais dois, O APRENDIZ DE FEITICEIRO e ESPELHO MÁGICO. Muito bom o destaque que a reedição do Mario Quintana vem ganhando na mídia. Na Bienal do Rio, os três primeiros títulos do Quintana tiveram um lugar especial nos cadernos de cultura das principais jornais brasileiros. Isso confirma a força e p valor que Mario Quintana. A Editora Nova Aguillar também prepara uma super edição de luxo organizada pela professora Tânia Carvalhal. E a Moderna esquenta os motores para lançar uma biografia do poeta escrita por Márcio Vassallo, dentro da coleção Mestres da Literatura. Ainda em função do centenário do grande poeta, em 2006, e para criar uma atmosfera mais aconchegane ao público que visita as dependências da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, vários projetos serão levados a efeito, no sentido de tornar disponível todo o acervo da instituição. A aquisição de equipamentos facilitarão não só a consulta ao site da Casa da Cultura Mário Quintana e às informações sobre o poeta nele contidas, como também o aceso aos conteúdos de vídeos que integram o acervo.
Saiba um pouco sobre o poeta Mário Quintana:
-Poeta brasileiro, nascido em Alegrete (RS), em 30 de julho de 1906.
- Aprende a ler aos 7 anos de idade, auxiliado pelos pais, tendo como cartilha o jornal Correio do Povo.
- Seu conto, A Sétima Personagem, é premiado, em 1925, em concurso promovido pelo jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre.
- Em 1940 sai a primeira edição de seu livro A Rua dos Cataventos.
- Em 1946 sai a edição de seu segundo livro, Canções.
- Em 1950, publicação de O Aprendiz de Feiticeiro, versos, pela Editora Fronteira, de Porto Alegre.
- Em 1967, recebe o título de Cidadão Honorário, conferido pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
- Em 1980, publicação de Esconderijos do Tempo, pela L & PM Editores. Recebe o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.
- Em 1986, recebe o título de Doutor Honoris Causa pela UNISINOS (Universidade do Vale dos Sinos) e pela PUCRS (Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Publicação de Baú de Espantos, pela Editora Globo. Reunião de 99 poemas inéditos (1982 a 1986).
- Em 1988, lançamento de Porta Giratória, pela Editora Globo, Rio de Janeiro, reunião de crônicas sobre o cotidiano, a infância, a morte e o tempo.
- Em 1990, lançamento de Velório sem defunto, poemas inéditos, pelo Mercado Aberto, Porto Alegre.
- Em 1994, publicação de seus textos na revista literária Liberté - editada em Montreal, Quebec (Canadá). Publicação de Sapato Furado, pela editora FTD - antologia de poemas e prosas poéticas, infanto-juvenil. -Falece no dia 05 de maio.

 

PEQUENO POEMA DIDÁTICO

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema.
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

 

PALAVRAS DO POETA

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Nest e último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à min ha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos c omo os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. N ote-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

(O texto acima foi escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984.)

 

DATA E DEDICATÓRIA

Teus poemas, não os date nunca...
Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

 

OUVINDO E COMEMORANDO QUINTANA

Um leitor do portal Prosa, Poesia & Cia., do Grupo Literário A ILHA, enviou-me um mail, dia destes, perguntando se eu tinha alguma informação sobre a reedição de CD com declamação de poemas de Quintana, gravados na voz do próprio poeta. Sei que foram lançados alguns, apesar de eu não ter nenhum deles e fiquei curioso e feliz por um possível relançamento. E fui procurar na internet.
Achei, entre tanta informação sobre o poeta, o site comemorativo do seu centenário – em http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/ , organizado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Um trabalho muito bem feito, abrangente, eu diria completo. Muito bem produzido, agradável de se ver e navegar. Além da biografia, da bibliografia, de depoimentos, de entrevistas e fotos, de parte da obra, encontrei gravações do poeta declamando seus próprios poemas, dezenas deles. Também as entrevistas e depoimentos estão em gravações de áudio e vídeo.
Fiquei muito feliz e não tive dúvidas: Baixei as dezenas de declamações do poeta e vou gravar um CD para mim!
E já que estava com a mão na massa, não pude deixar de ver as homenagens que fazem parte das comemorações dos cem anos do nascimento do grande lírico brasileiro. Durante todo o ano de 2006, a vida e obra do nosso grande poeta serão lembradas em uma extensa programação de eventos culturais, marcando o “Ano do Centenário de Mário Quintana”, que foi instituído pelo governo do Rio Grande do Sul, através do decreto 43.810, de 24 de maio de 2005.
Também fazendo parte das comemorações do centenário, foi lançado pelos Correios, em meados de 2005, um selo em homenagem ao nosso menino Quintana.
Toda a obra de Quintana está sendo reeditada, desde o início das comemorações, em 2005. A Editora Globo já publicou “Canções”, “A Rua dos Cataventos”, “Sapato Florido”, “O Aprendiz de Feiticeiro” e “Espelho Mágico”. A coleção Mário Quintana é composta de 18 livros, que continua a ser publicada neste ano, obedecendo a ordem cronológica.
Foi lançada, ainda, a biografia sintética “Mário Quintana: poeta, caminhante e sonhador”, pelo Instituto Estadual do Livro, e o dicionário de citações “A Quinta Essência de Quintana”, editado pela Companhia Zaffari.
Em formato de bolso, a biografia integra a coleção Autores Gaúchos e reúne cronologia da vida do poeta, sumário da obra, além de depoimentos de Quintana. Com citações do autor organizadas em verbetes temáticos e fotos, o dicionário vem com um CD de poemas lidos por Paulo José. Não sei quais os poemas declamados no CD, mas vou tentar conseguir mais esse troféu.
Sempre dentro da programação das comemorações do centenário, foi lançado, também, o “Dicionário Mário Quintana”, resultado de pesquisa nos versos do poeta. Outra publicação em destaque é o relançamento de “A Porto Alegre de Mário Quintana”, da fotógrafa Liane Neves.
E muito mais eventos existem programados para comemorar o centenário do grande Quintana, durante este ano de 2006: toda a obra dele está sendo reeditada e outros livros sobre o poeta, a sua poesia e a sua vida estão vindo por aí.
Vale lembrar, aqui, o último livro de Quintana, “ÁGUA”, uma edição trilíngüe (português, inglês e espanhol) dos poemas escritos por ele para serem encartados no Relatório Anual do Banco do Brasil de 1994, publicado em 2001, pela editora Artes e Ofícios. São nove poemas sobre o mar e sobre lugares importantes pelo Brasil que tem a ver com água, como Cataratas do Iguaçu, Porto de Suape, Ponte de Blumenau, Usina de Itaipu, Fortalezas da Ilha de Santa Catarina e outros.
De amostra, publico “Ponte de Blumenau”: “Entre a minha terra e a tua / Há uma ponte de aço. / Desafiando o rio, / Desafiando o vento, / Desafiando a chuva, / Desafiando tudo! / Quem é que me espera, / Quem ainda me ama, / Lá do outro lado / Da ponte de aço?”
Todos os poemas do livro estão na edição 83 do Suplemento Literário A ILHA, de dezembro de 2002, no Portal Prosa, Poesia & Cia – http://geocities.yahoo.com.br/prosapoesiaecia . (Luiz Carlos Amorim)

