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O SONHO DO PROFESSOR FELIPE


Rachel de Queiroz


Uma das entidades mais sérias deste País é atualmente a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, reconhecida de utilidade pública por decreto do Governo, com sede na Capital da República e ação em todo território nacional. Segundo se diz nos seus estatutos, a Campanha (que usa a sigla CNEG), "inspirada nos princípios cristãos da solidariedade humana e tendo em vista que a educação nacional exige a convergência de ação das forças vivas do País", visa, como principal finalidade, a fundar e manter educandários gratuitos no território nacional, e, de modo geral, contribuir para o progresso da causa do ensino no País. Não admite discriminações religiosas, raciais ou econômicas, aceita o apoio do poder público, mas principalmente apela para a iniciativa particular como elemento primordial das suas realizações.

Dito isso, explique-se agora que a CNEG é uma vitoriosa em toda a linha. Mantém, pelo Brasil afora, cerca de quinhentos ginásios funcionado regularmente, tem bela sede própria aqui no Rio, rua Sílvio Romero, nas fraldas de Santa Teresa, faz o seu orçamento anula em têrmos de dezenas de milhões de cruzeiros, é citada, respeitada, bem vista, lisonjeada. E agora, que comemora os seus dezenove anos de vida publica um livrinho que lhe conta a, história, verdadeira epopéia no seu gênero, motivo de exemplo e orgulho para todos nós.

Acham as pessoas de bom senso que elas são as molas do Mundo, que triste da humanidade se não tivesse a governá-la a moderação, o equilíbrio dos sensatos e- perdão! - a sua mediocridade.

Entretanto, a experiência ensina o contrário, são antes os loucos, os fantasistas, os sonhadores que fazem o Mundo andar para a frente. Se ao primeiro macaco não lhe desse uma coisa e não resolvesse caminhar pelo chão erguido nos dois pés, talvez ainda vivêssemos trepados em árvores. E depois se os outros doidos - Aristótoles e Galileu, e Copérnico, e Colombo e Guttemberg, e Stephenson, Santos Dumont, Pasteur, Bell, Edson, os Curle, Marcont e tantos outros não se houvessem entregue cegamente cada um ao seu ramo especial de loucura - que civilização teríamos. O bom senso é ótimo mas para conservar os que os doidos criam. O bom senso quer a estabilidade, a segurança - e o progresso se faz aos saltos, é o contrário da estabilidade.

Penso nisso ao ler o tal livrinho escrito pelo professor Felipe Tiago Gomes - que é em pessoa, o inventor, o pai, a própria alma da CNEG.

Conta ele que um dia, pobre estudante secundário do Recife (desses que precisam exercer qualquer emprego, por mais humilde, para pagar o colégio), estava a ler um livro de John Gunther quando deparou com um trecho onde se narrava uma experiência realizada por Haya de La Torre no combate pela alfabetização dos índios peruanos.

Era o ano de 1943. E ele, felipe Tiago Gomes, que conhecia na própria carne o drama do estudante pobre, do jovem que quer estudar e não pode, teve uma idéia: por que não iniciar ali no Recife uma experiência idêntica - mas visando ajudar o estudante secundário? Criar-se uma instituição particular que fornecesse aos moços pobres ensino secundário gratuito, mas gratuito mesmo, sem taxas, sem anuidades disfarçadas, nem nada. Conversou com o companheiro de quarto, que aprovou a idéia. Convocou outros colegas que se entusiasmaram; e assim se fundou a CAMPANHA DO GINASIANO POBRE (núcleo inicial da CNEG). À primeira reunião do grupo, convocada por Felipe Tiago Gomes, compareceram mais quatro estudantes, cujos nomes de pioneiros devem ser guardados: Carlos Luís de Andrade, Florisval Silvestre Neto, Joel Pontes e Eurico José Cadengue - todos estudantes secundários, nem universitários eram ainda.

Falo que a Campanha começou então, mas é modo de dizer. Porque de material para começar, os nossos cinco heróis só dispunham mesmo de entusiasmo. Não tinham dinheiro, não tinham relações, nem poder político, nenhum elemento de ajuda a não ser essa coisa dentro do peito que os mandava ir para diante - coisa que se costuma chamar de ideal.

Sinto pena de dispor apenas desta e não poder dar na íntegra o depoimento pitoresco e delicioso de Felipe Gomes, contando a sua luta e a dos seus companheiros que o ajudaram nas diversas batalhas da campanha; a fundação do movimento, o primeiro ginásio, instalado no Recife sob a invocação daquele que é o arcanjo dos nossos estudantes - Castro Alves. Depois a luta para obter funcionamento oficial enfrentando as leis orgânicas do ensino secundário, as exigências do DES, a burocracia ministerial. Para isso, os rapazes da Campanha enfrentaram o Rio de Janeiro na raça, sem um vitém no bolso, sem um pistolão garantido, sem nada. Passagens, obtiveram-na no Correio aéreo - Eduardo Gomes, o Brigadeiro, comandava então por lá. Depois - ah, valia a pena mesmo ler o livrinho do professor Felipe - a odisséia dos moços no Rio, o dinheiro faltando para o bonde e o hotel, a espera infindável nas ante-salas ministeriais, a luta aparentemente impossível dos três dirigentes - quase meninos - contra a máquina governamental impermeável e cega.

E foi assim, nesse ambiente heróico de improvisação, coragem e teimosia que se fundou a CNEG. Recordo com delicia aquela companhia de amadores teatrais, muito mais amadores que teatrais, realizada para obtenção de numerário. Numerário não deu, mas foi dela que saiu o Teatro dos Estudantes de Pernambuco, e não alegasse outros méritos, bastava ter florido na jóia que é "A Compadecida"...

Em 1945, muda a Campanha de nome, passando a chamar-se "Campanha para Ginasianos Populares". Os rapazes queriam deixar aquilo de "estudantes pobres" que cheirava um pouco a sentimento socializante à século XIX. Logo após, como a palavra "popular" estava cheirando a subversiva, chegaram eles ao nome atual "Campanha Nacional de Educandários Gratuitos". Pouco depois, já os ginásios eram cinco: em Pernambuco, Paraíba, Amazonas, Paraná, Estado do Rio.

Aí, o rumor foi crescendo, deputados se interessaram, a chama se propagou incendiariamente pelo País inteiro. Veio o reconhecimento de utilidade pública. Quinhentos ginásios gratuitos já se podem contar no acervo da Campanha. E o passado de luta quase incrível até parece um sonho. Como parecia um sonho a gloriosa realidade de hoje, no tempo duro daquele passado.



Texto publicado na revista semanal O Cruzeiro - Rio de Janeiro/RJ - 10/02/1962