 

O VELHO NO ESPELHO

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

 

CAFÉ COM POESIA

Tânia Melo

Caminhando distraída pela Rua da Praia, não reparei, imediatamente, na figura que, de uma forma extremamente carinhosa, olhava para mim.
Aquele rosto alegre era quase um ímã. Não pude ignorá-lo.
-Meu Deus! Não é possível!-falei, quase num grito, tamanho foi meu espanto.
Seu olhar tornou -se duro. O rosto crispado. Furioso por minha desconfiança
- Como, não é possível? Estás pondo em dúvida minha identidade?
-Não, imagine! balbuciei, entre nervosa e encantada. É que...
-...morri? É isto?
Sorriu novamente ao sentir o quanto eu arregalava os olhos e tremia o queixo, sem controle.
-Acalma-te, moça.Vamos sentar um pouquinho. Precisas de um copo d’água.
-...com açúcar, de preferência - completei.
-Eu prefiro que seja em um lugar muito conhecido e aconchegante para mim.
Dizendo isso, ofereceu-me o braço e eu, como uma autômata, o segui.
Chegando ao Cataventos, no térreo da Casa de Cultura, lançou-me um olhar inquiridor e, ao mesmo tempo, triste.
-Me acompanhas? perguntou, parecendo temer uma resposta negativa.
Não articulei palavra. Somente acenei com a cabeça, de maneira afirmativa e consegui sorrir, muito sem graça.
Incrível o poder daquela criaturinha magra e miúda. Em poucos instantes eu me sentia completamente à vontade em sua companhia, como se fôssemos íntimos amigos que se reencontravam após uma longa e saudosa ausência.
O mais incrível foi a naturalidade com que ele entrou no bar, cumprimentou a todos e dirigiu-se a uma das mesas, onde, muito gentilmente, puxou a cadeira para que eu sentasse e tomou o seu lugar.
Assombrada, não conseguia entender como aquelas pessoas todas, ali, não demonstravam a menor surpresa diante de sua aparição. Sua presença, apesar de ser muito festejada, era tida como normal.Cliente costumeiro. Gente da casa.
Será que estava louca? Ou isto tudo era apenas um sonho?
Mas, não. Tudo era muito real.
Não precisou sequer fazer o pedido. O garçom, após nos receber, dirigiu-se ao balcão e providenciou o costumeiro cafezinho, acompanhado por deliciosos quindins e, obviamente, um cinzeiro.
-Estou de regime, disse-lhe, sorrindo.
-Hoje não estás, não.Recomeças amanhã.
-Por favor, explica-me, de verdade...
Com um gesto, interrompeu-me, dizendo: “Venho do fundo das Eras. Quando o mundo mal nascia... Sou tão amigo e tão novo, como a luz de cada dia!”
Não havia mais espaço para dúvidas. Eu estava sentada, tomando o famoso café com quindins, e conversando animadamente com o meu adorado Quintana.
-Meu Deus! Quanta falta nos fazes, meu amigo.
-Não. Cumpri a minha etapa, falava, enquanto acendia um cigarro.
Perguntei-me, íntima e silenciosamente, o que teria feito para merecer tal privilégio, tamanha alegria?
Adivinhou meus pensamentos.
-Não te questiones quanto a isso. Eu, simplesmente, não gosto de tomar café sozinho. Já tive muitos momentos de solidão, em vida. Agora, desfruto sempre de alguma boa companhia, quando venho até aqui.
Um gole de café, um pedaço de quindim... e mais um cigarro.
Aproveitei, então, para agradecer-lhe por tudo o quanto deixara de bom para esse mundo.
-Tuas poesias encantam a milhares de pessoas.São sementes que brotam e dão frutos sem parar.És amado e cons...
Novamente o gesto com a mão, fazendo -me calar.
-Teu café vai esfriar. E, se não gostas de quindim, não faças cerimônia. Pede o que mais te agradar. Além disso, meu tempo é curto. Hoje é quarta-feira, não? Tenho apenas mais uns dez minutos.

Entre quindins, cafés e cigarros, os instantes voaram e, com tristeza vi que levantava e achegava-se a mim, beijando, carinhosamente o meu rosto, em sua despedida.
Não pude conter as lágrimas.

Foi se retirando, sorrindo, acenando e, apesar da distância, ainda pude ouvi-lo: “As mãos que dizem adeus, são pássaros que vão morrendo lentamente...”
 

 

CANÇÃO DE OUTONO

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminho do Outono
Vão dar em parte nenhuma!

 

QUINTANA, AS BORBOLETAS E NÓS

Por Luiz Carlos Amorim

No meu primeiro dia de Feira de Rua do Livro, em Florianópolis, neste início de outono de 2006, encontrei lá, também, lançando um livro dela, a terceira edição do infanto-juvenil “A Vitória de Vitória”, a minha amiga escritora Urda Alice Klueger, uma das maiores representantes da literatura catarinense, romancista e cronista de sucesso comprovado. Estávamos autografando nossos livros no mesmo horário, embora em estandes diferentes.
O livro de Urda é uma bem sucedida incursão dela no gênero infanto-juvenil, ela que tem vários romances publicados, alguns já considerados clássicos da literatura de nosso estado, como “Verde Vale”, “No Tempo das Tangerinas”, “Cruzeiros do Sul”. O meu é um volume de crônicas, “Saudades de Quintana”, uma homenagem ao poeta maior, pela passagem do centenário do seu nascimento, neste ano de 2006.
Até aí, nada em comum. O que descobrimos, uma tremenda coincidência, é que uma máxima de Quintana, que eu usei na página de dedicatória do meu livro em lançamento foi exatamente a mesma que Urda usou na referência de uma crônica belíssima, como citação, lá embaixo do título, antes de começar o texto. A crônica era inédita, recém escrita, e ela a tinha na bolsa, ainda manuscrita. Queria lê-la para nós em primeiríssima mão e o fez em plena efervescência da feira do livro.
A máxima de Quintana que nós dois usamos é esta: “O segredo é não correr atrás das borboletas... É cuidar do jardim, para que elas venha até você...”
A crônica de Urda, linda, cheia de poesia como só Urda sabe fazer uma prosa, falando de borboletas, de amor, de jardim e de flores, de emoções e sentimentos, vocês vão ler, provavelmente, que ela vai ser publicada em vários lugares.
Mas nada é igual a ouvir na voz de Urda uma das melhores crônicas que ela já escreveu. É um privilégio único, que não posso dividir com vocês, infelizmente, ouvir a interpretação do texto pela própria autora, impregnada de emoção e de paixão. Apenas Eliane Debus e Eloí Bocheco, que estavam conosco, naquele momento é que também puderam usufruir.
O poeta está no andar de cima, poetando em companhia de Coralina, Pessoa, Cruz e Sousa, mas continua vivo aqui, através da sua poesia, emocionando e inspirando a todos nós.

 

O AUTO RETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

 

O CENTENÁRIO DE QUINTANA, O POETA ETERNO

Por Luiz Carlos Amorim

2006 é o ano do centenário de nascimento do poeta Mário Quintana. O nosso menino Quintana, dos seus eternos cantares, completaria, neste ano, cem anos de vida. O que todos nós sabemos, na verdade, é que ele não morreu: se a poesia é Quintana, se Quintana é a poesia e a poesia não morre, ele está por aí, em todo o lugar onde houver poesia: no céu, no sol, nas estrelas, num sorriso cristalino, nas asas de um passarinho, nas asas da liberdade, nas pétalas de uma flor.
Fala-se bastante, ultimamente, de Quintana, o poeta da simplicidade. Sim, também, mas só pela simplicidade um poeta não viria a se tornar tão grande, universal, imortal – ele não entrou para a Academia Brasileira de Letras, mas é muito mais imortal, se é que é possível se dizer isso, do que muito acadêmico. A simplicidade é importante, sem dúvida, mas a poesia de Quintana tem muito mais do que isso: ela tem conteúdo, tem ritmo, tem lirismo, tem musicalidade, tem sentimento, tem emoção. Tem verdade, tem universalidade.
“Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.” – Isto, dito pelo próprio poeta, quando pediram para falar de si, diz tudo sobre ele, deixa bem claro que ele está mais vivo do que nunca nos seus poemas, na sua poesia, seja ela em verso ou prosa. Quintana, este mágico artista das palavras, construtor de emoções, também disse que “poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras - poesia é a luta amorosa com as palavras.” Por isso nosso velho menino jovem, nosso menino eterno tem a obra-prima que tem, como “O Auto-Retrato”, por exemplo: “No retrato que me faço / - traço a traço - / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore...”(...)
Ou como “Ah, sim, a Velha Poesia..’: “... a Poesia faz uma coisa que parece que nada tem a ver com os ingredientes, mas que tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse gosto de nunca e de sempre”. Como “O Poeta começa o dia”: “...Acabo de trocar / - em meio aos risos da rua - / todas as jubas do Sol / por uma trança da Lua!”. E também como “Quando eu Morrer”: ...”Eu levarei comigo as madrugadas, / Por de sóis, algum luar, asas em bando, / Mais o rir das primeiras namoradas...” E como tantos outros...
Felizes aqueles que conheceram Quintana de perto – eu não tive essa felicidade – pois certamente esses privilegiados podem ver, ainda, Quintana passeando, sereno, pelas ruas da sua Porto Alegre velha...
Outros poetas, aprendizes, como tantos, passarão. Você, menino Quintana, o maior lírico dos nossos poetas, poesia viva e eterna, você apenas passarinho... Você e a sua poesia continuarão vivos por muitos, muitos e muitos anos...

 

OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

 

 

CRÔNICAS PARA QUINTANA


Por Irene Serra



Muitos analistas dizem que a crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja naspáginas de uma revista, seja nas de um jornal. É feita com a finalidade de agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.
Não concordo. Sou da opinião de Artur da Távola, quando diz que a crônica é a expressão das contradições da vida e da pessoa do escritor na manifestação dos sentimentos, idéias, verdades e pensamentos. É ao mesmo tempo: poesia, ensaio, crítica, registro histórico, factual, apontamento, filosofia, flagrante, mini-conto, retrato, testemunho, opinião, depoimento, análise, interpretação, humor. Tudo isso ela contém em sua polivalência. Direta, simples e profunda.
E é isso que o leitor vai encontrar aqui na coletânea de crônicas do professor e escritor Luiz Carlos Amorim - “Saudades de Quintana”.
Na crônica intitulada “A criação literária”, Amorim afirma: “A criação literária é um dom. Podemos aprimorar o nosso fazer literário, estudando para dominar a língua, a correção no uso da palavra, ler muito e escrever sempre e assim podermos crescer e produzir uma literatura de qualidade. É claro que nem sempre conseguiremos construir obras primas, mas o dom que defendemos deverá nos levar a caminhar para isso, embora saibamos que não é fácil chegar lá. Só saberemos da qualidade da nossa obra quando ela chegar até o público e, para isso, há que se ter um livro publicado e com uma boa distribuição. O público leitor é que vai sinalizar se nossa literatura é boa ou não”. Uma introdução verdadeira para discutir uma situação real.
Em linguagem simples, direta, penetrante e instantânea como a do poeta homenageado, Luiz Carlos Amorim faz com que suas palavras misturem-se às sensações do leitor, dissolvendo-as em uma vivência comum. Parece a quem lê que o cronista deu forma ao que ele, leitor, gostaria de ter escrito. Este é o dom do nosso autor. Dom que aperfeiçoou lendo e saboreando outros grandes escritores e poetas como Mario Quintana - que dizia não ser modesto, pelo contrário, era tão orgulhoso que achava que nunca escreveu algo à sua altura. Para ele poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz.
Graças a Deus, Luiz Carlos Amorim é admirador de Quintana. Mas, se Quintana não se dizia modesto, Amorim o é; apesar de nunca estar satisfeito e procurar sempre, a cada crônica, a sua auto-superação. Um embate entre a natureza comum e a sensibilidade artística num homem de habilidade no trato com as palavras. Amorim nasceu cronista.

 

 

Acervo Mário Quintana
resgata a poesia


A vida e obra do poeta Mario Quintana nunca será esquecida. No segundo andar da Casa de Cultura Mario Quintana, ala Leste, encontram-se expostos painéis, quadros, e pôsteres com fotos de Mario Quintana além de uma mesa-vitrine, onde se renovam, a cada mês, poemas e ilustrações sobre o poeta. Em 1999 incorporamos aos nossos objetivos a importante divulgação da obra de Quintana. Para tanto, disponibilizamos um espaço para pesquisa de alunos e interessados, com livros que vão desde o primeiro “A Rua dos Cataventos” até publicações póstumas como “Sapato furado” (1994) e “Anotações poéticas” (1997). Também estão disponíveis cadernos, livros, álbuns sobre a vida e obra de Quintana e algumas traduções feitas pelo poeta como “Em busca de viver”, de Lin Yutang. No local encontra-se um total de 172 fotos, uma coleção de 20 pôsteres, doados por agências de publicidade referentes a uma mostra de cartazes realizado no Acervo em 1992 e inspirados nos livros de Quintana, 12 quadros com ilustrações, pinturas, poemas gravados em fita K7, LP e CD, 13 fitas VHS (com depoimentos e entrevistas), além de uma coleção de 24 caricaturas. Entre as dezenas de declarações, destacam-se as de Paulo Autran, Antonieta Barone, Bruna Lombardi, Olga Reverbel, Vasco Prado e Moacyr Scliar. Existem ainda originais de poemas (em folhas de ofício e em blocos), notícias de jornais, e o mapa astral do poeta (com interpretação de Ricardo Lindermann).
O Acervo oferece a alunos de escolas palestras sobre as atividades realizadas por Mario Quintana durante sua vida. Estas atividades englobam o projeto Palavra Viva, as quais se realizam através de prévio agendamento pelo telefone 3221 7147, ramais 242, 203. Além disso, um sonho foi realizado com a colaboração da sobrinha Elena Quintana: a recriação do último quarto do poeta, no Porto Alegre Residence Hotel, sua última morada. Este espaço fica na sala conjugada ao Acervo, podendo ser visto através de uma janela de vidro. Lá estão os móveis e objetos de Quintana dispostos da mesma forma como ele deixara. Na verdade, um ambiente que muito lhe serviu de inspiração. Definitivamente, o poeta está de volta ao lar.

 

POESIA VIVA


Luiz Carlos Amorim

Eu conheci um menino,
um velho menino jovem
bem do sul do meu país,
mágico artista, poeta,
construtor de emoções.
Este menino é Quintana,
tão lírico e tão travesso.
Este menino é Quintana,
de seus eternos cantares,
nosso menino poeta.
Outros poetas, aprendizes,
como tantos, passarão.
Você, menino Quintana,
poesia viva e eterna,
você apenas, passarinho...

 

ENTREVISTANDO QUINTANA

Entrevista ao Suplemento Literário Minas Gerais, em 1986

SL - Qual a diferença entre o menino Mário e o poeta Quintana?
MQ - Nenhuma.
SL - Você consegue lembrar o primeiro poema? E o que escreveu hoje, como é?
MQ - Não consigo lembrar. Comecei a fazer versos logo que aprendi a ler. O poema decerto não prestava. Mas o poema de um menino-poeta é sempre o melhor poema do mundo. Não deixo por menos. Pois é o primeiro e deslumbrado encontro de uma alma com a poesia. Quanto ao poema de hoje, prefiro não citar, porque há o perigo de ter havido um desencontro...
SL - O que mais o irrita nos outros? E em si mesmo?
MQ - As perguntas íntimas. As respostas evasivas.
SL - Agradam-lhe as belas mulheres. A primeira musa, quem foi? E a Bruna, de que maneira entrou no rol dos seus amores?
MQ - A Bruna é, antes de tudo, a minha mascote (desde 1976, sempre um acompanha o outro nas tardes de autógrafos). Nossos amores? Mas a Bruna não me ama: apenas adora-me! Isto porque um desencontro de fusos horários abriu uma diferença de 48 anos entre nós...
Uma pena! Mas felizmente o tempo nos deu tempo de nos encontrarmos ainda nesta vida, de nos tornarmos grandes amigos. Não posso queixar-me... Porque a Bruna é dessas criaturas que compensam a vida.
SL - Você, que traduziu Proust, anda em busca do tempo perdido, ou lhe satisfazem as raparigas em flor de agora?
MQ - Tempo perdido não quer dizer tempo morto: ele ressuscita sempre. E muitas vezes está mais vivo do que o tempo presente. Quanto às raparigas em flor de agora, para mim são as mesmas de outrora: devem ser a terceira ou quarta geração das raparigas em flor do meu tempo. Podem dizer que hoje há diferenças de costumes, de comportamento... mas os seus truques, manhas e negaças continuam os mesmos...
SL - O futuro, como o imagina?
MQ - O futuro é uma espécie de banco, ao qual vamos remetendo, um por um, os cheques de nossas esperanças. Ora! Não é possível que todos os cheques sejam sem fundos...
SL - E a sua visão do outro mundo? De Deus, deuses e dos anjos? Do Diabo?
MQ - Oportunamente saberei... Tenho até muita curiosidade - mas nenhuma pressa - de saber como será o outro mundo. Deus está em toda parte. Mas por que procurá-lo no mundo exterior? Se ele está em toda parte, está dentro até de cada um de nós e a cada um compete descobri-lo, dar-lhe a maior parte possível em nossa vida terrena. Do contrário, o nosso Deus interior pode até morrer, como acontece com os ateus, os positivistas, todos os materialistas. Eles não sabem que são o sepulcro de Deus.
A falar a verdade, não importa que a gente acredite ou não em Deus, mas se Deus acredita na gente. Da minha parte, só acredito mesmo é na segunda Pessoa da Santíssima Trindade, no Deus Vivo, pois temos testemunho histórico de que Jesus Cristo viveu entre nós. Quanto aos deuses pagãos, morreram de fato, pois os poetas deixaram de invocá-los. Dos Anjos não posso absolutamente duvidar, em vista da insistência com que aparecem em meus poemas.
Santo da minha devoção? São Jorge, com seu Cavalo e seu Dragão. Sou devoto dos três.
SL - Sobreviveu a vida inteira de escrever: em jornais, revistas, traduzindo excelentes livros e, claro, como poeta. Se viesse ao Mundo de novo, escolheria o mesmo modo de viver (e de sobreviver)?
MQ - O mesmíssimo modo, sem tirar nem pôr.
SL - Que obras e/ou autores mais ama ou amou?
MQ - Todas elas.
SL - Considerado feiticeiro e mágico, o que sente ante o mistério de criar?
MQ - Deslumbramento e susto. Digo susto, porque na verdade nunca passei de um aprendiz de feiticeiro.
SL - A solidão é o silêncio de um bar cheio de gente?
MQ - A solidão é o silêncio que a gente faz dentro de si mesmo, em qualquer ambiente, seja barulhento ou não.
SL - Você bebe ou não bebe? Fuma ou não fuma?
MQ - Bebia. Fumo.
SL - Certa vez, ao receber convite de Manuel Bandeira para visita-lo no Rio, respondeu que sim, iria e ainda teria dito: “Seu desejo é uma ordem, mas nem imagina como sou chato nos intervalos dos meus poemas.” É verdade, se acha chato quando não em estado de graça?
MQ - Os outros é que me acham chato quando estou em estado de graça.
SL - E os palavrões, fazem parte de seu vocabulário? Em que circunstância costuma proferi-los?
MQ - Só quando me pisam os calos, ou com dizem os gaúchos, só quando me pisam no poncho.
SL - Uma confissão inédita, por favor.
MQ - Ela continua inédita, exatamente por ser inconfessável.
SL - Você, acostumado a caminhar pelas noites (e dias) e ruas de Porto Alegre, até naquelas em que nunca andou, estranha o uso da bengala, após seu acidente na perna?
MQ - O único inconveniente do uso da bengala é que chama muito a atenção. Não gosto de chamar a atenção.
SL - No Quem É Quem, está registrado que Mário Quintana é “um patrimônio universal”. Como encara a prova concreta de sua imortalidade?
MQ - Eu sempre me considerei cidadão do mundo. Mas patrimônio universal? Aí cantam outros passarinhos... Se alguém se considerar patrimônio universal, só se for um louco ou... um gênio. Não sou nenhuma das duas coisas. Acontece é que estou na moda - o que me desvanece e me assusta um pouco, pois vivo a perguntar-me: “Até quando durará essa imortalidadezinha?”

SL-Como é o seu processo de criação? Há momento (um estado especial) ou é a toda hora?
MQ – Vem a qualquer momento, como um relâmpago. O problema é fixar o relâmpago. Aí vem a luta do poeta com as palavras, até que estas expressem o que ele queira dizer. No fundo, a poesia é isto: a eternização do momento.

 

 

SAUDADES DE QUINTANA


Por Luiz Carlos Amorim

Assistindo a um programa sobre Mário Quintana, a propósito do décimo aniversário da morte do poeta, senti uma saudade infinita daquele velho menino jovem (ou seria jovem menino velho?), a poesia personificada, viva e eterna. Nunca o conheci pessoalmente, conheço apenas a sua obra, conheço-o apenas pela sua poesia, mas consigo, através do seus versos, vislumbrar o ser humano. E agora, vendo as entrevistas mostradas neste programa, vem-me a impressão de já tê-lo encontrado, de já ter convivido com ele e então sinto uma saudade imensa.
Só fui a Porto Alegre, terra onde o mágico artista das palavras viveu a maior parte de sua vida, bem depois da morte dele, e me surpreendo com esta saudade enorme que sinto do menino poeta. É interessante ter saudades de alguém que você nunca viu de perto. Mas é possível. Coisa de Quintana, tão lírico e tão travesso, arquiteto de emoções. Não é à toa que seus eternos cantares cativaram tantos leitores pelo Brasil afora, quiçá pelo mundo.
Ele sempre dizia que a sua poesia não era um simples exercício de ficção, que cada poema seu era uma confissão sua. A poesia era ele, ele era a poesia. Então, em se tratando de Quintana, é plausível, conhecendo os seus versos e a sua prosa cheia de poesia, que eu tenha conhecido o poeta. E é natural, conseqüentemente, que eu sinta saudades dele.
O grande poeta, perguntado sobre qual seria o seu maior sonho, certa vez, respondeu: “Fazer um bom poema”. Talvez aí resida toda a sua grandeza: ele não só era humilde, era simples e autêntico, verdadeiro como a sua poesia.
Quando morresse, “levaria junto apenas as madrugadas, pôr-de-sóis, algum luar, asas em bando, mais o rir das primeiras namoradas”, como ele mesmo escreveu.
E como diria Érico Veríssimo: “Vou revelar a vocês um segredo: descobri outro dia que o Quintana, na verdade, é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora”. Quem ousaria desmentí-lo?
Outros poetas, tantos, passarão, Quintana. Você, apenas passarinho...

 

QUINTANARES

Manuel Bandeira

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.
São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares
Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando meus quintanares...
Mario Quintana

(Poema recitado por Bandeira na homenagem
aos 60 anos do poeta, na ABL.)

 

AS BORBOLETAS DE MÁRIO QUINTANA

Urda Alice Klueger

“(...) O segredo é não correr atrás das borboletas ... é cuidar do
jardim para que elas venham até você”

(Mário Quintana)


É Outono no Sul do Mundo. Estou numa ilha ancorada no Oceano Atlântico,
e uma cigana tenta me vender tapetinhos que não quero, que nada têm a
ver comigo. Como não vou querer mesmo, imagino que ela vá me amaldiçoar quando se for, como as ciganas fazem muitas vezes. Não creio em maldições de ciganas - creio, sim, na bênção leve que vem das asas das
borboletas.
Tenho um mundo povoado de borboletas, não importa aonde ande, mas parece que aqui nesta Ilha, em dias de Outono e céu azul, as borboletas
fiquem mais visíveis. É como se elas revoluteassem à minha volta,
lindas e coloridas, e cada uma me trouxesse uma prenda, uma alegria.
Talvez porquê elas pensem que esta ilha é um navio que vai singrando
mares tão desconhecidos quanto os de Goneville - mas como elas podem
pensar tal coisa se este é um mar de Sol e Outono, e não o Mar das Brumas?
Disse Quintana que o segredo é não correr atrás das borboletas, e
penso: Quintana viveu a menos de 500 quilômetros daqui. Poderia ir até
à terra onde ele viveu, remando numa canoa. Talvez nem precisasse
remar, talvez surgissem grandes borboletas que, voando, puxassem a
minha canoa como os cavalos puxam as carruagens. Não seria a mesma
coisa que correr atrás das borboletas - elas me levariam a reboque por
vontade própria até lá na terra onde havia um poeta que escreveu um
regulamento de vida para que elas e os humanos se entendessem direito.
As borboletas neste dia de Outono, nesta Ilha! Elas me circundam e
me encantam, e recendem à maresia! Talvez haja tantas aqui porque
descobri o segredo de Quintana, e trato de cuidar do jardim para que
elas um dia venham pousar, caso quiserem. E se nunca pousarem? Obedeço
a Quintana, não corro atrás delas! Se nunca pousarem, vou saber que a
vida valeu a pena, porque elas sempre estão por perto, e ainda mais por
este dia nesta Ilha, quando, confundidas, elas não distinguem muito bem
se isto é Ilha ou Navio, e indiferente a ciganas e suas maldições, me
abençoam por todos os lados, leves, coloridas, luminosas e mágicas,
quase como se fossem feitas de eflúvios de perfume de tangerinas, e são
tão parecidas com o meu amor!

 

O LUGAR DO POETA

Por Luiz Carlos Amorim

Estou protelando há meses, não queria falar sobre o assunto, mas não resisto. Li um caderno cultural de um jornal gaúcho, exclusivo sobre Mário Quintana, publicado no início do ano, à guisa de homenagem pelo centenário de nascimento do poeta.
Entrevistas, depoimentos de colegas e pessoas que o conheceram, como Bruna Lombardi – a musa, críticas, opiniões, bibliografia, fotos. Lá pelo meio do caderno, num texto sobre qual lugar o poeta ocuparia dentro da literatura brasileira, já o subtítulo me intriga: “críticos e escritores ainda discutem como e onde situar a obra de Mário Quintana: um autor menor, simplista, ou uma presença única, indefinível nas letras nacionais”.
Fiquei surpreso e me senti desconfortável com a dúvida: Quintana, um escritor menor? Simplista? Indefinível? Como cogitar qualquer coisa assim de um escritor como Quintana? Será que, se ele fosse menor, simplista, o Brasil estaria lhe prestando homenagens, publicando livros e livros sobre ele, reeditando toda a sua obra, falando dele em todas as mídias?
Iniciando a leitura do texto propriamente dito, logo no início, passei do desconforto à indignação. O autor do texto, Carlos André Moreno, afirma que ‘...se Drummond foi o claro enigma, Quintana pode muito bem ser a charada obscura”.
E piora. Mais adiante, ele escreve que “a percepção crítica de sua obra oscilou diversas vezes: foi renovador da lírica riograndense, um passadista, um ironista mordaz, um discutível integrante da chamada ‘geração 45’, um poeta menor repetitivo e mesmo uma figura indefinível no cenário das letras brasileiras’.
Fiquei em dúvida quanto a estar lendo aquilo em um caderno publicado para se integrar às comemorações do centenário de nascimento de um poeta da terra, conhecido, respeitado e amado naquele estado, no Brasil e até fora dele.
Mas havia mais. No mesmo artigo, o autor repete a afirmação, estendendo-a a outro poeta consagrado: “Quintana ocupa uma posição instável no cânone da poesia nacional. Às vezes é comparado a Vinícius, como ele poeta de fácil comunicação com o público, às vezes é posto ao lado de

João Cabral e Drummond. Em outras ocasiões, tem uma trajetória comparada a de Manuel Bandeira, poeta ora tido como um mestre, ora como um escritor menor. Um dos que se aliam a essa interpretação é o gaúcho Fabrício Carpinejar.”
Carpinejar, vocês devem estar lembrados, é o ‘idealizador’ do curso superior para diplomar escritores, divulgado recentemente.
Em meio a verdadeiras homenagens, encontrei, em outra página do mesmo caderno, um artigo não assinado, onde está escrito que a “... idéia generalizada de que a poesia de Quintana era, em grande parte, igual ao próprio poeta transbordou para o público, de modo que sua imagem, hoje em dia cristalizada – relevante, já que se fala de um escritor que foi, em vida, muito popular – o resume como um único personagem literário: o avozinho benfazejo que peregrinou pela Rua da Praia durante a Feria do Livro, o pitoresco velhinho que morou no Hotel Majestic, autor de “O Mapa”, do “poema do passarinho” e de meia dúzia de outros versos – sempre os mesmos, repetidos à exaustão.”
Ora, fazer essa idéia de um poeta como Quintana é, no mínimo, desrespeitoso. Afirmar que Mário Quintana se resume ao “poema do passarinho” – o nome do poema é “Poeminha do contra’, “O Mapa” e meia dúzia de versos – não é nem meia dúzia de poemas, escreveram meia dúzia de versos mesmo – me parece ingenuidade, para não dizer outra coisa. E de mais a mais, existem poetas chamados “grandes” que não têm sequer um poema conhecido, consagrado, que dirá dois poemas e “meia dúzia de versos”.
Penso que qualquer um de nós, leitores, pode não gostar da obra de Quintana, é natural. Ninguém é obrigado a gostar de nada, ou se gosta ou não se gosta. E não gostar de alguma coisa não significa que essa coisa não presta. O que não pode acontecer é um formador de opinião – se ele tem espaço em um grande jornal para dizer o que quer é formador de opinião – expressar seu gosto particular como sendo afirmação da verdade. Principalmente um “formador de opinião” que não assina o que escreve e com uma visão tão estreita.
Como o próprio poeta já disse, ‘um poeta não é maior nem menor, nem grande nem pequeno. Só há duas alternativas: ou ele é poeta ou não é poeta.”
E ele tem dito!

 

NO QUINTANA´S BAR

Carlos Drummond de Andrade

No Quintana's Bar,
sou assíduo cliente.
É um bar que não é bar,
é um bar diferente.
Nele bebo sequer
copo-d'água gelada.
Meu whisky é a noite escura,
meu gin, a madrugada.
No entanto me embriago
até as raias da loucura.
É então que me atraiçoa
a canhestra ternura
(o goche sentimento
que me expõe e envergonha,
tão inadequado
ao mundo e sua ronha).
A atração do bar
é o proprietário.
O seu rosto descerra
o auge do Calvário.
Prestidigitador
cria noite de prata,
oceano irreal
e barroca fragata...
Induz-nos à catarse
dos apetites tortos,
ao invocar a mística
de Mil Meninos Mortos.
Enquanto as horas fluem
na insólita vigília,
vai-se criando entre nós
certo ar de família
E em esferas rolando
pela noite e seus véus,
com fé aguardamos
a alvorada de Deus!

 

A MUSA DO POETA

O Brasil inteiro suspirava por Bruna Lombardi – garota miúda, de traços delicados, sorriso doce e olhos transparentes.
E uma vez que ela era a musa do país e a musa daqueles tempos (final dos anos 70, início dos 80), por que diabos não seria também a musa do poeta?
Atriz e modelo, ela própria fazia suas incursões pela poesia. Publicou três livros e, seguidas vezes, esteve em Porto Alegre ao lado de Mário Quintana. Passeou com ele, autografou com ele e, de alguma forma, pareceu encarnar a personagem título de “Lili inventa o mundo”, livro que ele dedicaria às crianças.
Hoje, aos 53 anos, Bruna mantém intacto, mesmo pelo telefone, o seu carisma sensual. No intervalo de uma reunião de trabalho, recorda o convívio com o poeta alegretense.
Desde sua casa, em São Paulo, nega a condição de musa e prefere evocar a amizade.
Garante que Quintana sempre foi cavalheiro e afetuoso:
- O Mário era um anjo.

E.V. – Como você conheceu Mário Quintana?
Bruna – foi numa Feria do Livro de Porto Alegre. Eu ia autografar o meu primeiro livro, de 1976. claro que eu já conhecia a poesia do Mário, já era leitora, já adorava o humor dele. Percebia que ele era uma personalidade completamente independente no panorama literário. E, de repente, vejo ele, um senhor famoso, na minha fila de autógrafos. Fiquei chocada, a fila era enorme. Pedi que, pelo amor de Deus, tirassem o Mário do fim da fila e o colocassem na frente. Ele disse que não, que fazia questão de ficar no lugar e não quis furar a fila. Ele era de uma educação ímpar, uma educação que não há mais no mundo. Depois disso, ele leu o livro, escreveu sobre ele, e a gente acabou ficando amigos.
E.V. – Você esteve muitas vezes com ele em Porto Alegre. Ele chegou a lhe visitar em São Paulo?
Bruna – A gente tinha um compromisso de se ver pelo menos uma vez por ano. Firmamos esse pacto desde o primeiro encontro: a gente tinha que se ver e tomar um chá. Começamos a trocar cartas. Eu tenho todas essas cartas guardadas com muito carinho, talvez um dia publique.
E.V. – Como ele lhe chamava?
Bruna – Pelo nome: Bruna, Bruninha. Ele sempre foi uma pessoa extraordinariamente carinhosa. E sempre manteve muito o humor. Eu adorava caminhar com ele pelas ruas de Porto Alegre. Ele gostava de tomar café, um café bem forte, fumava o cigarrinho dele e a gente ia fazendo comentários. Dávamos risadas imaginando a vida das pessoas, inventando histórias para elas.
E.V. – Você tem consciência de ter sido uma musa para ele?
Bruna – Tenho mais consciência de ter sido uma amiga, numa idade em que as pessoas às vezes ficam sem amigos. Nossa amizade durou muitos anos, até o final de ávida dele. Para minha surpresa, ele tinha uma foto minha no quarto. Quando vi, fiquei muito honrada. Eu estava em ótima companhia: ao lado de Greta Garbo. Puxa vida, eu dizia, não mereço tanto. De alguma maneira, eu fazia bem a ele. É legal você poder dar um gesto, um momento, uma linha, um cartão-postal para alguém. Enche a pessoa de alegria e faz a diferença. A nossa amizade foi baseada nisso: uma pequena e mútua companhia.
E.V. – Mesmo se valendo de humor, ele nunca foi galanteador?
Bruna – Não era da natureza do Mário ser galanteador. Acho que ele era um anjo. A natureza dele era a natureza das pessoas que têm asas nas costas. Ele era uma pessoa do bem, muito do bem. Claro que às vezes ele fazia mal a ele mesmo, como todo ser humano.

(Entrevista a Eduardo Veras, para o caderno cultura do jornal Zero Hora)


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Suplemento Literário A ILHA - Edição número 97-A - JULHO/2006 - Ano 26
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